Sobre o tempo do casamento

Sobre o tempo do casamento

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Nem todo mundo entende o ofício do cronista. Os que menos entendem essa atividade singular são os pragmáticos, os utilitaristas e os moralistas. Esses só se interessam por buracos na rua, questões de segurança pública, diminuição da maioridade penal e outros assuntos de utilidade pública explícita ou até obscena. Um cronista, contudo, é um comentador da existência. Deve falar de si, sempre que considerar necessário, na tentativa de identificação com os outros. Fala de si naquilo que tem de comum com os demais: expectativas, sonhos, temores, cotidiano, percalços e ritmo da vida.

Por exemplo, o casamento. Cláudia e eu chegamos a 24 anos de casados. Como diz o filósofo de Palomas, é tempo. Está cada vez melhor. Tivemos, como todo casal, nossas crises. Hoje, vivemos um amor maduro e feliz. Sou um fã do casamento. Não saberia viver sozinho. Não saberia viver sem a Cláudia. O mais incrível do casamento é que, mesmo com o tempo passando, tudo pode se renovar. A família foi declarada falida ou até morta pelos rebeldes dos anos 1960. Está mais forte do que nunca. É verdade que se flexibilizou. Novas formas apareceram. O mundo está melhor. Daniela Mercury e sua esposa podem falar do casamento delas em praça pública. Só os preconceituosos ainda não perceberam o quanto é muito melhor este modo.

Viver e deixar viver é a grande lei moral. Viver e deixar viver tudo aquilo que não prejudica terceiros. Sou fã do presidente uruguaio Pepe Mujica. Colocou novamente o Uruguai na vanguarda da América Latina. Pode dar errado. Mas está buscando uma experiência arrojada para tentar resolver aquilo que se tornou um atoleiro. O que toda essa mistura tem a ver com casamento? O que tem a ver com o meu casamento de 24 anos com a Cláudia? Tem a  ver com o ritmo da vida: o tempo passando, a gente se amando, o mundo mudando, ou tentando, e a vida fluindo.

A melhor maneira de testar um casamento é viver algum tempo no exterior num apartamento de 25 metros quadrados. Especialmente se ele for roxo do teto às paredes. Ainda mais com o ciclo da natureza europeia. Acompanhar pela janela a árvore do jardim perder as folhas, acabrunhar-se e atravessar o longo inverno retorcida e gélida sob o cinza do céu baixo. Até o renascer triunfante na gloriosa primavera ensolarada. Cláudia e fizemos isso durante quase seis anos. Quatro anos na primeira vez, nove meses somados em três vezes seguidas e um ano noutra passagem. São 24 horas por dia em contato direto. Até a aula íamos juntos. Fizemos isso em Berlim e em Paris. Só falta uma temporada em Palomas.

Ao longo do casamento a vida se reinventa. É importantíssimo ter gostos em comum. Cláudia e eu compartilhamos a paixão pelas viagens, pela arte, pelos museus, pelos shows, pelos filmes, pelos livros, pelos restaurantes, pela praias desertas e pelos amigos. Mas também é muito importante ter diferenças para compartilhar. Sou colorado. Cláudia, gremista. Recomendo. Todo colorado deveria casar-se com uma gremista e vice-versa. Como diz o filósofo, parece que foi ontem. Não temos fotos do casamento. A Dulce Helfer não apareceu.

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