Somos solidários?

Somos solidários?

Crônica e comentário de leitor

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Um cachorrinho entrou na ambulância para acompanhar o dono. Um desempregado enfrentou um pitbull para salvar uma criança. Pessoas servem refeições sob os viadutos para moradores em situações de rua. Uma mulher faz protesto solitário contra os bilhões destinados ao fundo eleitoral que alimentará campanhas políticas cheias de truques publicitários. Como é a vida nestes tempos trepidantes e tecnológicos?

      Estávamos em Santa Catarina numa linda pequena praia numa zona de proteção ambiental. Ao final da tarde, conseguimos, contra todas as expectativas, um Uber para ir a uma praia vizinha com uma faixa de areia maior para caminhar. O motorista não podia nos esperar para o retorno. Tentamos obter um carro de aplicativo até que os celulares começaram a sinalizar que ficariam sem bateria. Era um bairro fashion de imensas casas, carros poderosos e muita gente nas ruas, mas nada de bares, salvo uma padaria. A estrada de volta para a nossa praia, cheia de curvas, não tinha acostamento. Era um convite para um acidente.

      Táxis não havia. A noite caía no último dia do ano. Parou uma camionete. Fui conversar com o motorista. Ele disse que estávamos na mesma pousada, a uns 15 minutos de carro dali, mas que não podia nos levar por ter pressa de chegar a uma festa, a uns 15 minutos na direção contrária, onde passaria a noite. Tratei de mostrar-lhe que entendia perfeitamente a situação. A pousada não tinha carro disponível que soubéssemos. Ainda assim, se nada rolasse, ligaríamos para pedir resgate. Tão perto e tão longe. Meu celular se apagou. O da Cláudia ainda resistia. Surgiu, então, a esposa do homem da camionete. Ela saía da padaria com as últimas encomendas para a festa. Ficou constrangida com a nossa situação. Quando já se preparavam para sair, ela nos acenou com um papel: o telefone de um senhor que fazia corridas na região.

      Ligamos. O homem que atendeu nos prometeu aparecer em 40 minutos. Será que viria? Enquanto esperávamos, sentados na calçada, víamos gente passar. Ninguém parecia nos notar. Comecei a me sentir profundamente infeliz. Refletia: eu teria levado aquele homem à pousada se fosse eu a estar de carro e ele a procurar uma saída para a bobagem em que se metera? É fácil acusar o egoísmo alheio quando se está em apuros. Faltando dez minutos, usamos o último restinho de bateria para conferir com Seu Antônio se, de fato, ele viria. Confirmou. No máximo em 20 minutos. Passaria por nós, acenaria, seguiria na direção oposta com passageiros e voltaria para nos pegar. Assim aconteceu. Precisamente.

      O nosso problema era tão pequeno. Mesmo assim, desagradável. Como teríamos resolvido se o desconhecido Seu Antônio, fazendo corridas havia apenas 15 dias, não fosse um homem de palavra, que queria, além de tudo, apenas 20 reais pela viagem? Aprendi algumas pequenas coisas: não confiar cegamente na sorte e em aplicativos, ter fé nos homens simples, negociar melhor a volta quando a ida já é duvidosa. Uma coisa ainda não resolvi: eu teria voltado para deixar o outro na pousada?

*

Pelotas, 13 de janeiro 2020.

 

Caro Juremir, lendo a tua crônica de hoje no Correio do Povo, ao final respondi: - eu teria voltado. Teria mesmo? E nesse momento saltou de um escaninho da memória uma lembrança que estava esquecida. Década de 80, eu, jovem Veterinário, trabalhava na Cooperativa de Lãs de Santa Vitória do Palmar, e quase sempre me deslocava ao interior do município para dar atendimento aos associados nas suas diversas demandas que se relacionavam à área animal. De modo geral, retornava à sede do munícipio ao final da tarde ou ao cair da noite. Nesse dia, de um verão calorento, já de noite, voltava cansado, trabalhara o dia inteiro perto da Ramada, distante uns 40 km da sede municipal, ansiando pela chegada em casa, mas tendo que ainda deixar o carro e meu equipamento veterinário na Cooperativa, vejo na estrada de chão, um carro parado, capô levantado e dois homens debruçados sobre o motor. Instantaneamente paro o meu carro na intenção de oferecer ajuda, repetindo uma ação muitas vezes realizada pelo meu pai. Desço, converso, o carro estava com algum defeito mecânico, o calor era insuportável, uma nuvem de mosquitos famintos nos cercava, olho para o interior do veículo, um chevete, vidros fechados, lá dentro duas mulheres e três crianças, uma de colo, trancadas por causa dos mosquitos, mas sufocando pelo calor!

- Como posso ajudar? Um deles me responde: - já está vindo alguém para rebocar o carro, mas vai demorar, se o Sr. pudesse levar as mulheres e as crianças de volta prá Ramada, nós moramos ali, seria de muita valia.

Eu usava um fusca, 1300, cinza, pneu lameiro, que Santa Vitória quando chove torna-se quase um banhado, e o banco traseiro era totalmente ocupado por uma caixa de metal, que até hoje me acompanha, com todo meu material de trabalho (material cirúrgico, medicamentos, seringas e agulhas descartáveis, material para necropsia, etc...).

Suspirei, - Sem problemas. Descarreguei a caixa, a deixei ao lado do chevete, sobre a areia da estrada. As mulheres e crianças, agradecidas, embarcaram no fusquinha, manobrei o carro e dei de volta, agora chato, pertinho do chão. Entre 20 e 30 km de retorno, deixei a turma em casa, voltei ao chevete, o auxílio ainda não havia chegado, mas chegaria em breve, carreguei minha caixa, despedi—me das pessoas e rumei para o meu destino.

Cheguei em casa noite alta, cansado, mas sentindo aquela sensação de dever cumprido. Meu pai teria feito a mesma coisa, era uma benção tê-lo como exemplo.

Sim, Juremir, eu teria voltado.

 

Paulo Ricardo Centeno Rodrigues.


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