Sonhos

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Eu já sonhei todos os sonhos acordados que a vida me vendeu

Juremir Machado da Silva

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Eu já sonhei todos os sonhos acordados que a vida me vendeu. Inclusive os sonhos que sonho aqui em São Miguel dos Milagres. Sonhei que fazia coisas boas para a sociedade e nada pedia ou recebia em troca. Sonhei que escrevia bem e encantava pessoas desconhecidas. Sonhei que vivia num país cada vez mais próspero onde tudo era feito em nome da liberdade e da igualdade. Era um país legal no qual se buscava o equilíbrio perfeito entre esses dois nortes quase sempre distanciados. Muita liberdade com pouca igualdade parecia a todos uma injustiça e uma ilusão. Via-se muita igualdade com pouca liberdade como uma inaceitável ditadura. Eu já sonhei todos os sonhos acordados possíveis. Sonhei que a tecnologia era usada para o entendimento entre as pessoas e que não havia ódio nas redes sociais. O lema desse país sonhado era “não descansaremos enquanto alguém não tiver trabalho, casa, comida, dignidade e futuro”.

Sonhei que nenhuma empresa colocaria em risco a vida de pessoas só para gastar menos e lucrar mais. Sonhei que jamais o Estado afrouxaria normas que pudessem resultar em tragédias. Sonhei que a vida e a natureza eram os bens máximos contra os quais ninguém ousaria atentar. Contei isso a um amigo. Ele sorriu. Era um sorriso piedoso. Ele não se conteve:

– Que sonhos piegas!

– Como assim?

– Não são sonhos. São coisas de que precisamos e nunca teremos.

Falava, obviamente, dos meus sonhos maiores, não das minhas vaidades pessoais. Eu já sonhei muitos sonhos sonhados dos quais não consigo me lembrar. Alguns, contudo, sempre voltam. Sonhei, numa noite de verão, que montava um cavalo baio e cavalgava à beira de um rio chamado Felicidade. Sou daqueles que se apegam aos melhores sonhos sonhados e chegam a tentar dormir só para recomeçar. Quem já não sonhou que sonhava com a realidade sem as suas imperfeições? Quem já não sonhou que sonhava com um mundo melhor e melhor era um mundo em que ninguém ficava pelo caminho? Sonhei que os sonhos não eram irrealidades, mas antecipações de grandes alegrias.

O meu amigo me disse que a necessidade de sonhos é sempre um sintoma da falta de realidade. Sim, eu disse, me falta um cavalo baio e um rio chamado Felicidade. Mas me sobram cavalgadas imaginárias e pegadas na areia. Segundo ele, os suecos sonham menos do que nós por realizarem mais. Considerei que meu amigo tem algum problema com os suecos para assacar contra eles tamanha acusação, a de serem um povo sem sonhos. Como nossa amizade está acima de qualquer polêmica, combinamos escrever um ensaio juntos: “Com o que sonham os suecos?” Eu tenho a minha hipótese: com um país tropical. Deixemos os suecos em paz, que eles não nos incomodam.

Meus sonhos estão cada vez mais banais: sonho com um país sem racismo, sem homofobia e sem qualquer preconceito. Faz duas noites, sonhei algo radical. Sonhei que não havia no mundo possibilidade de apenas 26 pessoas possuírem o mesmo que três bilhões e meio de indivíduos. Não era um sonho político. Era apenas a expressão mais pura de minha perplexidade.

– Seja realista! – ralhou meu amigo.
 

 

 

 


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