Tortura nos pagos gaúchos

Tortura nos pagos gaúchos

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Volta e meia o passado sai do seu subterrâneo para assombrar o presente. Jornalistas e historiadores existem para publicar o que sempre se quer esconder. Talvez por isso muitos se apressem em declarar que o jornalismo vai acabar, substituído pelo entretenimento, que é muito mais confortável para o poder. A história recente do Brasil é cheia de segredos macabros que precisam ser exumados. Não se consegue traz tudo à luz de uma só vez. Vem aos poucos. É trabalho de arqueólogo. De caco em caco, surgem narrativas e grandes choques. O passado é quase sempre pior do que se imagina ou deseja.

Ainda não sabemos tudo sobre o ovo da serpente. Há muito material acumulado que nem sempre chega ao grande público. Enquanto viúvas da ditadura sonham com a volta do grande silêncio, a paz dos cemitérios, verdades incômodas saem das valas comuns e andam por aí como fantasmas em busca de escuta tendo muito a esclarecer. Como foi possível mentir tanto há tão pouco tempo? Como foi possível levar o horror tão longe e ainda se falar em tempos de tranquilidade e ordem?

Um conjunto de cinco reportagens feitas pelo coletivo de jornalistas Eder Content pode ser resumida numa manchete chocante: Rio Grande do Sul teve casas de tortura em cidades com instalações militares ou em região de fronteira: Alegrete, Porto Alegre, São Borja, Três Passos, Uruguaiana. As revelações saíram da boca do torturador Paulo Malhães, agente do Centro de Informações do Exército (CIE), para a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro e para a Comissão Nacional da Verdade. O diálogo com Malhães a respeito das casas da morte e de aparelhos provisórios de tortura foi singelo:

“– CEV-RJ - E as cidades que tinha isso, coronel, o senhor lembra?

– Paulo Malhães - Porto Alegre, Três Passos, as cidades quase todas que tinham unidades no Rio Grande do Sul, unidades militares...

– No Alegrete também...

– Regimento de cavalaria. Tem.

– Mas tinha também estes aparelhos. Também. São Borja?

– São Borja....”

Paulo Malhães foi encontrado morto na sua casa, na Baixada Fluminense, em 2014. Ele foi asfixiado. Tinha 76 anos de idade. Homem de mão da ditadura militar instalada em 1964, Malhães orgulhava-se dos seus feitos e dos seus métodos. No Rio Grande do Sul, teria atuado em colaboração com Pedro Seelig. Uma frase dele revela o seu estilo: “O Rio Grande do Sul foi meu grande maná. Eu derrubei tudo quanto é organização. Acabei com as organizações do Rio Grande do Sul, acabou”.

Em cada cidade, aparelhos clandestinos de tortura eram montados por temporada. O método consistia em fazer o serviço e partir. A mais famosa casa da morte é a de Petrópolis, no Rio de Janeiro, mas, segundo Malhães, teria havido uma antes, provisória, em Três Passos. O primeiro grande livro sobre o horror provocado pelos militares que tomaram derrubaram Jango foi escrito no calor dos acontecimentos, “Torturas e torturados”, de Marcio Moreira Alves. Conta como a repressão varreu o Brasil entre abril e agosto de 1964. Uma sentença brilha nesse relato corajoso: “Os que acobertam um punhado de torturadores limitam-se a dizer que as torturas são mentirosas”.

 

 

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