Três crônicas sobre vida, morte e tempo

Três crônicas sobre vida, morte e tempo

A crônica como poesia do tempo que morre

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Anacronismos

 

      Fiquei sabendo que a crônica poética está fora de moda. Disseram-me que a poesia se tornou anacrônica. Contaram-me que anacrônico agora é um anacronismo. Explicaram-me que falar em poente, aurora, crepúsculo e nostalgia revela uma alma ultrapassada, parada no tempo, antiga. Mostraram-me que fazer rimas é infantil. Diante disso, comecei a gritar: não serei o poeta de um mundo novo. Tampouco serei o cantor do meu povo. Não falarei jamais algo sublime. Praticarei sempre o mesmo crime... Farei poesia sem poesia. Romance sem personagem. Crônica sem pensar no dia. Descrição sem paisagem. Teatro sem maquiagem. Deixarei todos atônitos.

Nunca voltarei à antiguidade. Nem mesmo à velha modernidade. Ano depois de ano, rasgarei a fantasia em nome do cotidiano. Sonharei com uma vida rude, sem metafísica nem ontologia, experimentada no meio da rua como uma vagabunda mitologia. Não criarei novas imagens, farei somente colagens, coleção de bolinhas de gude. Torcerei por um clube diferente de futebol a cada três anos só para manter a liberdade de viver novas aventuras. Afinal, só se torcer para fazer parte de alguma coisa, laço social, gozo compartilhado, festa, vibração, troca de sentimentos passageiros, descarga de emoção, o irrelevante vivido como fundamental.

Não exaltarei mulheres fatais. Nem lutarei contra a rima. Tampouco a colocarei acima dos meus esquálidos ideais. Não verei das estrelas o brilho. Nem da noite a tensão elétrica. Não seguirei das vias o trilho. Para mim bastará ser o filho. O filho bastardo deste tempo sem métrica cuja utopia é a ética e a arte pós-estética. Sou pós. Tudo. Como outro poeta, muito concreto, já fui mudo. Agora, falo, exalo, resvalo, respiro. Afinal, saí do armário, rasguei a camiseta, não pertenço a clube, partido, sentido. Traio expectativas a cada eleição. Dou seis votos diferentes ou anulo tudo. Torço pelo rival só por infidelidade convicta e libertária.

Não farei das leituras álibi para as agruras do poeta agonizante de um homem artificial colhendo rosas e dálias no jardim das virtuálias. Releio Borges – O sul, o indigno, a intrusa, o homem da esquina rosada –, dou um pinote, um beijo no cangote e saio para tomar sol. Serei essa voz natural num dia monótono e breve das redes sociais em greve. Serei a derradeira conexão, pássaro no rastro da tarde, fantasma da televisão.

Tenho meu ponto de vista:

Eu não entendo essa tática,

Da poesia como matemática.

Um poeta que conta os versos

Para que sejam alexandrinos

É como os verões londrinos,

Sonhos de homens perversos.

Por que essas sílabas somadas?

Oito, dez, doze, todas rimadas?

Por que uns quatorze versos?

Por que não quadros inversos,

Sonetos ou quem sabe cometas?

Que diferença faz essa ciência

Desde que não te intrometas

No frio da minha consciência?

 

*

Natureza-morta

 

      Os velhos navios atracados exibiam suas carcaças de paquidermes. A ferrugem devorava as suas histórias. Uma ave branca descia inclinada para a esquerda na ilha de vegetação crespa. Caminhões passavam carregados. O sol estava implacável no meio do céu salpicado de nuvens disformes. Um barco arrastava-se nas águas, que se crispavam turvando o azul e desenhando rastros. Do outro lado, via-se um aglomerado de casas mais ou menos altas. Os raios batiam em vidraças e brilhavam ofuscando pessoas. Um ônibus passou lentamente. Quase se podia ler o seu destino. Não parou.

      Soou uma sirene. Longa como o medo de morrer. Os carros avançaram sobre o meio-fio para dar passagem à ambulância que gemia no cruzamento. Risadas nervosas ressoaram. Um velho soltou um palavrão com voz grave. Os galpões alinhavam-se como os cemitérios ao longo da linha divisória. Uma camionete perdendo os pedaços transportava caixas de frutas amarelas. Uma cegonha levava carros vermelhos e prateados. Um furgão preto impunha medo ao seu entorno. Lia-se: segurança máxima. Ouviu-se um mugido. Era um navio que sonhava. Um homem dormia sob a ponte coberto de plásticos, com um jornal ao alcance das mãos: “Reforma sobe no telhado”. Uma placa indicava o nome da avenida. Estava riscada. Uma barcaça sulcou um trilho na água.

      Uma mulher decidiu atravessar a rua no ponto mais movimentado. Era magra, alta, ruiva e apática. Parecia não se importar com o zumbido dos carros. De que fugia? De que se lembrava? Teria um dia embarcado num daqueles navios de ventres enormes? Recordaria de algum amor deixado para trás? Ziguezagueou entre os veículos até beijar o concreto impulsionada por uma moto. O trânsito parou. Buzinas soaram sem lamentação. A avenida em frente ficou subitamente vazia exibindo sua solidão de asfalto entre muros. Nesse mesmo instante, por toda parte no mundo, navios singravam certamente mares. Um deles, como antigamente, subia o Mekong, na saída de Saigon, com os motores desligados. Alguns motoristas baixaram os olhos.

      Eu estava lá. Dentro de um ônibus. Tinha um livro entre as mãos. Preciso estar sempre armado para sonhar ou impedir o assalto dos meus fantasmas. Vá que alguém invada os meus pensamentos. Fechei o livro por um momento. Revi a cena dentro da sua moldura. O tempo, esse parceiro inclemente, paralisou-se por alguns segundos para que recolhessem o corpo. A ave branca pousou na ilha. A vegetação agarrava-se ao solo como se temesse um golpe de vento. As águas irisadas buscavam a imobilidade. Todo o sentido da vida estava ali. Cabia numa frase, numa imagem, numa síntese.

      Fechei os olhos e observei o Mekong que nunca vi. Tudo me era tão familiar. Sei que me farei entender sem ter de dizer o que estou pensando. Por que não quero fazer isso? Fiquei com a garganta fechada. Então a ave branca voltou a subir, inclinada para a direita, descrevendo um arco. Os carros movimentaram-se. Vozes ecoaram na tarde. O sol ardeu com mais intensidade. Reabri o livro. Cada frase era uma punhalada. Vida que segue.

*

Alma da noite

 

      Na infância, quis agarrar o espírito do vento. Soltava pandorgas coloridas que dançavam nas alturas tendo o céu como moldura. Eram abstratos quadros ingênuos desenhando movimentos. Roçavam as portas do infinito e me faziam estremecer de medo. Nunca soube para onde poderiam me arrastar. Depois, tentei decifrar a alma da noite ao som de bandoneóns em casas enfumaçadas e suavemente lúgubres. Entre esses dois tempos, cuja passagem errante não marquei em calendários, andei pelo mundo em cavalos alados e em bondes nos quais se podia viajar em pé sobre os estribos.

      Não raro, contei com a alegria do vinho e com a tagarelice das notas musicais despertadas por ágeis mãos negras. Ao voltar para casa, via estrelas se apagarem e guardava os seus últimos brilhos nos bolsos do casaco de linho branco. Não dormia, singrava mares em sonhos que me escapavam como os amores de cada madrugada. Sim, eu corria perigo. Namorava a fugacidade do tempo, flertava com a morte, beijava desconhecidas, dormia em camas desfeitas, procurava a essência da vida, amava mais as palavras do que as ações, colecionava vogais e consoantes.

      Certa época, perdi a consciência da realidade ou daquilo que até então me haviam dito que devia chamar responsavelmente de realidade. Abri uma porta lateral e me vi noutra dimensão. Homens eram meninos que corriam para o mar. Nunca senti tanto medo. Temia não servir mais para a produção. Caminhava-se sobre nuvens macias com desenhos de bichos risonhos, bebia-se à luz da lua, dançava-se sobre cômoros. Mas havia uma faixa escura. Eu quis então compreender o imaginário das sombras. Sempre achei que a noite escondia um mistério que se disfarçava com as roupas da felicidade. Andei com todo tipo de gente para tentar saber o que cada um sabia da vida.

      Todos ignoravam o principal: a resposta para o enigma do escuro. Nesse mundo paralelo em que me perdi sem lamentar, homens e mulheres jamais faziam perguntas sobre a felicidade. Contentavam-se em tentar agarrar estrelas cadentes e em dar milho para os pássaros. Alguns, depois de muita caminhada a esmo, partiam seguros para nunca mais voltar. Guiavam-se pelo por do sol. Outros, ficavam sem dar ou pedir explicações, satisfeitos com a ilusória repetição dos dias, das noites e dos ventos.

      No entardecer, tento compreender o funcionamento dessas luzes que se acendem e apagam como pandorgas transpassadas por súbitos raios de sol na solidão das manhãs de abril. Dediquei minha vida ao espírito do vento, à alma da noite, ao imaginário das sombras, ao funcionamento dessas luzes sem interruptor e ao sortilégio das palavras e da música que ecoa como uma mensagem indecifrável. Na aurora, enxergo o crepúsculo. Ao cair da noite, antevejo o novo dia. Já não acumulo nem conto. As minhas contas agora são de vidro branco ou colorido. Não fosse isso, eu perguntaria: de que é feita a natureza dos que migram para o oriente como aves sem escolha? Ainda decifrarei a alquimia do tempo. Então serei livre como um passante.

     

 


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