Travessa da Solidão

Travessa da Solidão

Um poema do cotidiano

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Outro dia, não faz muito, vi o rosto de uma mulher

Tinha então as brechas dos anos esculpidaa em sulcos

Por um instante, não a reconheci na sua solidão

Mas é a mesma passista que já me vendeu o futuro.

 

Aos poucos, perco essa capacidade das evocações

Apego-me simplesmente ao que vejo enquanto passo

A criança que corre tentando abraçar o espaço

A moça de patinete de cabelos ao vento morno.

 

Na feira, onde verduras colorem as manhãs,

Mãos ásperas recolhem estações e lembranças

Onde foi parar aquele homem que sonhava?

Por que o preço do tomate atinge alturas?

 

Contemplo agora a velha e imensa figueira,

Há nela alguma coisa que em mim se perdeu,

Talvez a seiva, quem sabe essa firmeza?

Igual temos, se bem percebo, a casca.

 

Caminho pelo bairro com passos dobrados,

Para cada caminhada há o seu passado,

Uma chuva inesperada e densa de verão,

A noite descendo com a frieza do inverno.

 

E dizer que ainda ontem, não te lembras?

Estávamos ali, à luz vacilante do dia,

Construindo mundos, fabricando fantasias,

Tecendo a lenda do que somente nós saberíamos.

 

Se de quase tudo me esqueço enquanto caminho,

Ainda me lembro de quando pegamos a lua,

De quando enlaçamos solenes a nossa rua,

De quando partimos para sempre num domingo.

 

Havia um velho sorveteiro na esquina,

A loja de roupas masculinas enfatiotada,

O cinema com as suas portas para a calçada,

Um filme de Fellini num cartaz rasgado.

 

Naquela época, o tempo não era moda,

Salvo para os tristes velhos ultrapassados

Olhávamos o futuro com as mãos espalmadas,

Acenando para a sorte que sorria indiferente.

 

Nos bares, às vezes, por alguma chacota,

Alguém falava em metafísica, imagem, metonímia,

Enquanto cada um de nós ignorava os sentidos

De tudo que não cabia dentro dos nossos corpos.

 

 

Caminho por entre os bosques como um fragmento,

Tenho em cada braço o peso das grandes esperanças,

Algumas se perderam na poeira dos ventos de outono,

Outras retornam quando sopra a brisa da imaginação.

 

Não raro, enquanto avanço lentamente para trás,

Não me constranjo em perguntar: quem sou? Quem fui?

De quem teria vergonha? De mim? Das ruas? Do tempo?

A solidão do caminhante é vista por todo passante.

 

Seria ocioso dizer que trago os braços cansados?

Seria redundante lembrar que as pernas hesitam?

São essas ruas, essas pedras, esses edifícios

Que insistem em estremecer quando eu passo.

 

Ali, naquele canto, havia uma famosa confeitaria,

Ali, onde agora é a lotérica, era uma funerária,

Aquele ali, que se arrasta junto ao prédio branco,

Era atleta e me tomou uma namorada na ditadura.

 

Enquanto caminho olho o tempo nos seus olhos,

São olhos negros, azuis, verdes, castanhos,

Como um rio volumoso e barrento fora do leito,

Um rio caudaloso e fundo tragado pela depressão.

 

Caminho pela manhã com meus passos sem fundamento

Estive no encontro das águas que não se misturam,

Fui ao fundo do tempo em busca de uma ilusão,

Queria ser eterno como uma caminhada no bairro.

 

Agora estou aqui, sempre aqui, no parque que chora,

Quantas árvores já se foram, tombaram, morreram?

Quantos passos ainda ressoam nas suas alamedas,

Passos que um dia bifurcaram para nunca mais voltar?

 

Quem eram esses passantes, passistas, que passaram?

Certamente eu era um deles passando sem o saber

Quando foi que passei? Quando foi que bifurquei?

Para onde me levaram meus passos quando me afastei?

 

Caminho pela manhã com meus passos dormidos,

Tenho os membros gelados à espera do sol,

Tenho a alma dormida à espera da iluminação,

Passo a passo, cruzo a Travessa da Solidão.


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