Tudo se repete?

Tudo se repete?

Entre os séculos XIX e XXI

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      Ler cronistas do século XIX confunde a cabeça do leitor. Parece o século XXI. Com algumas diferenças: o número de mortos e a paixão nacional. Num texto de 5 de junho de 1892, Machado de Assis faz uma observação atualíssima: “Não é só o inferno que está calçado de boas intenções. O céu emprega os mesmos paralelepípedos”. Sofria-se com um surto de influenza. Na Argentina havia 14 mil infectados. O cronista permitia-se uma ironia que hoje o levaria a ser cancelado: “Gente alemã, quando não tem o que fazer, inventa micróbios”. Que que é isso?

      O cronista relata com fingido ar de dúvida: “Nesta semana, por exemplo, vimos todos um telegrama de um Estado (não me ocorre o nome), resumindo a resposta dada pelo presidente a um ministro federal, que lhe recomendara não sei quê, em aviso. Disse o presidente que não reconhecia autoridade no ministro para recomendar-lhe nada. Não sei se é verdadeira a notícia, mas tudo pode acontecer debaixo do céu. Por isso mesmo que ele é azul: é para dar esta cor às superfícies mais arrenegadas do nosso mundo”. Avançamos. Ministros federais médicos dão recomendações sobre medicamentos para o presidente da República, que não só discorda, o que turva o céu, como os troca por um general.

      A época da crônica de Machado de Assis era bastante diferente da atual, “muita gente andava aterrada como a entrada do socialismo na nossa sociedade”. Ora, vejam só! Que coisa anacrônica. Quem pensaria nisso hoje? Abolicionistas, poucos anos antes, haviam sido acusados de comunistas até pelo escritor escravista chapa branca José de Alencar. Restava ao povo encontrar maneira de se divertir como desse. O cronista afirmava que tudo cessava diante da música. Em bom francês, oui, caro leitor, explicava que no Brasil “tout finit par des opéras, et même un peu par des operettes”. Uau! Segundo ele, a música era a “nossa única paixão”. Ou a maior. Ainda gostamos de música. O vídeo da Anitta está aí para provar que a “garota do Rio” é quase uma ópera. Ou seria uma opereta diante da velha e elitista “Garota de Ipanema”?

      No lugar das operas e operetas, o futebol, que não cessa. Até parou um momento. Passou. A CPI da Covid também diverte. Parece um confronto do chamado esporte bretão antes da renovação neotática do catalão Guardiola: tem que entre de sola, quem amarele e não entre em campo, quem queira logo o cartão vermelho para os culpados e quem tente melar o jogo recorrendo ao tapetão. Há quem veja na CPI uma ópera. Melhor, uma comédia. Ou seja, uma farsa. Puro teatro.

       Termino com Machado de Assis para calçar bem o final desta croniqueta duvidosa. O leitor que o interprete à vontade: “...Um afilhado meu, doutor em medicina, pensa que o homem é o condutor pronto e seguro do bacilo daquela terrível peste, mas que eu não acredito, nem no bacilo do mal, nem na balela, que é alemã”. Outros tempos, outra maneira de olhar as coisas? Ou seria a mesma matriz? Um espectro sempre ronda a humanidade. Que nome dar a esse fantasma?


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