Um 3 de outubro histórico

Um 3 de outubro histórico

A revolução que mudou o Brasil

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Nada parecia destinar o gaúcho Getúlio Dornelles Vargas a comandar uma revolução nacional. Mas o Brasil precisará de uma revolução e ele terá a paciência e a frieza para ser o homem certo, no lugar certo, na hora “certa”: 17h30 de 3 de outubro de 1930. Uma revolução, porém, nem sempre se faz na hora certa. Na hora marcada. É questão de muitos ponteiros. É preciso um líder à frente do seu tempo e totalmente dentro dele, um homem em dois tempos. Getúlio sempre sabe, como os melhores jogadores calculistas, esperar o momento certo de agir, o que impacienta seus aliados e desconcerta seus inimigos.
    Ele é o quarto filho, de um total de cinco, todos homens, do general Manoel do Nascimento Vargas, que lutara na Guerra do Paraguai, tornara-se um fazendeiro rico, graças a um bom casamento e a ter escolhido o lado certo na política e nos campos de batalha, e fora um dos baluartes do conservadorismo republicano que mudara o Rio Grande do Sul, com Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, para mantê-lo sem grandes alterações. Nascido na longínqua cidade de São Borja, na fronteira com a Argentina, na chamada “savana verde”, tudo preparava Getúlio para ser um estancieiro, um militar, um chefete da agressiva política local, quem sabe um advogado ou, no máximo, um líder regional. A vida, no entanto, parece divertir-se arranjando-lhe caminhos inesperados. É um homem de sorte. Devia chamar-se Getúlio Bueno.
    O gesto de uma mulher traída alterou-lhe o nome. E o destino? Sua bisavó, abandonada, num fim de mundo, pelo marido – que fugiu com outra na garupa do cavalo num dia de arroubos e nuvens pesadas – pagou o padre do lugarejo para cortar o sobrenome Bueno da sua prole. O avô de Getúlio será então apenas Evaristo Vargas. Os descendentes serão tudo em nome da mãe. Getúlio será muito. Pois o Brasil precisará de muito. É uma nação de miseráveis. Agora, nesta tarde quente, enquanto espera a visita de João Neves da Fontoura, Getúlio pensa nesse Brasil que vem revolucionando. Ele será o ditador do Estado Novo. O esquema que rabisca é muito simples.
Em 1500, os portugueses “descobrem” uma terra que tinha dono e apossam-se dela. Ao longo dos anos, catequizam, exploram e massacram os nativos. Introduzem negros escravos trazidos da África. Em 1822, um príncipe português proclama a independência brasileira. Em 1888, os escravos são libertados e vão somar-se ao grande contingente de miseráveis livres. Essa medida incontornável arrasta o Império, que desaba em 15 de novembro de 1889. Os quarenta anos seguinte constituirão a República Velha. Um tempo de pobreza para a maioria dos brasileiros, de analfabetismo, de fraudes eleitorais disseminadas e de controle da política por “coronéis”.
    O Brasil era a fraude. Uma época que a Revolução de 3 de outubro 1930, comandada por ele, Getúlio, e articulada por seus amigos Osvaldo Aranha e João Neves da Fontoura com mineiros e paraibanos, esmagará, sepultando a política do “café-com-leite”, a alternância no poder central, com raras exceções, de políticos de São Paulo e de Minas Gerais. Getúlio espera. João Neves está atrasado. Faz muitos anos que não se falam. Quase sente saudades. Não quer admitir que está um pouco ansioso.
Tem as mãos úmidas? Não chega a tanto. Sente raiva? O seu autocontrole não permite esse tipo de sentimento. Pensa o passado como se fosse um futuro ainda evitável. Em 1932, quando os “carcomidos” de São Paulo lançarão a contrarrevolução, João Neves mudará de lado. Passará para o inimigo. Perderá. Amargará o exílio na Argentina. Por que fará isso? Por que não se controlará? João Neves acha-se muito inteligente, pensa Getúlio, mas não consegue ver todas as peças do tabuleiro ao mesmo tempo. Falta-lhe a visão global. Vê o passado como passado. Getúlio sorri. Para avançar, é preciso recuar.
    Que lhe dirá João Neves? Que histórias lhe contará? Será capaz de atar os fios da aventura de todos eles? A aventura que vem levando de roldão tantas vidas. A vida, pensa Getúlio, é uma jogada de mestre. Quem é o mestre?
*
    O mestre é ele, Getúlio Vargas. Neste final de semana de lembrar a revolução de 1930, aquela que o Rio Grande do Sul ganhou e que mudou o Brasil, reproduzo o trecho acima de meu livro “1930: águas da revolução” (Record).

Em 3 de outubro de 1930, despachará com o seu secretariado do governo do Rio Grande do Sul, jogará pingue-pongue e iniciará o seu diário com uma pergunta: “Deve ser para hoje às 5 horas da tarde. Que nos reservará o futuro incerto neste lance aventuroso?” Como um asceta, refletirá tranquilamente: “Quatro e meia. Aproxima-se a hora. Examino-me e sinto-me com o espírito tranquilo de quem joga um lance decisivo porque não encontrou outra saída digna para o seu Estado. A minha sorte não interessa e sim a responsabilidade de um ato que decide do destino da coletividade”. Não evitará as grandes questões: “Não terei depois uma grande decepção?”. Não mentirá para si mesmo: “Como se torna revolucionário um governo cuja função é manter a ordem?”
Pensará: “E se perdermos? Eu serei depois apontado como o responsável, por despeito, por ambição, quem sabe?”. Flertará com a morte: “Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso”.

 


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