Um centauro no jardim

Um centauro no jardim

Encontro com Moacyr Scliar em Paris

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      Convivi com Moacyr Scliar em jornal. Ele era muito gentil. Na primeira vez que o vi, ele fora me entregar um livro que eu tinha lhe pedido por telefone. Custei a ter certeza de que era ele mesmo. Percebendo minha cara de espanto e de admiração, não perdeu a piada:

– Queres que eu te mostre a minha identidade?

      Preferi um autógrafo. Outra vez, em crise pela indiferença a um romance que havia publicado, queixei-me a ele que não me reconheciam:

– Posso te mandar um certificado de que és escritor.

      Devia ter aceitado. Ainda me faz falta. O seu livro “Um centauro no jardim” está completando 40 anos. Judith, viúva do Maocyr, organizou uma mesa virtual para comemorar a data, com Claudia Laitano, Cíntia Moscovich e Sergius Gonzaga. Mediação de jornalista Tulio Milman (hoje, às 20h, https://www.facebook.com/MoacyrScliarOficial/). Quando eu morava em Paris, já menos caipira, recebi um convite do Moacyr para um café da manhã, acho que no Marais, bairro de forte tradição judaica. Fui todo feliz. Falamos de “O centauro no jardim”. Eu queria muito ter sido um centauro. Palomense, tendo crescido na campanha, eu me achava meio centauro. Maocyr fez uma consideração bastante pertinente:

– Ainda bem que não és. Em Paris, os espaços são pequenos.

      Cláudia e eu morávamos num studio (pequeno apartamento) de 25 metros quadrados. Todo lilás. Nunca soube se centauros suportariam o roxo. É um belo livro sobre a estranheza. Como sempre fui meio estranho, Cláudia diz que eu não sou normal, me identifiquei com o centauro. Mais com a metáfora do que com o personagem, o judeu Guedali, marcado por sua diferença tornada quase, se posso usar uma palavra tão pomposa, ontológica (“ramo da metafísica que analisa as coisas existentes no mundo, a natureza do ser e a realidade”). Ficou claro?

      Faz falta o Moacyr Scliar. Décio Freitas também. Que tem o Décio com isso? Quando penso num, penso em todos os outros que andavam pela Feira do Livro e já partiram. Até Jean Baudrillard, Michel Maffesoli e Edgar Morin estiveram na Feira. Baudrillard denunciava o fim do real. Que diria agora que o presencial está crise? O vírus fez coincidir a morte do real (substituído pelas fake news) com a agonia do presencial? Guedali tinha outros gatos a chicotear. Quando falo em mais de dois franceses, acabo pensando nessa expressão bem francesa: “Avoir d’autres chats à fouetter”. Scliar era médico. Estaria agora certamente envolvido com a pandemia. Teria um personagem transformado em coronavírus? Volto ao “Centauro no jardim”. Meu exemplar resiste.

      Grande livro. Dá gosto reler. Mantém-se vigoroso. Uma leitora, quando conto histórias assim, disse que eu gosto de me colocar no centro de tudo. Considerei uma injustiça enorme: eu sempre apareço na periferia, à margem das coisas, como uma nota de rodapé. Um satélite orbitando em torno de figuras talentosas como Moacyr Scliar. Um centauro no jardim das cerejeiras. Um estranho no ninho. Uma coisa puxa a outra e assim se faz uma crônica. Não me venha o leitor dizer que há coisas mais sérias para tratar. Um belo livro merece reverência.

     


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