Uma cadela morta em missão

Uma cadela morta em missão

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  Em sua palestra na PUCRS, na semana passada, o sociólogo francês Patrick Tacussel destacou o fato de que as vítimas dos atentados de Paris tiveram direito a necrológio e biografia em jornais como o parisiense Libération. Em outros tempos, seriam apenas estatísticas frias na brancura de páginas pesadas como lápides. Desta vez, foram homenageadas com descrição de gostos pessoais (“gostava de surf”, “adorava dançar” ou “amava viajar”) e a expressão de suas subjetividades. Tacussel chamou isso de sobrevivência espectral.

Fantasmas que permitem aos vivos seguir em frente apesar do horror.

Os vivos e os mortos comuns já não são esquecidos na vala dos insignificantes. Paradoxalmente é possível perguntar: haveria lugar no mundo de hoje para a reverência ao soldado desconhecido morto em combate? Certamente. Mas é a biografia de alguém, mesmo comum, que nos toca mais. A mídia, com seus valores-notícia, só via os “grandes”, as celebridades ou os pequenos transformados em protagonistas de algo extraordinário. Queremos um nome com sua singularidade. Não só de humanos. Uma morte, na caçada aos jihadistas, correu o planeta e virou manchete por toda parte: “Diesel, um cão da Polícia Nacional morto em missão”. Na verdade, uma cadela, de 7 anos, da raça pastor-belga malinois.

Ela foi morta pelos terroristas em Saint-Denis, ao norte de Paris. A notícia foi dada no twitter da polícia francesa. Houve comoção nas redes sociais. Criou-se a hastag #jesuisunchien (eu sou um cão) para render-lhe homenagem.

Uma das tarefas de Diesel era a localização de bombas. A revista L’Express publicou o CV de cães como Diesel, que morreu às 4h20, depois que os policiais dispararam cinco mil projéteis enquanto tentavam arrombar uma porta blindada. A cadela tentava localizar algum explosivo. Um policial não se conteve: “Ela fazia parte do nosso grupo”. Formação de Diesel: três meses de treinamento no serviço especializado em cães da Polícia Nacional; dois meses de aperfeiçoamento em Bièvres. Deverá receber uma condecoração póstuma. Alguns internautas consideraram de mau gosto tamanha comoção no momento da morte de tantos seres humanos. Não receberam grande adesão. Diesel morreu no exercício do seu trabalho. Os cães da polícia são vistos como funcionários. Salvou homens com sua morte.

Em tempos sombrios, estamos aprendendo a valorizar a luminosidade da vida dos animais. Por enquanto, de certos animais. Será que nos tornaremos todos vegetarianos algum dia? Será que, para poupar também a vida das plantas, inventaremos algum tipo de alimento que não precise vir de uma vida eliminada? A humanidade muda. Os seus imaginários são múltiplos e paradoxais. Pena que o imaginário da morte como redenção utópica ainda encontre adeptos. Sob o brilho fulgurante dos novos valores ocidentais, como o do respeito pelos animais, esconde-se o vazio devastador do obscurantismo assassino. Diesel também é mártir? Não sei.

É, com certeza, vítima. Seriam também os terroristas vítimas de alguma coisa? Da falta de sentido, da loucura, do fanatismo, do ressentimento? O rosto imberbe do mentor dos atentados e a morte de Diesel vão nos rondar como espectros.

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