Uma instituição anacrônica

Uma instituição anacrônica

publicidade

Clubinho da ABL

 

A Academia Brasileira de Letras não quis escolher a primeira negra para uma das suas cadeiras. Conceição Evaristo, a melhor escritora brasileira atual, oriunda de uma favela de Belo Horizonte, integrante de uma família de lavadeiras, foi preterida. Os imortais preferiram o cineasta Cacá Diegues. Ganha uma gramática de Evanildo Bechara, outro imortal, quem tiver na ponta da língua o título de um livro de Cacá. Ele disse que a academia é de artes. Uma academia de cinema aceitaria um escritor sem filmes? Tenho dúvidas. Com certeza.

Ganha a coleção completa de obras dos imortais quem citar títulos de livros dos seguintes acadêmicos: Tarcísio Padilha, Joaquim Falcão, Cícero Sandroni, Cleonice Berardinelli, Rosiska Darcy de Oliveira, Marco Lucchesi, Arnaldo Niskier, Antonio Carlos Secchin, Arno Wehling, Geraldo Carneiro, Alberto Venâncio Filho, Marcos Vilaça, Geraldo Holanda Cavalcanti e Cândido Mendes? Quem já ouviu falar nesses nomes? Quem já foi a uma livraria comprar um livro deles? Quem já leu Merval Pereira, José Sarney e Marco Maciel? Se o critério para ser acadêmico fosse ter leitores, só sobraria um na ABL: Paulo Coelho.

Encaparam às pressas uma coletânea de artigos de Merval Pereira para imortalizá-lo. É um caso raro de precocidade: a imortalidade chegou antes da obra. Merval é aquele senhor de bigodinho que balbucia lugares-comuns na GloboNews todas as noites. Costuma fazer previsões do tipo “será uma eleição acirrada” ou “o jogo está aberto”. Sarney e Marco Maciel certamente integram uma categoria especial de imortais: os coronéis do Nordeste. Maciel é de fato imortal. Eu jurava que ele já desfrutava das delícias do outro lado. Não, está firme. Que bom!

A ABL é um clubinho. Não é a qualidade da obra que leva alguém para lá. Os melhores escritores nem costumam se candidatar. Rubem Fonseca, Luis Fernando Verissimo e Luiz Antonio de Assis Brasil não pretendem pagar mico. O exemplo do grande Mario Quintana está quente. O poeta não foi aceito. Perdeu três vezes: para Eduardo Portella, Arnaldo Niskier e Carlos Castelo Branco. Deu o troco em versos: "Todos esses que aí estão/Atravancando meu caminho,/
Eles passarão... Eu passarinho!" Melhor, impossível. Bateu suas asas.

Conceição Evaristo, cujos livros “Histórias de leves enganos e parecenças”, “Insubmissas lágrimas de mulheres”, “Becos da memória”, “Ponciá Vicêncio” e “Poemas da recordação e outros movimentos” estão aí para revelar a sua qualidade estética, poderia mandar um dos seus poemas para dar um choque de realidade nos mortos-vivos: “Barracos/montam sentinela/na noite/Balas de sangue/derretem corpos/no ar/Becos bêbados//sinuosos labirintos/velam o tempo escasso/de viver”.

A vida segue. A ABL perde. Quem se importa? A história. Muniz Sodré, negro e bom de prosa, tentou entrar há alguns anos. Não levou. A Academia Brasileira de Letras continua branca e predominantemente masculina. Só oito mulheres furaram o bloqueio até hoje. Apenas dois negros, o primeiro, o fundador Machado de Assis, que se achava branco, e um de agora, Domício Proença Filho. É uma academia da branquitude.

 

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895