Uma triste tomada de consciência

Uma triste tomada de consciência

Crônica de uma noite em tempos sombrios

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Estavam sempre juntos. Estudavam no melhor colégio da cidade. Uma escola de ricos com bolsas de estudos para pobres. Formavam a turma do fundo. Nove guris barulhentos: cinco meninas e quatro meninos. Tinham 17 anos e todos os sonhos do mundo. Eram inteligentes, nem sempre estudiosos, apaixonados pela vida e uns pelos outros. Rafael era o mais expansivo. Colava em química. Dava cola em matemática. Amava os Beatles e um pouco menos os Rolling Stones. Gostava de samba, de futebol e beijos longos. Quando se metiam nalgum rolo de acabar no SOE ou no SOP, siglas que os faziam tremer e ter muitas histórias para contar, exclamavam aos risos:

– Sempre juntos. Nada nos separa.

      Rafael e Antônio eram os mais pobres da turma. E também os mais populares. Nada que os salvasse de pequenas exclusões, como certas festas em casas palacianas para as quais nunca eram convidados por alguma coincidência que não ousavam enfrentar. Viviam, de segunda a sexta, as delícias da escola praticamente em três turnos. Nos fins de semana, ficavam órfãos. Como não há solidão que dure sempre quando se tem cabelos compridos, ideias flexíveis e amigos arrojados, mesmo em tempos de ditadura, alguém teve a grande ideia, tão óbvia quanto inusitada:

– Vamos juntos à mini neste domingo!

      Foi a Lela quem propôs. Sim, foi ela. A mini era a boate para adolescentes, a balada da época, também chamada de mingau. Rafael e Antônio nunca tinham ido a uma mini. Passavam na frente do clube todos os dias. Não eram sócios. Não tinham grana para pagar a entrada. Jade, com seus olhos negros como o abismo – era assim que falavam dos olhos dela depois que o professor de literatura lera uma poesia do século XIX –, resolveu o impasse num segundo. Era sempre rápida, risonha e linda:

– Eu pago a entrada de vocês. Sempre juntos. Nada nos separa.

      A mini acontecia aos domingos, das sete às onze. Só tocava discoteca. Nunca um sábado foi tão longos para dois amigos. Nem o Gre-Nal do domingo capturou as atenções dos guris. Só pensavam no que viveriam. Às seis da tarde, com o sol ardendo, já estavam na esquina do clube. Pepo e Flavinho chegaram tranquilos. Aquilo não era novidade para eles. As gurias apareceram belas e radiantes. Lá estavam os nove. Sempre juntos. Jade entregou as entradas a Antônio e Rafael. Talvez por timidez, eles ficaram por último. O porteiro nem olhou para Antônio. Rafa deu um passo à frente:

– Tu não – disse o homem, um sujeito alto e de cabelos muito curtos.

      Quem já estava dentro, voltou. Todos passaram a falar ao mesmo tempo. Então o porteiro disse lentamente como se amasse cada palavra:

– Negro aqui não.

– Se ele não entra, nós saímos. Todos juntos – gritaram os amigos.

      Aí um homenzinho de passo hesitante, barba rala, adiantou-se.

– Já ouviu falar em Afonso Arinos? – perguntou.

– Nem branco nem preto – respondeu o porteiro.

– Pois vai ouvir. Ele fez a lei que proíbe a discriminação racial no Brasil. Sou advogado. O guri entra ou vou registrar queixa na delegacia.

      Não teve mingau naquela noite. Os nove amanheceram juntos.

Isso aconteceu há apenas 40 anos.

 


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