Vasos comunicantes

Vasos comunicantes

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Nas aulas de ciências, eu gostava da expressão “vasos comunicantes”. Nas de matemática, adorava a “zona hachurada”. Usava livremente esses termos arrancando gargalhadas e errando questões nas provas. A área da quadra de futebol de salão era para mim uma zona hachurada de cimento na qual eu adorava me jogar em busca de um pênalti. Esfolava os joelhos. Não havia juiz. Só garantia a marcação quem fosse muito forte ou tivesse boas alianças com os capitães das equipes, os donos da bola. O ministro Paulo Guedes sustenta que sem a reforma da Previdência o Brasil não tem futuro.

Se acredito nele, sou obrigado a concluir que toda a nação deve perder um pouco para o país ganhar. Os militares são responsáveis por parte expressiva do rombo da Previdência. Segundo uma estimava, militares pesam 16 vezes mais no buraco previdenciário do que um trabalhador da iniciativa privada. Para 2019, projeta-se um prejuízo de R$ 43 bilhões nas contas da Previdência só por conta dos trabalhadores fardados. Mesmo assim, as Forças Armadas querem ficar de fora da reforma ou ceder o mínimo possível. Representantes dos militares afirmam que eles são diferentes.  Jair Bolsonaro avisou que elas só entrarão no jogo numa segunda etapa. Pelo princípio dos vasos comunicantes, se eles não forem incluídos ou só lateralmente, alguém terá de pagar a conta. Eis a zona hachurada: todos teremos de perder para que eles continuem ganhando. O problema é que vai perder quem nunca costuma ganhar. Pode isso? É justo? Faz algum sentido?

Nada contra os militares, que, como qualquer um, pensam nos seus interesses. Como se dizia popularmente, o buraco (da Previdência) é mais embaixo: por que devemos pagar para que eles ganhem? Pelo serviço que nos prestam? E o serviço que prestamos a eles? O novo comandante do Exército, general Edson Pujol, mostrou-se flexível: “Se houver uma decisão do Estado brasileiro, da sociedade brasileira de mudança, nós iremos cumprir". Poderia ser diferente? Precisa dizer?

Que outra atitude seria possível?

Chegou o tempo da isonomia absoluta?

Todo mundo sendo tratado da mesma maneira salvo nas diferenças demonstráveis e aceitas pela sociedade. Precisamos hachurar todo o conjunto, não apenas o encontro das partes com vantagens negadas à totalidade. Vasos comunicantes: o que uma parte ganha, outra paga. Bota na Constituição o seu interesse quem tem mais força, os donos da bola. Paulo Guedes quer acabar com a aposentadoria pública por solidariedade, princípio dos vasos comunicantes da repartição. Ao isolar cada um numa conta dependente das variações do mercado, liquida o pacto social que coloca gerações em comunicação e tenta garantir uma velhice segura. Estudiosos da matéria, os militares querem fugir dessa cilada. O general Mourão propõe que militares contribuam por 35 anos e paguem 11%.

Uma vez, driblei dois defensores, entrei na zona hachurada e bati a gol.

Acertei no ângulo. O goleiro, forte e dono da bola, anulou na hora.

– O que eu fiz? – gritei, indignado.

– Atravessou a quadra sem passar a bola para ninguém.

– E daí?

– Daí que o jogo é coletivo. Vasos comunicantes.

*

Vasos comunicantes em pílulas:

- As tragédias da Vale têm um denominador comum: privatização. Ambas aconteceram depois que a empresa foi privatizada em nome da eficiência, de rentabilidade e da profissionalização. Ganhar maios gastando menos. Mais obsessão pelo lucro e menos Estado atuante. Não há coincidência nem fatalidade. Só metas a cumprir.

–  A Venezuela é uma ditadura de esquerda que está sofrendo um golpe de direita.

– Quem apoia milicianos tem bandido de estimação.

 

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