Ver o presente nas imagens do passado

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Cabeças rolam enquanto a história passa

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      Michel Vovelle, em “Imagens e imaginário na história”, fala de um romance intitulado “Antoine e Maximilien, ou o terror sem virtudes”, uma reconstrução alegórica da revolução francesa de 1789. Vovelle resume assim o aspecto essencial em questão: “Uma das cenas mais significativas dessa evocação ocorre na casa de Février, estalajadeiro do Palais Royal, onde o banquete dos Indulgentes, reunidos para traçar seus planos sob a direção de Danton, termina com o concurso de pênis, uma espécie de hit parade da turgescência revolucionária. É uma prova cruel na qual Camille Desmoulins faz pálida figura, enquanto Danton afirma a sua personalidade. Robespierre, voyeur impotente em todos os sentidos do termo, assistindo à cena por trás de um espelho falso, vê esborrachar-se contra o vidro o produto olímpico da ejaculação do seu rival”. O que é isso? Pornografia numa coluna escrita para as boas famílias?

      Longe disso. Pode ser somente um modo de entrar no imaginário fálico da política. Ser o mais forte ou o mais aquinhoado, metaforicamente falando, continua a ser um elemento fundamental. Donald Trump faz questão de afirmar que pode tudo. As gabolices, porém, não garantem perpetuação no poder. Danton foi guilhotinado sob acusação, sem provas, de ter participado numa jogada irregular de especulação financeira. Antes de morrer, ironizou seus julgadores: Tenho 34 anos. Nasci em Arcis-sur-Aube, advogado do Conselho, revolucionário e representante do povo. O meu domicílio? Em breve o nada, depois o Panteão da história. Isso importa-me pouco. O povo respeitará a minha cabeça, sim, a minha cabeça guilhotinada”.

      Desmoulins foi preso por ser amigo de Danton. Julgado, não teve direito à defesa. Foi guilhotinado aos 34 anos de idade. Robespierre, que, apesar de ter boa relação com Desmoulins, subscreveu a acusação contra ele, perdeu a cabeça aos 36 anos de idade, três meses depois de ver e ex-amigo “cancelado”. O “incorruptível, como era chamado, morreu sem julgamento depois de sofrer um golpe, entre outras coisas, por ter feito campanha contra o ateísmo e por ter aceito o reconhecimento da imortalidade da alma e de um Ser Supremo. Poucas vezes, sustentam alguns historiadores, um homem foi tão atacado pela imprensa. De santo, porém, ele nada tinha. Ajudou a botar fogo no circo. Todos eles, em algum momento, estiveram convictos de possuir a verdade.

      François Furet, historiador célebre e conservador, com quem tive a honra de conviver, que fez uma releitura original dos eventos de 1789, dizia, rindo suavemente, com sua gentileza costumeira, que a revolução fora uma disputa de virilidades e egos masculinos intumescidos. Cada um queria ser mais potente e bem aparelhado do que outro. A guilhotina cortava cabeças e ilusões penianas. Furet via a mesma tentação nas revoluções comunistas do século XX. Estaria agora o bastão com os populistas de direita pelo mundo: Donald Trump, Victor Orban, Recept Erdogan, Jair Bolsonaro, Rodrigo Duterte? Cada um quer ter menos medo do vírus do que o outro? Não querem saber de proteção. Será que há proteção contra as armadilhas da vida?


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