Vida de gado

Vida de gado

Brasileiros vão trabalhar mais e ganhar menos

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Sábado retradado, fomos ouvir Zé Ramalho no Araújo Vianna, em Porto Alegre.

Eu gosto do tom místico do cantor. Falando, ele é engraçado. Parece uma gravação. Fica meio engessado. Cantando, é demais. As novas gerações desconhecem Zé Ramalho. Ele é do tempo em que as letras, mesmo as mais enigmáticas, diziam alguma coisa. Tem poesia no que Zé Ramalho canta. Eu fui, mais uma vez, especialmente para ouvi-lo cantar “Admirável gado novo”, ou “Vida de gado”. Para mim, essa canção é cada vez mais o hino informal do brasileiro: Êeeeeh! Oh! Oh!/Vida de gado/Povo marcado/Êh! Povo feliz!/Êeeeeh! Oh! Oh!”. Somos nós. Marcados pelos nossos donos.

      Apesar de tudo, gozamos, brincamos, tentamos viver. Mas é cada vez mais duro escapar do ferro em brasa e manter a cabeça erguida. Avançamos muitas vezes como um rebanho, de curral em curral. Exagero? Não. Eu tenho medo do amanhã. Temo pelo que virá. Envelhecer no Brasil é ficar exposto a todos os riscos, a todas as inseguranças, a todas as carências, a todos os preconceitos, à ausência do Estado, paradoxal ausência quando se diz que o Estado entre nós é gigantesco, inchado, onipresente e insaciável. Vejo ali na frente o banqueiro me pedindo sacrifícios, compreensão e colaboração.

Com o que nos acenam os nossos condutores? Com o velho discurso do sacrifício. Depois de uma vida de trabalho, pedem que aceitemos ganhar menos na aposentadoria e esperar mais alguns anos antes de parar. Esses anos de diferença não raro levam direto ao caixão. O que podemos dar ao país? Já não damos enormemente? Sim. Zé Ramalho bota o dedo na ferida: “Vocês que fazem parte dessa massa/Que passa nos projetos do futuro/É duro tanto ter que caminhar/E dar muito mais do que receber...” Na mosca.

      Damos muito mais do que recebemos. Os donos do rebanho sempre encontram um jeito de escapar do aguilhão. Quais são os projetos do futuro? Acabar com a aposentadoria por repartição, baseada na solidariedade e na garantia do Estado, praticada por toda parte, e instaurar o regime de capitalização, experimentado no Chile do sanguinário ditador Pinochet com retumbante fracasso, o que se está vendo agora na hora de colher os resultados: idosos recebendo menos do que o salário mínimo do país e se matando. Mas o doutor acha que aqui vai funcionar.

No caminho – Zé Ramalho resume a tragédia em tom grandiloquente: “lá fora faz um tempo confortável”, “a vigilância cuida do normal”. Povo marcado, povo vigiado, povo conduzido pelas redes sociais. Os homens “correm através das madrugadas”, ou se arrastam como dá até “a única velhice que chegou”. Correm para o abismo: “Demoram-se na beira da estrada/
E passam a contar o que sobrou...” E quase sempre nada ou muito pouco é o que sobra. Zé Ramalho me sacode. Pena que seja agora uma voz do passado.

      Por que o Brasil não taxa dividendos de empresas? Só Brasil, Estônia e Eslováquia dão esse mole. O gado marcado é incitado a crer que por sua culpa o pasto não cresce. Adestrado, passa a defender o que lhe traz prejuízo. Assume para si os interesses de quem o fustiga. Compra o discurso do sequestrador. Dois versos de Zé Ramalho merecem destaque:

 

“O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela”.

 

      Acreditar que cada brasileiro vai conseguir fazer a sua poupança e garantir sozinho a sua aposentadoria é conto da carochinha. Ou do vigário. Por que não é assim na Europa desenvolvida? Por que os Estados Unidos, torre mais alta do capitalismo, sustentam um sólido regime de previdência social pública? A aposentadoria privada é complementar. Tem idade mínima. Consegue o benefício proporcional com dez anos de contribuição ininterrupta. Não há aposentadorias integrais nem para militares.

      O show de Zé Ramalho foi tão bom que me deprimiu. Na volta para casa, vi tantas pessoas dormindo na rua. Todo mundo correndo com medo de assalto. Cada esquina como um continente cheio de perigos. A noite avançando suave como uma lápide. Mais uma vez, eu me lembrei de Zavalita, personagem de Mario Vargas Llosa em “Conversa na catedral”, que se perguntava: quando foi que o país se f...errou? Quando foi que o Brasil se perdeu? Quando foi que o Brasil se ferrou?  A direita dirá que foi quando Lula chegou ao poder. Antes, era o paraíso. A esquerda talvez estabeleça como linha de corte a chegada de Cabral à Bahia. Depois foi só corrupção. O centro negociará cargos. O novo copiará o velho. Um grande laranjal.

      Nós que fazemos parte desta massa, é duro ter de reconhecer que ruminamos nosso pasto sem garantia de envelhecer feliz. Ô, vida de gado, povo abandonado, povo sacrificado, povo de carga, povo cercado por suas elites acostumadas a ter escravos. Quando ouço Zé Ramalho cantar “vida de gado”, chego a ter vontade de ficar em posição de sentido. Com certeza, meus sentidos ficam em posição de alerta. O Brasil desfila diante de mim com suas alegrias e misérias. Povo persistente, incansável, espoliado, chicoteado e manipulado. Zé Ramalho me deixa gongórico. Talvez tenhamos de adaptar Euclides da Cunha: o brasileiro é um sobrevivente.

Como podem as ruas não estar tomadas pela massa que vai trabalhar mais e ganhar menos com a reforma da Previdência? Só uma explicação: as manifestações são convocadas por organizações como a CUT, ligadas ao PT. A população não se reconhece nessas instituições. Tem medo de ser tocada como gado ou de ser metida num curral. Se ficar assim, será abatida sem berrar.

     

 

 

 

 

 

 


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