O amanhã são os contos de Gustavo Czekster

O amanhã são os contos de Gustavo Czekster

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Nao ha amanha

 

"Se não possuirmos uma ideia viva do que é o conto, teremos perdido nosso tempo, pois um conto, em última instância, se desloca no plano humano em que a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me permitirem o termo; e o resultado desta batalha é o próprio conto, uma síntese viva e ao mesmo tempo uma vida sintetizada, algo como o tremor da água dentro de um cristal, a fugacidade numa permanência."
Julio Cortázar, Alguns Aspectos do Conto

 

Gustavo Melo Czekster lança seu segundo livro de contos nesta quarta, 19h, em A Taberna

 

Por Luiz Gonzaga Lopes

 

Quis o destino, este ardil mordaz e fatalista por excelência, que o lançamento do segundo livro de contos de Gustavo Melo Czekster, "Não há Amanhã" (Zouk Editora) ocorresse no mesmo dia que a morte do escritor da verve cartográfica e fluxoconsciente de uma Porto Alegre ou de qualquer cidade que nos perdemos e nos achamos internamente, João Gilberto Noll. A morte de um dos maiores escritores da atualidade só entristece um dia que sói ser de regozijo pela certeza da pena que vira flecha certeira da narrativa curta em seus leitores. Gustavo lança o seu livro nesta quarta, 29 de março, às 19h em um bar, A Taberna (Lima e Silva, 1332). Uma escolha de local baseada na herança europeia medieval, na degustação do hidromel e no falar de literatura como se não houvesse amanhã.

 

Ao justificar o nome do livro, Gustavo afirma que a intenção é o contraponto com a clássica afirmação de Albert Camus em "O Mito de Sísifo": "o absurdo me esclarece o seguinte ponto: não há amanhã." Permito-me continuar esta contraposição ao dizer que há amanhã e o amanhã são os contos de Gustavo Melo Czekster. São tantas coisas a falar dos contos de Gustavo, 30 no total, quatro de uma reincidência astuta, chamados Efemeridade, com inícios (dois parágrafos) iguais, do porteiro simpático Paulo, que é perturbado pelas brincadeiras de crianças no parque e se vê em pesadelos e situações gosmentas e fantásticas. A herança de Maupassant e seu Horla e outros contos fantásticos poderia ser associada a estes contos que se interpenetram em meio ao livro.

 

Já na apresentação, o jornalista, escritor e tradutor José Francisco Botelho delineia a linhagem das criaturas essencialmente literárias em seus cenários vivendi, como Samuel Johnson da Inglaterra da metade do século XVIII, Macedonio Fernández da Buenos Aires da primeira metade do século passado e Gustavo Melo Czekster do início do século XXi em Porto Alegre: "Dotado de uma voz personalíssima e urdindo argumentos inesperados, Czekster engendra, neste livro, um caleidoscópio de estórias que transformam e retratam umas às outras à medida que a leitura avança. Seus relatos podem ser lidos como uma série de pesadelos interligados, sob a toada de alguns temas recorrentes. Uma das facetas desse pesadelo múltiplo é o antigo vanitas vanitatum, do Eclesiastes, a efemeridade das coisas humanas; outra face, menos explícita, talvez seja a autorreflexão perturbadora da própria literatura - ou num sentido mais amplo, o poder ao mesmo tempo criativo e caótico da imaginação, com suas constantes tentações de esperança e desespero".

 

Da minha parte, guardarei considerações mais abrangentes para uma resenha maior que pretendo fazer nas próximas semanas. O que posso falar deste livro é que ele nos submerge neste outro universo, de sonho, pesadelo, dimensão Matrix, simulacro, um mundo onde Gustavo desliza com maestria, como no conto "O Sentido", um banco de pedra no qual alguém senta, no caso na praia de Quatro Ilhas, em Bombas (SC), e compreende o sentido da existência. Narrativa curta e basilar. Borgeana por excelência. Só para falar do jogo de espelhos que é este livro de contos. No conto "Um Outro Sentido", uma jornalista e crítica literária considera que "Não Há Amanhã" despreza o seu leitor, o anti-livro, que leva os personagens a se perderem na penumbra de um bosque sem um mísera nesga de luz a guiá-los. Sem querer contar o conto, a jornalista fica ressentida de Gustavo não querer responder a suas 38 indagações sobre o livro, a carreira e também sobre o primeiro livro de contos "O Homem Despedaçado", passando a duvidar da existência do autor e ao confirmar que ele existe planejando matá-lo. A morte também povoa os contos, seja na vingança de um literato ressentido com o seu mentor, que resolve matá-lo por meio de um texto cujo antídoto está em sílabas dentro de 2.247 palavras ("A Passionalidade dos Crimes") ou o incentivo ao suicídio com uma epígrafe irônica da cantora e apresentadora Angélica de se jogar ou pular, se fosse a Sandy ("Os que se Arremessam") e ainda um parque que fala com duas pessoas indicando que eles são um para o outro, só que um ouve plenamente e o outro fica confinado á busca infinita por não decodificar tão bem os símbolos ou pelo parque não indicar onde está o amor ("A Discursividade dos Parques").

 

O amanhã são os contos de Gustavo, que ontem fundia o erudito com a narrativa fragmentada (O Homem Despedaçado) e hoje (Não há Amanhã) nos convida ao sonho, à miséria e á beleza humana, ao jardim dos caminhos que se bifurcam, borgeanamente falando.

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