A magia das contações presenciais de histórias retorna à Feira do Livro

A magia das contações presenciais de histórias retorna à Feira do Livro

Na edição de 2021, atividade é retrato de um evento e uma sociedade em busca da reconquista de sua alegria

Lucas Tillwitz / Ufrgs

O aguardado reencontro entre artistas e espectadores

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“Para estar presente a gente não precisa estar junto, sabia?”, afirma o personagem Duende Samambaia a duas turmas de crianças entre dois e cinco anos da Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) da Vila Elizabeth, de Porto Alegre. “Isso porque a gente tem uma grande virtude: o poder de imaginar”, completa o herói interpretado por Arthur Côrtes, que estreia como contador de histórias na Feira do Livro da Capital justamente no retorno do evento à Praça da Alfândega, um ano após a edição remota de 2020.

“A poesia pede passagem”, tema do espaço infantil em 2021, dá o tom da atividade. A ação ocorre em um contexto marcado pelo fim da expectativa do reencontro e em meio a cuidados com a pandemia. Se a atual realidade ainda requer cuidados e desperta temores, é por meio da imaginação e da magia da contação de histórias que a literatura e o teatro continuam a encantar crianças e também adultos. Em meio a máscaras, álcool em gel e orientações sobre distanciamento físico, as experiências na área persistem em produzir arte que forma e transforma pessoas.

Retorno

Carmen Lima, intérprete da Fada Borboleta e veterana em contações de histórias na Feira, é quem compartilha o palco com Arthur. No tablado e fora dele, a atriz não esconde o entusiasmo com a volta da atividade à Praça. É com olhos vivos que a artista revela os sentimentos despertados pelo reencontro com pequenos e pequenas. “Eu me sinto muito viva aqui”, brada Carmen. “O espaço está incrível, o cenário está fantástico, os nossos figurinos estão lindos. E o público está chegando com muita expectativa, com muita sede por histórias e por contato, por vida”.

Arthur também não contém a empolgação com a experiência presencial da atividade, que acontece após um 2020 de difícil adaptação pessoal ao meio virtual. “Eu não participei de contações on-line. Eu fui um contador de histórias que renegou toda essa coisa de contar para uma tela fria, com aqueles quadradinhos, porque eu sou um cara do teatro de rua, então tem que ter a presença”, afirma. “Essa experiência está sendo incrível. É como a Carmen falou: a gente estava sedento por esse reencontro. São muitas emoções que a gente vivencia aqui”, diz o ator, que se diverte com a reação eufórica das crianças frente às aventuras do duende e da fada.

Híbrido

Nas contações, ator e atriz, assim como os artistas Bárbara Catarina e Jairo Klein, revezam suas ações entre dois públicos: as plateias na Feira e no on-line. O evento em 2021 inaugura o modelo híbrido da atividade, com as ações presenciais sendo transmitidas simultaneamente pela internet e gravadas para posterior acesso gratuito pelo público no canal da Feira no YouTube. A programação oficial completa pode ser acessada no site oficial da Feira do Livro.

Segundo Wagner Coelho, produtor cultural da Área Infantil do evento, o híbrido é uma característica que irá e deve permanecer em edições seguintes. Para ele, a presença do projeto na internet populariza a experiência, além de instigar a curiosidade de pessoas pela ação. “Eu acho que o modelo híbrido vai continuar. Tem que continuar, porque democratiza o acesso, leva a contação para outros lugares. E também às vezes aparecem aqui pessoas dizendo que viram no on-line e por isso vieram à Feira ver”, afirma o produtor.

As experiências de contação, cujo último encontro ocorre em 15 de novembro, às 17h30min, já permitem avaliar a implementação do formato híbrido. "Hoje, a gente está aprendendo a lidar com o híbrido em meio à pandemia. Muita coisa ainda precisa ser afinada”, avalia Wagner. “No começo, a gente tinha um pouco de receio que as crianças não tivessem cuidado com os protocolos. Mas elas têm noção, e os professores chegam aqui com elas bem encaminhadas”.

Importância

Dois anos. Assim como os demais admiradores da Feira, foi esse o período de tempo em que os alunos e a equipe da Emei da Vila Elizabeth, no bairro Sarandi, ficaram distantes presencialmente da sua feirinha. Graziela Spolavori, coordenadora Pedagógica da instituição, revela que o retorno era muito aguardado pelas crianças, e pondera sobre a importância da Feira aos pequenos. “Essa contação diferenciada, com a teatralização, faz toda diferença para o interesse das crianças pelas histórias. É muito importante que elas vivenciem isso, porque aqui há a formação de memórias afetivas com os livros a partir da contação”, afirma a educadora.

Marília Forgearini Nunes, docente na Faculdade de Educação da Ufrgs e cujas pesquisas tem como um de seus focos a formação leitora, avalia que a contação de histórias pode auxiliar no desenvolvimento das linguagens oral e corporal em crianças. “Na contação, a gente pode ter vários recursos. As contações na Feira tem palco, cenário, pessoas que usam adereços e diversas entonações de voz. Na infância, é uma experiência bastante importante em relação ao desenvolvimento da criança”, diz a professora. “Na contação, as crianças veem possibilidades de fabular usando o corpo, diferentemente da leitura literária silenciosa, que envolve o código verbal e as imagens no livro. São diferentes recursos empregados, todos fundamentais para a constituição humana e sensível de sujeitos.”

A atividade também tem relevância para quem escreve histórias, aponta a escritora e patrona da Feira de 2011, Jane Tutikian. Também autora de literatura infantojuvenil, ela classifica a sensação de ter suas obras contadas em feiras do livro como “um sentimento muito bom”. “Em uma contação de histórias, não importa que o escritor não esteja fisicamente presente. Porque ele vai estar presente através dos seus textos. E um texto só cumpre o seu destino na medida em que ele chega aos leitores”, avalia Jane.

“A contação de histórias na Feira tem dupla importância”, pondera a autora sobre a contribuição da atividade ao processo de formação de leitores na infância. “A primeira é levar as crianças à literatura. É fazer com que eles descubram esse mundo. Mas as contações também têm a função de fazer pais e professores compreender que abrir o mundo da literatura às crianças é uma responsabilidade de todos. E quem mostra isso, quem aponta isso, e aponta sempre de uma forma brilhante - interpretando texto, fazendo com que as crianças participem -, é o contador de histórias.”

A animação de Arthur e Carmen em meio à contação é tamanha que os artistas poderiam facilmente ser confundidos com as mais de 30 crianças no recinto. Não fosse, é claro, a grande diferença de altura e as extravagantes vestimentas em verde e amarelo. “Aqui tu tem aquele brilho no olho, aquela resposta imediata”, afirma Carmen, emocionada. “Nós passamos por um período bem atípico, mas agora estamos retornando com todo gás, com todo calor humano”, completa a atriz, ao lado do colega - ele usando um chapéu e ela com asas esvoaçantes, ambos prontos para continuar a encantar.


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