O beco da Rua da Praia

O beco da Rua da Praia

Conheça a história do livreiro do Beco dos Livros e sua resistência aos tempos atuais.

Laura Fassina / Ufrgs

Peter Dullius, de 71 anos, é o fundador das quatro unidades do Beco dos Livros, espalhadas pelo Centro Histórico de Porto Alegre

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Quando as luzes se apagam no sebo da rua dos Andradas, antiga rua da Praia, uma conferência noturna inicia. Sapatos lustrados, ternos engomados e bigodes aparados são o traje a rigor do evento. Às 22h, descem pelos três lances de escada os convidados, para o encontro no meio da sala. “Os meus continuam aqui”, diz Vitor Hugo, desanimado. Seus livros não são folheados há mais de um ano. Mas ele não está sozinho. Estão lá Rui Barbosa, Machado e Alencar para apoiá-lo.

Essa história é fruto da cabeça de Peter Dullius. Um senhor de 71 anos, fundador das quatro unidades do Beco dos Livros, espalhadas pelo Centro Histórico de Porto Alegre. Sua fértil imaginação começou aos 6 anos, quando se envolveu em um naufrágio em uma remota ilha tropical. Por lá, encontrou Robinson Crusoé e passou 28 anos em 278 páginas o conhecendo.

Filho dos agricultores Melita Fischer e Vilibaldo Dullius, cresceu em Cruzeiro do Sul na década de 50. Com cinco filhos mais tarde, os pais de Peter o colocam em um colégio interno, no município de Estrela. De manhã, à tarde e à noite, ele imerge nos grandes clássicos e aprofunda sua paixão pela leitura. A escola religiosa exclui muitos livros do catálogo, mas ele não se contenta e vai à procura da literatura profana.

Das bibliotecas à temida prova do vestibular, o jovem Peter chega em Porto Alegre “com uma mão na frente e outra atrás”. Em 1970, ele conquista o terceiro lugar na Universidade Federal do Rio do Grande do Sul, para cursar Economia. Embora letras e números não se misturem, sua graduação o levou a viajar por todo o Brasil.

Ele cai no mundo com apenas 25 anos. Passa pela Alemanha, volta para o Brasil, conhece sua ex-mulher e vai morar em uma chácara com mais de 400 árvores frutíferas. Nascem Guilherme, Melissa e Gustavo, e a família se completa. Mas algo faltava. Percorrendo os olhos pelas folhas brancas do Correio do Povo, ele acha o anúncio de venda do ponto da Livraria Londres e encontra o que buscava.

A alcunha pela qual já era conhecido, por ser estreito e comprido, o nome veio fácil: Beco dos Livros. Então, no Carnaval de 1992, Peter Dullius se torna livreiro. Nos próximos anos, ele expande o sebo para sete estabelecimentos, mas acaba concentrando esforços na rua Riachuelo, rua General Câmara e, em seu xodó, a rua dos Andradas. Seu filho mais velho, Guilherme, e sua ex-companheira entram para o comércio e isso acaba se tornando negócio de família.

Resistência e Paciência

“Hoje, um senhor, que não saía há dois anos de casa, chegou na minha loja. Ele disse: ‘Comprei os livros porque vou voltar ao normal’”. Com quase 30 anos de experiência no ramo, o livreiro fala sobre o cliente desconhecido com muita felicidade. Seleto e paciente, Peter resiste à crise sanitária e suas consequências que afetaram a economia.

A leitura aumentou, mas o lucro diminuiu. “Na pandemia o grande problema foram os colégios e as universidades fechadas. Sem essa demanda, vendi mais livros de autoajuda, espírita e literatura fantástica, mais on-line do que presencial”, explica o vendedor, lamentando sobre os clássicos. “Você escreveu obras e obras, mas agora ninguém as lê”.

Para Peter, o leitor contemporâneo segue a tendência do que é novidade. “Uma livraria de livros novos tem em suas estantes 200 títulos, que foram editados nos últimos 6 a 12 meses. É a literatura da hora. Em um sebo, você encontra os livros que foram editados nos últimos 100 anos ou mais. Isso povoa a imaginação. A pessoa que entra, entra num mundo. Ela recua no tempo.”

Com mais de 300 mil títulos editados há mais de 100 anos, ele sabe que os preços baixos, a diversidade e a quantidade de raridades que seu sebo possui é o que o faz tão valioso. Apesar disso, indica algumas dificuldades. “O livreiro tem que se estabelecer no Centro, onde tem movimento. Os aluguéis ficaram mais caros. E, em uma crise, você corta os gastos e foca nos bens essenciais. Não é que o livro não seja essencial, mas é que ele fica para depois.”

Das 11h às 16h, todos os dias do ano, você encontrará Peter Dullius na rua dos Andradas, 697. Nesta semana, ele se desdobra nas lojas e na banca 7 da Feira do Livro, onde expõe seus livros tratados com carinho e seus 26 anos de atuação no evento. “De 110 barracas, hoje há 56 na Feira. Mas isso não muda o ambiente. Ela está muito bonita. Eu não esperava para esse ano, eu esperava tudo muito rígido ainda. Mas não, ela está solta, está muito além. Ela foi muito além da expectativa, o tempo ajudou.”


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