A boa e velha impunidade

A boa e velha impunidade

"Ele nunca entendeu como um juiz consegue tratar uma pessoa apenas como um número na capa de um processo”. Esta fala é da personagem Bibiana, ao irmão Martín, no belíssimo “Ainda que a terra se abra”, livro que o escritor Rodrigo Tavares lançou recentemente pela Editora Taverna.

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Coluna da edição impressa de 11/7/20

“O pai não teve dúvidas. Resolveria aquilo como homem. Não acreditava mais na Justiça, na polícia, nada disso. Quando confiou, o resultado foi aquele que a gente sabe. Ele nunca entendeu como um juiz consegue tratar uma pessoa apenas como um número na capa de um processo”. Esta fala é da personagem Bibiana, ao irmão Martín, no belíssimo “Ainda que a terra se abra”, livro que o escritor Rodrigo Tavares lançou recentemente pela Editora Taverna. Ela fala sobre como o pai decidiu fazer justiça sem percorrer os caminhos legais. Onde, pelo que viveram e sentiram, aprenderam, entre outras lições desastrosas, que homicídio culposo pode não passar de “um homicídio sem culpado”. Procurem este livro e o leiam com atenção. É uma história contundente sobre violências, preconceitos e traumas. Partidas e retornos. Além de um romance inquieto e denso, o olhar atento de Tavares passeia sobre um pampa rural que se debate entre o tradicional e o moderno, na sempre necessária reflexão sobre o que é imposto e o que não nos atende.

O vereador preso pela Polícia Civil, por tráfico de drogas, já havia sido preso outras duas vezes em dois anos. O estuprador de duas filhas meninas, no Piauí, já havia sido preso por estuprar e matar uma bebê de seis meses, também sua filha, anos antes. Um traficante preso esta semana em Caxias do Sul, pela Brigada Militar, já havia sido preso em março deste ano com armas e drogas. Uma mulher, após apanhar a cadeiradas do companheiro contra o qual já tinha medidas protetivas, viu ele ser preso, igual já havia sido cinco outras vezes. Já está solto o motorista bêbado que atropelou um ciclista que, arremessado por 50 metros, não resistiu aos ferimentos e morreu? E o arrombador de residências, preso pela 53ª vez? Meros exemplos da arraia-miúda. Dos crimes que ocorrem nas paisagens fora dos postais, onde as vítimas são sempre anônimas. No máximo, notícias tão trágicas quanto efêmeras. Números nos processos. Pouco importam.

O mais triste legado dessa boa e velha impunidade, é a falta de fé no que deveria ser a mais nobre representação de uma sociedade organizada. Justificativas plausíveis e discursos floreados, são como água que bate no rochedo das tristezas reais. Dos dramas individuais e familiares, da impotência e da descrença. Mas se ficar na falta de fé, ou no feitiço virtual que transforma perfis de redes sociais em pulverizadores do ódio, não é nada. Pior é essa cultura de justiça pelas próprias mãos passar à prática. A barbárie ameaça voltar a passos largos. E ela vem com a verborragia da intolerância disfarçada de insatisfação. O velho Aramis, personagem de Rodrigo Tavares, deu um cotovelaço na justiça e, na falta de fé -  ou com fé no que lhe era mais certo -, “resolveu como homem”. Ficção com tons pesados de uma triste realidade.


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