Tem que haver salvação
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Tornamo-nos amigos. Parceiros. Conversávamos de literatura – ele escrevia alguns textos e me mostrava – à depressão que, a certa altura da vida, estremeceu ambos. Homem gentil, inteligente, humano. Paizão. Ético, tratava todos com a mesma polidez, dentro ou fora do quartel. Éramos partidários da neutralidade política, da legalidade e do equilíbrio, porque alguém precisa ficar de fora para mediar os conflitos em dias difíceis. Embora, como uma grande mente, ele fosse pensador crítico. Mas nossas concepções e observações restringíamos às conversas pessoais. Estudamos e fizemos juntos a prova para o curso, no início do ano passado, que nos habilitaria a promoção a major. Não deu. Ele fez só para ter experiência, apostaria em 2019. Eu, outra vez, caí por minha incapacidade pulmonar. Ele pediu que eu me tratasse. Há poucas semanas lhe mostrei os bons resultados de uma espirometria, o tratamento acertado. Então combinamos estudos. Seríamos colegas de aula, parceiros de viagem à capital, majores no futuro. Eu brincava que minha aposta era só nele. Éramos vizinhos de bairro. E, nos dois batalhões onde convivemos, vez ou outra ele entrava na minha sala, fechava a porta e desabafava inquietações funcionais ou debatia algum novo livro. Saía dizendo, voz firme, “foi bom, veterano, foi bom, vamos lá!”. E seguia sua rotina de fazer a diferença. Porque era um grande profissional. No front e na retaguarda. Não à toa o Comando Geral da BM o reconheceu como tal, em cerimônia recente.
Então ele decide nos deixar. Sem se despedir. Recebi a notícia trágica por telefone assim que dei dois passos para fora do ônibus, após uma eufórica noite xavante em Pelotas. Perdi meu chão. Tá difícil acreditar. Uma colega de farda, que cursa Psicologia, sempre insiste no quanto precisamos procurar ajuda. O número de policiais que cometem, ou cogitam, suicídio só cresce. Mas não quero estatísticas. Nem quero só chorar outra falta. Preciso fazer algo. Não sei nem o quê. Deve haver um jeito de mudar isto. Tem que existir uma tábua de salvação. Não dá mais para perder quem amamos, toda hora, só porque não prestamos atenção.