A comida como manifestação de cultura

A comida como manifestação de cultura

Rogério de Vargas Metz *

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Hoje, ao ligarmos a televisão, com certeza encontraremos programas e pautas sobre receitas de algum prato. O mesmo acontece com as redes sociais, onde criadores de conteúdos aparecem cozinhando ou falando sobre receitas e comida. Mas, mesmo cercados desse assunto, refletimos sobre a cultura que manifestamos através da comida? Nem sempre. 
Sugiro pensar a comida como cultura em três pontos. O primeiro ponto se refere à produção. Atrelamos a produção de comida ao nascimento da agricultura, muitos e muitos anos atrás. Também às transformações de algumas raças de animais selvagens em domésticos. Agricultura e pecuária nascem porque o homem deixa de ser nômade, ou seja, ele deixa de se locomover em grandes distâncias, comendo o que encontra pelo caminho, e acaba se fixando em determinados locais, aprendendo a lidar com a terra, para que ela provenha a sua comida. Tudo que engloba o estudo deste período histórico é repleto de cultura. 
O segundo ponto se refere à preparação. Os destaques deste ponto são a descoberta do fogo, que foi primordial para o avanço da relação do homem com o alimento e a comida. Importante destacar que anteriormente à descoberta e domínio do fogo pelo homem, as comidas não tinham gosto bom, mas era só o que se conhecia. Alguns teóricos afirmam que somente nos desenvolvemos como seres humanos, atingindo níveis de capacidades que possuímos nos dias de hoje, devido ao uso do fogo na transformação dos alimentos em comida. Foi também através da descoberta e domínio do fogo que o homem daquela época conseguiu se defender de predadores e se aquecer, o que também foi decisivo para a sobrevivência da nossa espécie. 
Outro destaque é a diferença entre alimento e comida. Para muitos, são a mesma coisa. Porém, já que estamos falando de comida como cultura, alimentos são transformados em comida através da cultura. Por exemplo, uma berinjela, uma cenoura, um tomate, são alimentos em qualquer local do mundo. Mas, quando são atravessados por diversas culturas existentes, se transformam em comidas diferentes. Quando nós, brasileiros, gaúchos, sulistas, possuímos uma berinjela, a transformamos em uma comida, colocando em prática um saber fazer (cultura) que nos faça sentido. Tanto através de uma receita de família, passada de geração em geração, ou através de uma maneira nova de prepará-la por uma pesquisa que fizemos, ou quando somos atingidos por algum dos milhares vídeos rápidos do TikTok, onde ensinaram uma maneira diferente e interessante de preparar a berinjela. Então, alimentos são transformados em comida através da cultura, e isso os torna diferentes. 
Avançando no segundo ponto, chegamos à escrita, e como ela também modificou o trato com a rotina alimentar dos indivíduos daquela época, e as divisões que começam a se pronunciar, como entre quem sabe escrever e registrar histórias ou receitas, e quem não sabe, mas transfere o conhecimento através de formas orais e práticas. Neste aspecto, a comida é usada para fortificar as diferenças sociais, pois assim as elites impunham respeito sobre as camadas mais pobres, o que ainda acontece na contemporaneidade. Como vimos, o segundo ponto está repleto de inúmeras referências a culturas de diferentes sociedades. 
Assim chegamos ao terceiro ponto, que é quando a comida é finalmente consumida. Não há comida boa ou ruim. Foi alguém que nos ensinou a fazer esta distinção. E o órgão que distingue o bom do ruim não é a língua, mas sim o cérebro, que culturalmente aprende e transmite critérios de valoração. A definição do gosto das pessoas faz parte de um conjunto de patrimônios culturais dessa sociedade. Assim, como as diferentes comunidades têm suas próprias predileções, elas podem sofrer mudanças ao longo do tempo. Sendo incentivado pelo apetite, fome e sede, o gosto é o suporte para que os indivíduos cresçam, se desenvolvam e se conservem. 
Desta forma, o gosto tem duas funções principais, (1) é um convite, através do prazer, a compensar as perdas que o tempo e a ação da vida exercem sobre as sociedades, e (2) auxilia na escolha, entre as variadas opções que a natureza oferece, do que é próprio para o consumo.
O conhecimento do gosto de civilizações antigas passa por duas interpretações diferentes do termo. A primeira é quando o ponto é o sabor. A sensação pessoal que passa pela língua e pelo palato, ou seja, cada pessoa tem uma experiência diferente, só sua. A segunda forma de entender o gosto é pelo saber, a avaliação sensorial do que é bom e o que é ruim, o que satisfaz e o que não satisfaz, e neste caso, essas avaliações não são formadas na língua e sim no cérebro. Se trata de um processo cultural que é carregado desde o nascimento juntamente com circunstâncias que ajudam a estabelecer valores da sociedade. 
Anthelme Brillat Savarin, em 1826, escreveu na obra Fisiologia do Gosto: “diz-me o que comes e te direi quem és”. Queria dizer basicamente que o modo de comer de alguém, revelava a sua personalidade. 
E sabemos hoje que a personalidade é completamente moldada pela cultura. Mesmo quando uma mesma comida é presente na cultura de diferentes sociedades, elas podem apresentar diferenças. Por exemplo, o chocolate tem diferentes níveis de doçura dependendo onde está sendo comercializado. 
Olhando para estes três pontos, é possível identificar que há muita cultura na comida que produzimos, preparamos e consumimos. Um prato de comida nunca é somente um prato de comida. 

* Autor: Rogério de Vargas Metz -  Gastrônomo, mestre e doutorando em Processos e Manifestações Culturais, pela Universidade Feevale


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895