A Epifania de Luiz de Miranda

A Epifania de Luiz de Miranda

José Eduardo Degrazia *

"Se existe imortalidade em termos de arte, o poeta Luiz de Miranda a alcançou"

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                                                                        "Seguirei na lonjura

                                                                        o caminho que não sei.

                                                                        Por meses,

                                                                                            me julgaram morto,

                                                                        o pesadelo do adeus

                                                                        adejava a minha sombra."

                                                                                    Luiz de Miranda

 

Alguns dias antes dele ser internado, encontrei Luiz de Miranda vagando sozinho no centro de Porto Alegre. Sua prima Gláucia me avisara. Era um sábado pela manhã, um dia luminoso e frio, e eu estava com o Caderno de Sábado do Correio do Povo nas mãos, onde saíra o meu artigo sobre "Porto Alegre: Roteiro da Paixão", o melhor livro de poemas, até agora, sobre Porto Alegre. Na corrida para encontrá-lo, deixei o jornal sobre a mesa e, tenho certeza, ele não chegou a lê-lo. Logo foi levado para uma UPA pelas diligências da Prefeitura de Porto Alegre. Depois, foi transferido para o Hospital da PUC. Fui chamado para completar a baixa hospitalar, pois ele chegou lá sem nenhum documento. Mas voltemos à última caminhada pelo centro da cidade que ele tanto amava.

Recém tinha saído da Galeria 7 de Setembro. Alguém avisara a Gláucia que me passou a notícia. Encontrei-o caminhando muito lentamente, parando para respirar a cada passo. Estava vestido com suas roupas escuras, usando o tradicional chapéu preto de copa baixa. Quando me viu, sorriu, botou a mão sobre o meu ombro, e fomos lentamente nos encaminhando para o apartamento que ele habitava, na rua Siqueira Campos. Tivemos, naqueles minutos lentos de sua caminhada, uma bela conversa, em que ele estava perfeitamente consciente do que estava acontecendo. Começou me contando, em tom de brincadeira, que dera uma entrevista para uma rádio, em que dissera que viveria até os 90 anos. Tornei a dizer, que ele poderia viver muito, se se cuidasse, e fosse para algum lugar onde recebesse cuidados. Não poderia mais viver sozinho. Lembrei da semana anterior, em que no apartamento eu tentava convencê-lo a ser levado para uma clínica e ele me disse que sempre vivera assim, não queria mudar. Ali era a sua casa, tinha a liberdade que em outro lugar não teria. Assim foi, até o seu fim.

Na metade da caminhada ele me falou sobre o que representavam os seus amigos, que para ele eram muito importantes. Disse-me ele, em tom melancólico: “Todos os meus amigos escritores são jornalistas, advogados, médicos. Construíram suas carreiras e escreveram suas obras. E isso foi muito bom. Eu não, só construí a minha poesia.” E essa construção, de bases extremamente sólidas, a poesia que escreveu de maneira iluminada, ficará, com certeza, na literatura do Rio Grande do Sul e do Brasil. Se existe imortalidade em termos de arte, o poeta Luiz de Miranda a alcançou.

Uma quadra antes de chegarmos no apartamento, ele começou a lembrar dos anos 70 quando éramos jovens, e ele me disse: “Com esses teus olhos verdes todas as gurias queriam te namorar”. Bons tempos aqueles, eu disse, rimos, e continuamos a falar de coisas de amor e desencontros até que o deixei deitado no colchão, no apartamento vazio em que vivia. Outros amigos já haviam acionado a SAMU para levá-lo para o posto de saúde.  Voltemos ao poema que ele dedicou a mim, no livro "Trilogia do azul e do mar", Editora Sulina, Porto Alegre, 2000, pp. 63-64:

 

                                                         "Só assim se volta do vendaval.

                                                         Meu sonho se refaz

                                                         e nada é igual.

                                                         O mundo gira

                                                          e não volta para trás.

                                                          O futuro está além do que procuro."   

                                                     

                                                      


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895