A liberdade na estética de escrever

A liberdade na estética de escrever

Eron Duarte Fagundes*

Ilustração de capa de "O Inventor da Eternidade" é de autoria de Eduardo Vieira da Cunha

publicidade

Ao longo dos anos, escrevendo muitas crônicas para jornais, Liberato Vieira da Cunha tem exercitado sua liberdade na edificação duma estética de escrever. O choque de sua prosa de densidade poética (simulando a superficialidade ou descompromisso das observações cotidianas) posta ao lado dos textos jornalísticos que se inserem junto destas crônicas de exceção, tem chamado a atenção por essa coexistência estranha, o escritor de exigências (Liberato) e o texto comum do jornal, sem criação ou pessoalidade. As relações entre literatura e jornalismo têm sua simbiose na arte de Liberato: uma literatura sem pompa e criativa. Seus romances não deixam de ser extensões destas inquietações, o universo ficcional de Liberato é em muitos aspectos habitado pelas crônicas que escreveu, objetividade e poesia coabitam as narrativas longas do autor. Com o tempo, o ficcionista depurou estas tensões em que se reparte sua forma de escrever. Em sua terceira investida como romancista, "O inventor da eternidade" (Almedina/Minotauro, 2022), Liberato reinventa-se e propõe, desde o título de sua história, a essência da arte como uma invenção, o que se inventa é a eternidade.
 
Santelmo Cimbres, o professor de estética que numa manhã de 1984 é demitido da universidade às expensas do regime autoritário então agonizante, e, naquela confluência histórica do país, tensa e ambígua, vai ter de embarcar em seu Ford Corcel, sumir por aí e vai dar num esconderijo chamado Quinta do Torreão, como nos tempos mais ásperos da resistência à ditadura militar instalada vinte anos antes. Para além da personagem central da trama, Santelmo poderia ser o próprio usufrutuário estético do livro que Liberato põe diante do leitor, afinal esta personagem é professor de estética, e literatura é um dos modos da estética também, e pode-se imaginar uma personagem que sai do livro e se apresenta como um crítico deste livro. Santelmo olha uma tela (uma pintura). No discurso usado por Liberato o leitor acompanha o narrador confundindo sua palavra com o pensamento da personagem: “A composição lhe pareceu tão absolutamente viva e perfeita que ele se perguntou se não seria realmente a invenção da eternidade.” Sua acompanhante, Beatrice, lhe aconselha, agora já no discurso direto: “—Pode pronunciar essas frases em linguagem de gente?” Ele se esforça na tradução. O leitor de "O inventor da eternidade" volta atrás no texto e compara. Como achar melhor forma para a sensação que aquela tirada de Heráclito: “Todas as coisas procedem de uma, e essa uma está em todas as coisas.” Há conceitos que se fundem em determinadas linguagens, que não admitem substituições ou traduções para a linguagem de gente.
 
"O inventor da eternidade" traz um constante espetar político e histórico para dentro do lirismo estético de Liberato (que muitas vezes tem aspectos fugidios e até secretos). No entanto, não se trata dum romance político, ainda que se cerque das circunstâncias políticas. É como se estivéssemos dentro dum porão, navegando em nossos fantasmas emocionais e doentios (Santelmo ama na calada dos dias em seu retiro a Beatrice mas tem uma doença terminal); então, entre os sucessos daqueles dias escondidos e íntimos podemos espiar por uma fresta, dando com uma luz duma espécie de trovão que passa a iluminar certos momentos de atmosfera penumbrosa. Em 1984, onde se passa a história contada, como agora, quando o romance vem à luz, nos gestos finais de 2022, um ano que teve lá suas perversidades.
 
* Crítico literário e de cinema.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895