A linda loucura que cabe no berimbau
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A cantora, percussionista, produtora cultural e socióloga, Nina Fola, analisa o documentário “Berimbauzeiro”, selecionado para participar do Festival Internacional do Documentário Musical, o In-Edit Brasil, que ocorre entre os dias 15 e 26 de junho, com sessões presenciais em São Paulo e online para todo o Brasil. O curta-metragem idealizado e dirigido por Magnólia Dobrovolski, Marco Poglia e Mário Eugênio Saretta apresenta a originalidade da relação de Mestre Churrasco com o berimbau; suas criações poéticas com o instrumento extrapolam o universo da capoeira e evidenciam o poder de criação deste mestre no Rio Grande do Sul.
A oralidade tem sido pensada e descrita com maior evidência dentro dos estudos sobre a diáspora africana nos últimos 30 anos. Estes estudos constatam que a população negra diaspórica ainda carrega em seus corpos o legado do que foi possível de ser trazido e mantido, mesmo após a violenta viagem atlântica. Nos corpos, mora a memória existencial da ancestralidade, que se reedita em personagens como Mestre Churrasco.
"Berimbauzeiro" é o registro da oralidade ancestral de Mestre Churrasco. Um filme que tem uma narrativa guiada pelo Mestre, sendo ele o narrador de suas histórias. Histórias de viajante, de curioso, impetuoso e criativo. Portanto, sem a linearidade cartesiana e com interlocuções potentes, cotidianamente desprezadas. O que vemos nos registros de seus jogos com o fogo, em sua voz de afinação precisa e nas sonoridades improváveis que ele consegue emitir nos instrumentos que constrói, é nada mais do que o desenvolvimento tecnológico e pedagógico da oralidade negro-africana expressa na sua negridão.
A criatividade negra, regulada pelo racismo, não cabe no senso estético colonial e, muitas vezes, pode ser entendida como loucura, levando figuras muito parecidas com o Mestre Churrasco para espaços manicomiais. Mas o destino foi duplamente positivo, para o Mestre e para a capoeira, pois ele encontra neste legado ancestral da capoeira sua mais popular e livre expressão, espaço de manutenção de sanidade, filosofia de vida, religiosidade e cura, materializados na construção de berimbaus; e a capoeira conta com um dos seus mais distintos, criativos e sui generis amantes seguidores, contando e recontando a história da cultura, da cidade, das pessoas, enfim, a nossa história.
Mestre Churrasco nos coloca seu entendimento sobre a roda de capoeira como galeria para expor a sua arte. Ele afirma que seus instrumentos são de ordem contundentemente artísticas, ampliando e multiplicando as possibilidades de existências, inteligências na autoria dele e do objeto berimbau como obra.
Inventivo, é inspirado pelas manifestações da natureza, pelo que vê, sente e ouve, em suas incursões pelo mato, com grupos de pessoas e só. Nestes momentos, Mestre Churrasco se inspira para criar músicas, poemas e reflexões sobre seu momento ou suas experiências múltiplas nos mundos, que se mostram múltiplos também.
Ilimitado pela criatividade, impregnado por sentir-se na plenitude do mundo e com a lida com seus instrumentos-colegas-filhos, Mestre Churrasco se permite brincar com suas obras como criança. Incrível como o espaço da cultura da capoeira angola foi o lugar onde Jean Batista dos Santos pôde Ser em sua infinitude preta, que dialoga com os pássaros, com as árvores, couros, arco-íris e pedras. Nos mundos de Jean Batista – Mestre Churrasco, ele se apresenta como mais um no composto, mais um elemento compondo um universo de coisas sonhantes, brincantes, rasgando qualquer rede de captura e detenção.
No filme, a liberdade explícita do Mestre é digna e intensamente observada por nós, espectadores, que nos surpreendemos quando o filme termina. E neste momento, não sentimos o fim, sentimos a ampliação das possibilidades em Ser, inspiradas e inspirados pelo original Ser Mestre Churrasco.
* Cantora, percussionista, produtora cultural e socióloga.