A permanência do evanescente: considerações em torno do Centenário da Semana de Arte Moderna

A permanência do evanescente: considerações em torno do Centenário da Semana de Arte Moderna

Gênese Andrade*

Pagu, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Elise Houston, Benjamin Péret e Eugênia Álvaro Moreyra, na Semana de Arte Moderna de 1922

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 A ausência de registros da Semana de 22, seja em fotografias ou filmes, meios então já disponíveis (1), seja em áudio, então quase inacessível, não impediu sua permanência como marco, ou como mito, da produção cultural do século XX. Sua consolidação se dá em um movimento retrospectivo, na medida em que seus idealizadores e protagonistas tiveram suas obras publicadas, divulgadas e reconhecidas ao longo do tempo, mas não necessariamente de modo imediato, como argumenta José Miguel Wisnik em texto brilhante e recente.(2) 

Não há consenso sobre quem teve a ideia da Semana – embora prevaleça a atribuição a Di Cavalcanti –, quando ela foi planejada, nem mesmo sobre sua programação completa. Os artigos que Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia publicaram nos jornais às vésperas do evento ou em seu decorrer, em fevereiro de 1922, mencionam alguns conteúdos, assim como as conferências de Mário e Oswald nos anos 1940, e as memórias de Di Cavalcanti e Anita Malfatti, registradas nos anos 1950. Foram publicadas apenas as palestras de Graça Aranha e Menotti nos dias subsequentes à sua realização.

Muito forte e marcante, porém, é a prevalência do anedotário, em torno da pateada, das vaias espontâneas ou encomendadas, da repercussão negativa da exposição de obras de arte, da pouca circulação de notícias fora de São Paulo, que pontua as críticas daqueles que se dedicam a detratar o evento.

Para preencher a lacuna da falta de registros visuais ou sonoros, recorre-se à imaginação, pois os textos de época pouco dão conta do que aconteceu de fato. Sabe-se da distribuição de obras de arte no saguão do Theatro Municipal, por um esboço de Yan de Almeida Prado realizado em 1969, a pedido de Aracy Amaral (3); da declamação de poemas nas escadarias e da recepção positiva às apresentações musicais, de Guiomar Novaes interpretando Debussy, ou das peças de Villa-Lobos interpretadas por ele, pela pianista e por outros/as musicistas, pelos registros feitos por seus protagonistas, no calor da hora e a posteriori; da balbúrdia e das vaias durante as declamações no palco, leituras e palestras, pelos mesmos registros de época ou tardios. (4) 
Se é possível recuperar os sons musicais, mesmo que não exatamente, tendo em conta o programa da Semana e execuções posteriores, pelos próprios participantes ou outros, o mesmo não acontece no que se refere à leitura de poemas, pois não há consenso sobre todos os textos literários que foram apresentados. (5) 

A voz de Mário de Andrade só nos chegou em 2015, ao ser localizada uma gravação de 1940 em que ele interpreta uma cantiga popular e explica sua escolha, mas uma voz absolutamente distante do que se imaginava ser sua impostação ao declamar os versos de Pauliceia desvairada, que ecoaram por longos anos na memória daqueles que os ouviram nos anos 1920. (6) 
O registro de Manuel Bandeira em suas cartas, ao receber o exemplar do impactante livro de 1922, cujo centenário se completará em julho, é comovente. A leitura muda, o livro presente, mas Mário ausente, ao contrário do que acontecera em 1921, quando o poeta paulista leu seus versos ainda manuscritos em terras cariocas, só faz aumentar a potência da ausência: “Quando os ouvi, lidos por você, senti-me arrastado pelo aluvião lírico do Desvairismo. deixaram em mim a ressonância de inumeráveis harmônicos. À leitura, faltou-me a sua voz”. (7)

Já a voz de Oswald, registrada nos anos 1950, em gravações caseiras da leitura de seus poemas divulgadas em 1999, causa impacto ao contrário, por comovente, mas não encantatória (8), um pouco abafada, como recorda Antonio Candido informalmente, ou ainda, “uma dicção cantada”, “como se dentro do iconoclasta irreverente da Semana sobrevivesse o orador oficial do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito”, (9) quase oposta à imagem que se constrói tendo em conta sua fama de piadista inconsequente. E desse modo, imaginá-lo lendo trechos do romance Os condenados, não empolga, ou não combina com a balbúrdia que teria suscitado.

A foto durante décadas legendada como do “Grupo da Semana de 22”, interpretada como sendo do grupo masculino na Semana de 22, só fez ampliar a lacuna. Suscitou questionamentos sobre a ausência na foto das artistas participantes, e ao mesmo tempo sobre a presença na foto dos escritores e intelectuais que não estiveram presentes no Theatro Municipal, até que Carlos Augusto Calil revelou, em 2019, tratar-se do registro de um encontro realizado em 1924, no Hotel Terminus, em homenagem a Paulo Prado. (10) 

Perguntamo-nos se a permanência, em nossas referências culturais e em nossa historiografia e crítica da literatura e da arte, de um evento evanescente, que carece de documentação concreta, pode remeter à maneira como isso reflete o caráter precário da construção do próprio país ao longo do tempo: ou seja, as lacunas da história de nossa formação, os apagamentos sucessivos que caracterizam nossa história social e cultural, as falhas na preservação de nossa memória, a possibilidade de construir mitos em torno do vazio, o que para uns pode parecer uma potência, mas para outros é uma falácia.

Falácia significa “falsidade”, mas também “falação”. Sendo assim, a Semana se associa fortemente ao segundo sentido, pela força da oralidade que caracterizou o evento, nas leituras, declamações e palestras, mas também em sua avaliação, que se pautou e ainda se pauta muito pelo “diz que”. 
Nesse enredo, não poderia faltar Tarsila do Amaral, que, em junho de 1922, portanto depois da Semana, ao regressar da Europa e se estabelecer em São Paulo, integra o grupo – encantando-o com seu talento e beleza – formado pelos mais ativos na preparação e realização do evento: Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Mário e Oswald de Andrade, constituindo o Grupo dos Cinco, imortalizado no desenho colorido de Anita (com que presenteou Mário de Andrade e hoje integra a Coleção de Artes Visuais do IEB-USP), em flagrante momento de descontração, intimidade e cumplicidade. Ao eternizar o momento por escrito, em suas posteriores “Notas biográficas”, a imagem se completa: “Surgem livros em uma semana, os retratos se sucedem e as reuniões e festas – é um não acabar de alegria e criações de arte. Devo aqui dizer que ninguém parava de trabalhar mas acrescentava-se a alegria de viver”. (11)

“Eufórico”, “libido cruzada no ar, Anita/Mário, Mário/Tarsila, Oswald/Tarsila”, nas palavras de Carlos Augusto Calil, em registro informal. “União iluminada e sentimental das mais sublimes”, “orgia intelectual”, segundo Mário, em sua conferência “O movimento modernista”, de 1942. (12)
Essa convivência foi tão intensa quanto breve, mas suficiente para que se atribua a ela duração superior aos cinco meses que durou de fato. Tarsila parte para a Europa em novembro de 1922, Oswald vai em dezembro e, antes de partir, o grupo já começa a se abalar, quando há um desentendimento em torno do último número, em preparação, da revista Klaxon. Anita partirá em agosto de 1923, mas sua convivência em Paris com o casal “Tarsiwald”, como o batizou Mário, caminhará para a rivalidade com Tarsila e distanciamento. Em 1924, Menotti começa a atacar a estética Pau Brasil de Oswald, nas páginas do Correio Paulistano, o que se intensificará no ano seguinte, e, em 1926, seu alvo será Mário, no mesmo jornal, de forma demolidora. O casamento de Oswald e Tarsila termina em 1929, quando também se dá o rompimento entre Mário e Oswald, por motivos até hoje não totalmente esclarecidos. Se o afastamento entre Tarsila e Anita e entre Oswald e Menotti não será definitivo, de parte de Mário com Menotti e com Oswald será irreversível.

O estopim da amizade e da inimizade foram as questões estéticas, convergências no começo, divergências no final, sempre apontadas com sinceridade afetiva e intelectualmente, que a correspondência que trocaram, assim como os artigos publicados documentam. Para além das questões afetivas, a vida de todos eles tomou rumos inesperados, tanto no âmbito estético, quanto político, econômico e social, cuja explanação não cabe nos limites deste artigo.
Quanto à sua permanência, prevaleceu – bem ao gosto do Oswald de Andrade que defendia, em 1921, que “arte não é fotografia” – a imagem que o traço de Anita Malfatti sugere, em 1922, e a palavra escrita de Mário de Andrade corrobora, em 1924: a Semana de Arte Moderna como “entusiasmo sincero, ilusão engraçada”, “Precipitada. Divertida. A fantasia dos acasos fez dela uma data que, creio, não poderá mais ser esquecida na história das artes nacionais”. Passados cem anos, a Semana de 22 é, como a arte do desenho nas palavras do mesmo Mário, em texto posterior: “uma transitoriedade e uma sabedoria”, “um fato aberto”.

REFERÊNCIAS 

1. Carlos Adriano, “Semana fora de quadro”. 451: a revista dos livros, São Paulo, n. 54, fev. 1922. 
2. José Miguel Wisnik, “Semana de 22 ainda diz muito sobre a grandeza e a barbárie do Brasil de hoje”. Folha de S.Paulo, São Paulo, 13 fev. 2022. 
3. Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22. São Paulo: Ed. 34/ Fapesp, 1998.
4. Essas questões são abordadas em: Regina Teixeira de Barros, “As mulheres na Semana de 22 e depois”; Gênese Andrade, “Memórias do modernismo”. In: Modernismos 1922-2022. Org. de Gênese Andrade. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
5. O programa da Semana de 22 e um datiloscrito referente à programação de um dos dias integram, em fac-símile, a Caixa modernista. Org. de Jorge Schwartz. São Paulo: Edusp/ Imprensa Oficial; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. A publicação Toda Semana: música e literatura na Semana de Arte Moderna (Org. de Claudia Toni, Flávia Camargo Toni e Camila Fresca. São Paulo: Sesc-SP, 2021), recupera todo o programa do evento e traz registros sonoros feitos por artistas contemporâneos. 
6. “Gravação inédita apresenta voz de Mário de Andrade pela primeira vez”. Jornal da USP, São Paulo, 24 abr. 2015. Sobre a questão da oralidade na poesia modernista, ver Roberto Zular, “No cipó das falações: a forma difícil da poética modernista”, em Modernismos: 1922-2022, citado.
7. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Org. de Marcos Antonio de Moraes. 2. ed. São Paulo: IEB/ Edusp, 2001
8. Ouvindo Oswald. Cd. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Itaú Cultural, 1999.
9. Antonio Candido, “Os dois Oswalds”. In: Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.
10. Carlos Augusto Calil, “Foto tida como ícone da Semana de 1922 foi feita em 1924”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 out. 2019. 
11. Citado em Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: Edusp/ Ed. 34, 2006.
12. Reproduzida em Mário de Andrade, Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Itatiaia, 2002. Ver também Tadeu Chiarelli, “Anotações sobre o Grupo dos Cinco: uma pitada de melancolia no Centenário da Semana”. arte!brasileiros, n. 58, mar. 2022. 

 

* Graduada em Letras (Português/ Espanhol) pela Universidade de São Paulo (1991), Mestra em Letras (Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana) pela Universidade de São Paulo (1995) e Doutora em Letras (Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana) pela Universidade de São Paulo (2001). Realizou pós-doutorado em Letras (Literatura Comparada) na Unicamp (2006-2011). Dedica-se ao ensino e à pesquisa em Literatura Brasileira, Literatura Comparada e Literatura Hispano-Americana, com ênfase nos seguintes temas: poesia latino-americana, estudos interartes, modernismo brasileiro, vanguardas latino-americanas, Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, Octavio Paz, Pagu, Jorge de Lima. Atua também como tradutora e curadora.


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