As luzes do Pampa e as sombras da alma

As luzes do Pampa e as sombras da alma

Luiz Coronel *

Poeta Luiz de Miranda faleceu no último dia 29 de julho

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A morte não nos concede poder de julgamento sobre os que partem. Há de ser justa a colheita de lembranças, dispensando desencontros para preservar o que for grato ou afável. Nada, no entanto, nos exime do dever de sermos sinceros e justos quando depoentes.

Pisando o mesmo solo e habitando o mesmo tempo, tenho, como tantos escritores, nítido na memória a inconfundível figura do Miranda. Com seu chapéu arcaico, vestes escuras, sua piteira imprescindível, seguia esbaforindo fumaças pelos trilhos das ruas da sua amada cidade de Porto Alegre.

Era um interiorano coração. Elegia a noite como seu celeiro poético. Sentava-se numa mesa de bar e soltava a tinta de sua caneta, os suspiros de sua alma inquieta, e os poemas nasciam, qual cogumelos depois da chuva. 

Com ele escrevi “Porto Alegre, que bem me faz o bem que te quero”, belo álbum, onde acolhemos as fotos da cidade de autoria da talentosa Edelweiss Bassis. 

O livro “Porto Alegre, roteiro da paixão”, como frisou o mestre Sergius Gonzaga, é seu mais alto momento poético. Incluir essa obra às celebrações dos 250 anos da capital dos gaúchos será, ao mesmo tempo, iniciativa oportuna e homenagem merecida ao escritor.

E diga-se logo: cada um de nós – e não somos poucos – têm relatos múltiplos sobre feitos estranhos, anedóticos, surrealistas, para contar, formando um vasto repertório de feitos nobres ou estapafúrdios do Miranda. 

Emergente a tudo isso ostenta-se um fato honroso: chegada a notícia do momento agônico que vivia o poeta, os escritores sulinos lhe cantaram louvores e revelaram-se solidários. O adeus ao poeta esteve à altura do mérito do escritor e recebeu substancial apoio do poder público municipal.
Miranda guardava dentro de si espaços sombrios e lampejos de lua nova. Pretendia seus versos qual fossem potros indomados sob as rédeas das metáforas. Deus e o diabo, na terra do Minuano, não conseguiram derrubar seu chapéu nem domar seu galope poético.

Tentou vários ofícios o poeta. A poesia libertava sua imaginação e prendia seus passos. E tenha-se a crédito do vate e compositor uruguaianense a belíssima milonga feita em parceria com Pery Sousa, “Pampa de luz”. Ela figura dentre as melhores composições da MPG. Quero antever que, sedimentadas as memórias, algum cineasta ou autor teatral, em boa hora, virá colher esse acervo de criações e extravagâncias marcantes dessa vida agitada para compor um filme ou peça de estonteante beleza.

Ninguém, mais do que ele, foi tão fértil em dedicatórias. Talvez o gesto ocultasse, entre outros signos, um adiado abraço. Agora cumpre-nos, no silêncio que a morte estende sobre todas as coisas, ter em mãos uma das três ou quatro mil páginas desse recordista literário e escolher, quem sabe, um só poema, para apreciá-lo, assim como acolhemos uma taça de vinho, um prato doce-amargo, uma lembrança esvoaçante daquelas que a gente nem sabe de onde vem. Digamos: adeus, poeta, que as ninfas e musas te acolham em ciranda.

* Poeta, cronista e publicitário


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895