Borges: a grandeza e o enigma

Borges: a grandeza e o enigma

José Fogaça **

Borges, na época em que escrevia para o jornal argentino La Nación, vê publicado o seu primeiro livro de contos "El jardín de senderos que se bifurcam"

publicidade

Ao comentar dois contos extraordinários de Jorge Luís Borges, ocorre-me que vivemos na extraordinária Era do Conhecimento. Percebemos, captamos, armazenamos, perdemos, dispersamos, voltamos a reunir, recuperamos, estruturamos e reestruturamos informações às miríades todos os dias e - é incrível - a operação mental mais complexa e mais difícil é aquela em que, ao fim do dia, nosso cérebro tenta colocar ordem no caos. É uma angústia sistêmica e cotidiana: não sabemos o quanto processamos e o quanto de tudo isso conseguimos transformar em memória, conhecimento e razão.

Engolimos verdadeiras bibliotecas virtuais quase todos os dias e não sabemos bem o que fazemos com isso.

A esse propósito é que me ocorre lembrar Jorge Luis Borges, que, no início dos anos 40 – o mundo sob o turbulento início da 2a Guerra Mundial – publicou um dos seus contos mais emblemáticos e premonitórios. O computador, tal como o conhecemos hoje, ainda não tinha sido inventado, embora Alan Touring já estivesse na estação de decifração de códigos Hut 8, em Bletchey Park. O fantástico labirinto digital em que vivemos hoje ainda não existia. Michel Foucault ainda não tinha retirado das cinzas do tempo o projeto do Panopticum, o que tudo vê. Pierre Levy ainda não havia usado esse mesmo termo para designar o onipresente sistema de vigilância e observação que os controladores das redes digitais têm sobre todos nós, no mundo todo. George Orwell não havia publicado ainda "1984" e o "big brother" não era um conceito estabelecido, quando Jorge Luis Borges escreve e publica um dos seus contos mais alegóricos: "A Biblioteca de Babel".

"O universo (que outros chamam a Biblioteca) é composto de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados de balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, veem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente.(...) No corredor há um espelho, que fielmente duplica as aparências.(...) A Biblioteca é uma esfera cujo verdadeiro centro é qualquer hexágono e cuja circunferência é inacessível".
Borges, na época em que escrevia para o jornal argentino La Nación, vê publicado o seu primeiro livro de contos "El jardín de senderos que se bifurcam".

Os infinitos volumes do conto “A Biblioteca”, de Borges, deveriam conter o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da própria Biblioteca e do tempo. No entanto, os que por ela incursionam procurando respostas, voltam exaustos e sem esperança de descobrir alguma coisa. A busca dos códigos que possam desvendar o enigma da vida e do universo (e da própria Biblioteca) acaba sendo sempre extenuante e improfícua. A metáfora de Borges é poderosa e antecipa muitas das indagações da neurociência e da cognitividade desta terceira década do século 21. O que é a mente? O que é o cérebro? Como nossa observação do mundo se realiza? Qual é a natureza do pensamento? Precisamos inventar uma nova linguagem para decifrar os enigmas do universo? Como construímos o conhecimento?

Em 1944, em outro conto, não menos extraordinário, "Funes, o memorioso", Borges retorna ao tema da percepção humana. Irineo Funes é um homem de memória prodigiosa. Cada pensamento, mesmo sem ter sido escrito, torna-se um elemento definitivo e inapagável na ilimitada capacidade de armazenamento do seu cérebro. É capaz de enumerar todos os eventos heroicos registrados no "Naturalis historia": Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Mitridates Eupator, que ministrava a justiça nos vinte e dois idiomas do seu império; Simônides, inventor da mnemotécnica; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o que escutara uma única vez.
Em um episódio acidental, Funes é derrubado de seu cavalo azulego.
"Ao cair, perde o conhecimento. Quando o recobra, o presente é quase intolerável de tão rico e tão nítido (...) Eu sozinho tenho mais lembranças que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo."

Irineo Funes logra aprender idiomas com imensa facilidade: português, inglês, francês, latim. A memória de Funes é um prodígio, mas a capacidade de dar um sentido a essa memória compartimentada é completamente nula. Funes é a memória que não se transforma em conhecimento. Sua mente é constituída de milhões de fragmentos de cultura inútil. Funes não somos nós?

A obra de Borges é vasta e, apesar do seu aspecto severo e um ar aparentemente aristocrático, foi, na verdade, um homem que viveu modestamente. Seus ganhos sempre dependeram da sua atividade literária. Sua família não provém de uma linhagem de estancieiros ou de proprietários de terras. Viveu sempre do seu trabalho e, ao fim da vida, habitava ainda um apartamento de quarto e sala na calle Maipu, em Buenos Aires, que usou por mais de quatro décadas.
Borges é visto e cultuado na Argentina, como um homem íntegro e ético.
Todos os prêmios literários mais importantes do mundo foram a ele concedidos, à exceção do Nobel de Literatura.

Em sua atividade extraliterária, Jorge Luis Borges não foi um homem indiferente à política. Nem na juventude, nem na idade provecta. O traço talvez mais definido e marcante de seu perfil como homem público foi um pronunciado e induvidoso antiperonismo. Não só porque na juventude apoiou o radicalismo, o movimento de Hipólito Irigoyen, mas também porque adotou postura antitotalitária em apoio aos Aliados durante a 2a. Guerra. Quando Perón emerge para o poder, Borges o vê como uma figura antagônica a suas posições políticas. Ao longo de mais de 30 anos, enquanto se tornava um dos gigantes da literatura no mundo, a face política de Borges é de resistência e oposição a Juan Domingos Perón na Argentina. Em 1976, no entanto, justamente pelo seu acendrado antiperonismo, inclinou-se pelo movimento militar chefiado pelo General Jorge Rafael Videla, que depôs a presidente eleita Maria Estela Martinez de Perón. O ditador Videla acabou condenado à prisão perpétua por crimes de lesa-humanidade.

Borges, quase dez anos depois do golpe militar, reviu parcialmente sua posição e condenou a prática de sequestro, tortura e execução clandestina pelos militares em seu país. Seu prestígio literário, porém, estava arranhado e - mesmo tendo sido indicado várias vezes - jamais lhe foi concedido o Nobel de Literatura pela Academia de Ciências da Suécia.

Jorge Luis Borges é uma das figuras mais enigmáticas e singulares de toda a história da literatura argentina e latino-americana. Sua obra literária tem dimensão e reconhecimento universal e seu nome fica para a História. Mesmo que um dia ele tenha escrito: 

"He cometido el peor de los pecados que un hombre puede cometer. No he sido feliz." 

* Publicado no Dicionário Jorge Luis Borges. 

** Professor e escritor. Ex-prefeito de Porto Alegre e ex-senador da República. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895