J.F. Botelho e a (des)importância da Literatura

J.F. Botelho e a (des)importância da Literatura

J.H. Dacanal *

"Sim, porque os contos de Cavalos de Cronos também têm um sabor arqueológico. Não apenas nos temas, no léxico e nas citações diretas ou subentendidas mas principalmente naquilo que realmente importa: a qualidade do estilo e a densidade do conteúdo"

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Há muitos anos, ou – tempus fugit! – seriam décadas?, colega de magistério qualificou-me, explicitamente e pela imprensa, de incompetente. A leviana e imprudente acusação teve a adequada resposta. Mas isto não vem ao caso. Afinal, somos, quase todos, incompetentes em quase tudo. O importante é que o ataque reportava-se a Era uma vez a literatura... (BesouroBox, 4ª edição, 2018), ensaio meu publicado anos antes, no qual eu procurava/procuro demonstrar como, a partir das décadas de 1960/1970, as áreas da produção literária/artística e afins haviam começado a perder rapidamente importância, em particular no Brasil, em virtude do intempestivo e vertiginoso processo de transformações econômicas, tecnológicas e sociais ocorridas no período, transformações estas que literalmente subverteram o país – sem falar no concomitante e espantoso crescimento demográfico.(1)

Hoje isto é uma obviedade e meu texto adquiriu, ao longo destas poucas décadas, um sabor arqueológico. Dei-me conta disso há poucos dias, ao reler “Cavalos de Cronos” (ZOUK, Porto Alegre, 2018), de José Francisco Botelho.
Sim, porque os contos de Cavalos de Cronos também têm um sabor arqueológico. Não apenas nos temas, no léxico e nas citações diretas ou subentendidas mas principalmente naquilo que realmente importa: a qualidade do estilo e a densidade do conteúdo.


Qualidade excepcional. 
Não é aqui o lugar para definir com precisão tais conceitos e/ou fazer eruditas comparações com obras de outros autores da atualidade ou do passado. Para o que interessa, basta dizer que se Cavalos de Cronos tivesse sido publicado aqui ou principalmente no centro do país há cerca de meio século, certamente teria outro destino que não o quase anonimato. Por quê? Porque o Brasil era outro e a literatura – no sentido específico de obras de ficção – obtinha então repercussão social e até mesmo política. E os contos de Botelho, pelo menos alguns deles, são de qualidade excepcional. “Cotuba dos Ermos”, por exemplo, à parte óbvias nuances de estilo, não envergonharia Simões Lopes Neto. Ou Sérgio Faraco, tematicamente próximo. Quanto a “Neste mundo”, possui autêntico sabor machadiano e – perdão, leitores! – seguramente provocaria frenesi em algum psicanalista francês. Ou em seus adeptos na província...
Evidentemente – à parte cochilos de revisão – cá e lá surgem uma vírgula obtusa, um perfeito simples em lugar de um mais adequado perfeito composto, um talvez pouco apropriado termo do sermo humilis, uma discutível regência arcaica, um adjetivo que range, dois antônimos em sequência por demais rebuscada etc. Mas tais senões, como argumentaria o Autor, são nugas que destoam mas não embaçam a luminosidade de um texto invulgar, resultantes, seguramente, de um autodidatismo à outrance mas inevitável nestes tempos de penúria – como diria Hölderlin.


Voltando ao início...
Em seu famoso prefácio a Sonhos d’ouro, José de Alencar afirmava que “a literatura é a alma da Pátria”, expressão que expõe, de forma sintética e genial, a visão dos “Pais da Pátria” brasileiros do século XIX, para os quais a produção literária – na Europa e, por consequência, também no Brasil – era a prova necessária e apodítica da existência de uma nação.
Esta visão, nascida no contexto da Europa pós-napoleônica, continha, para Alencar, um implícito ainda que óbvio silogismo: O Brasil quer ser uma nação; toda nação tem uma literatura; logo, o Brasil deve ter uma literatura.
Por longo tempo, a exegese político-literária de Alencar manteve surpreendente atualidade no Brasil, como o provam os longos e importantes ciclos, que se sucedem por mais de um século, desde o dito Romantismo até, aproximadamente, meados da década de 1980 (2), resultando, não raro, em algumas obras de inegável importância no contexto da narrativa ocidental, e até mesmo da lírica. Sem esquecer a dramaturgia, na qual se destacam Martins Pena, no século XIX, a obra extraordinária de Nelson Rodrigues e Oswald de Andrade com “O rei da vela”.
Mas então veio o dilúvio, que já se anunciava, tecnológica e planetariamente, com a instantaneidade do som e da imagem. E assim, por cerca de quatro décadas, as novelas televisivas se tornaram “a alma da Pátria”, com dois diferenciais decisivos: a voz e a imagem passavam a substituir o texto impresso e a atingir não mais apenas a elite mas todas as classes sociais.
Obviamente, com os novos saltos tecnológicos das décadas seguintes, o panorama modificou-se radicalmente mais uma vez. A tal ponto que, com certa ironia, pode-se dizer que hoje Alencar ficaria perplexo ao perceber que a nação nem mais tem alma. Apenas gadgets tecnológicos...


E as Humanidades?
E assim, neste novo e não raro perturbador cenário, qual é mesmo hoje, a importância – e, principalmente, a função – pedagógica e cultural das áreas no passado denominadas Humanidades, das quais as artes literárias – ficção, lírica e dramaturgia – eram, ao lado das línguas clássicas, parte essencial?
Este é, ou seria, um tema para outros artigos. Por ora, para quem tiver interesse em temas lítero-arqueológicos, não seria perda de tempo dar uma olhada em obras de jovens dinossauros como José Francisco Botelho e Leonardo Antunes (“Lícidas/Lykidas”, ZOUK, Porto Alegre,2019). E de outros, bem menos jovens...Como se dizia em eras mesozoicas, Valete, fratres! (3) Perdão, dinossauros também se modernizam e, portanto, devemos acrescentar et sorores!... (4)

 

NOTAS:

(1)– “Noventa milhões em ação” ... – dizia a letra da marchinha da Copa de 1970. Segundo o IBGE, a população brasileira está em torno de 220 milhões, o que representa um crescimento de cerca de 130 milhões em pouco mais de meio século. A população da Alemanha (reunificada) tem hoje cerca de 82 milhões, a França em torno de 65 milhões e a Itália cerca de 60 milhões. Basta fazer as contas... É espantoso.
(2)– Ver Era uma vez a literatura, antes citado.
(3)– Passar bem, irmãos!
(4)– E irmãs!

* Jornalista, professor e ensaísta. Graduado em Letras Clássicas e Vernáculas e em Ciências Econômicas. Doutor em Literatura Brasileira pela Ufrgs.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895