Nem tudo que é grito ecoa

Nem tudo que é grito ecoa

Luciano Alabarse *

Equipe de "Gabinete de Curiosidades": autor Gilberto Schwartsmann, atores Zé Adão Barbosa, Fernando Zugno e Arlete Cunha; e o diretor Luciano Alabarse

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Emoções teatrais, emoções de vida, espelhos...

Mergulhar na criação cênica mais uma vez, como se fosse a única, como se fosse a última, como se fosse a primeira. Flashes e insights intensos, reencontros, descobertas grandes, descobertas pequenas. O ato da criação individual, o ato coletivo, a insegurança de sempre, a segurança equilibrista, o espaço vazio, o vazio preenchido, a vontade de mergulhar as mãos no tanque... (Lya Luft me ensinou que, na arte, criar equivale a enfiar as mãos limpas num tanque sujo e ir retirando de lá, aos poucos, imagens, fragmentos, ideias...).

Vastas emoções e pensamentos imperfeitos permearam o período de ensaios do espetáculo “Gabinete de Curiosidades”. Reparto, aqui, algumas delas:

1. Quando li o texto de Gilberto Schwartsmann pela primeira vez, reconheci eixos dramatúrgicos relevantes, pelos quais a direção do espetáculo poderia/deveria seguir: a solidão dos personagens – dura, cruel, lírica, turbulenta; dois velhos jogados, e esquecidos, num asilo público; as falhas e insuficientes políticas públicas relacionadas à velhice e à terceira idade; o entorno político desse descaso institucional, intenso e permanente, com a cultura e com a velhice. (Importante registrar que os dois velhos da peça tiveram carreira teatral exemplar, temporadas exitosas e capas de jornal, mas não conseguiram nem meios nem recursos para sobreviver na etapa terminal de suas existências). 
2. O mundo circunscrito às memórias do passado e às dificuldades do presente, um cotidiano onde realidade e ficção se misturam borrando fronteiras, uma homenagem à própria história da dramaturgia ocidental... Para mim, homem de teatro prestes a completar 50 anos de carreira, dirigir um espetáculo que reverencia dramaturgos e atores, ter em mãos um texto debruçado sobre os sonhos e as dificuldades da profissão, os ossos do ofício, o inventário teatral que nos foi legado, e, – com tudo isso, por tudo isso –, sentir em mim, intacto, o amor pelo Teatro, foi revigorante, radiante e doloroso. A empatia com o texto foi fulminante. 
3. A condição humilhante a que são submetidos os dois personagens, explorados pela direção institucional de um asilo público; a cultura relegada às traças; a reverência dos velhos atores aos seus trabalhos de vida inteira; a vida presente, a presença do passado, os sonhos que nunca morrem, o público restrito e desinteressado às apresentações do asilo degradante, as relações de amor e ódio que permeiam a longeva relação dos dois velhos companheiros de cena; Cacildas, Henriettes, Sarahs, Autrans e Procópios: mitos desbravadores, personalidades marcantes, referências obrigatórias.

4. Os pontos de contato com o Teatro do Absurdo, apesar do realismo tristíssimo que marca todo o texto, são explícitos. Beckett, Ionesco, Brecht, além de muitos outros nomes da história teatral, fazem deste “Gabinete” uma aula primorosa sobre dramaturgia. O distanciamento de Brecht, proposto do início ao fim do texto, e os tempos solitários de Beckett são aproveitados na encenação para valorizar o abandono de personagens à deriva, em busca de sentido e acolhimento. Godot. Nada menos. 

5. O reencontro com Zé Adão Barbosa e Arlete Cunha, com os quais já trabalhei em muitas peças no decorrer desses anos todos, foi o fator decisivo para aceitar o desafio de uma nova direção. E ver, hoje, a maturidade feliz com que encaram seu trabalho teatral me fez bem, me deixou novo de novo. Construíram seus personagens com amor, talento, disciplina e dedicação. Muitas vezes, fiquei emocionado ao testemunhar o processo criativo desses dois nomes emblemáticos dos nossos palcos. Pequenas e grandes descobertas, contribuições decisivas para o resultado final da encenação. Elogios, aplausos e agradecimentos aos dois. <VS10.5>

6. Revelar mais um dramaturgo gaúcho foi a derradeira razão para aceitar essa empreitada. Gilberto Schwartsmann, amigo a quem tanto admiro, me surpreendeu mais uma vez. Encarei sua proposta dramatúrgica disposto a dar minha contribuição à beleza criativa de seu texto. 
Teatro é sempre um desafio agudo, uma incógnita cheia de expectativas; criar a linguagem de um espetáculo é como andar numa corda bamba frágil e artesanal. Entender que cada espetáculo pede uma linguagem particularmente dele, uma abordagem exclusiva e personalizada, sem se prender a fórmulas ou a códigos já experimentados, é fundamental. Porque Teatro é, ao mesmo tempo, um exercício de humildade e ousadia. Humildade para saber que, previamente, o jogo nunca está ganho, que é preciso, sempre, começar do zero. Mesmo que esse zero abarque 50 anos de intensa atividade teatral. Ousadia é o outro lado da moeda. Ousadia é o que faz o teatro avançar e manter seu compromisso de reinvenção contínua, porque experiência cênica só se valida com a compreensão de que reinventar o palco e a própria Vida é a marca dessa profissão.

* Diretor teatral. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895