Nobel para a literatura francesa no feminino

Nobel para a literatura francesa no feminino

Zilá Bernd *

Escritora francesa Annie Ernaux, a Prêmio Nobel de Literatura de 2022

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A escritora Annie Ernaux, nascida em Lillebonne, na França, em 1940, é autora de mais de 20 romances, sendo 17 editados pela prestigiosa editora Gallimard. Sua obra, que tem caráter autobiográfico, conta com legião de leitores e principalmente de leitoras em todo mundo francófono. É ela a agraciada, na edição de 2022, com o mais prestigioso dos prêmios literários, o Prêmio Nobel de Literatura. Em anos anteriores sua obra já havia sido reconhecida com a outorga de vários prêmios literários entre os quais o Prix Renaudot em 1984 e o Prix Marguerite Duras em 2008. A autora vem recebendo aplausos por sua corajosa escritura que abarca temas delicados como o aborto, sendo essa uma das razões pelas quais ela possui uma legião de leitoras por ser uma voz importante junto às feministas do mundo todo. 

Um dos livros de Annie Ernaux que eu prefiro é “Passion Simple”, pequena obra de 77 páginas na qual, após uma grande paixão seguida de uma grande desilusão, ela nos entrega o que aprendeu com essa avassaladora experiência: “Quando eu era menina, para mim o luxo eram os casacos de pele, os vestidos longos e as mansões à beira mar. Mais tarde, pensei que o luxo seria levar uma vida de intelectual. Parece-me agora que é também poder viver uma paixão por um homem ou uma mulher”. (“Passion Simple”, 1991, p. 77. A tradução é minha)

Outro de meus preferidos é um livro teórico, que consiste em uma entrevista que ela concede a Frédéric-Yves Jeannet, intitulado “L´écriture comme un couteau” (Éditions Gallimard, 2003). O tema da longa entrevista é justamente a escritura e seus desafios. Durante um ano Frédéric-Yves enviou a Annie Ernaux questões sobre a composição de seus livros e sobretudo a respeito da “proposta” de sua obra. A tradução do título desta obra é A escritura como uma faca, o que pode chocar o leitor, mas é exatamente assim que ela vê o ato da escritura como “algo de duro, de pesado, até mesmo violento, ligado às condições de vida”. Assim, para a autora, a escritura deve se transformar em uma arma diante das calamidades, devendo ser utilizada como uma faca afiada, como uma arma. Salvar do esquecimento os seres e as coisas na sociedade é a grande motivação de sua obra, sendo, como ela própria afirma, a motivação maior de sua própria existência. 

Encarando a escritura como representificação de ausências, a autora irmana-se ao sofrimento de outras mulheres, fazendo de seu ofício de escritora um ato político e um dom. Escrever “comme un couteau” corresponde a usar as palavras como armas afiadas para sacudir leitores e leitoras, reatualizando a memória e assumindo um protagonismo que até então lhe havia sido negado. Nessa medida, a autora, hoje detentora do prestigiosíssimo prêmio Nobel de Literatura, busca dar voz através da literatura aos que foram subalternizados e não puderam falar. Rompe assim as barreiras de todos os interditos e todos os silenciamentos. 

Vale conferir os três livros já editados em português pela editora Fósforo: “O Lugar”, “O acontecimento”, “Os Anos”, devendo sair ainda este ano, pela mesma editora, seu último romance “Le Jeune Homme”, “O jovem”, na tradução em língua portuguesa. 
No recém lançado, em Paris, “L’Atelier Noir”, pela editora Gallimard, podemos penetrar na intimidade do ato de criação da autora, pois ela lança nessa espécie de diário, todas as reflexões, buscas e inquietudes em relação à obra ficcional que está compondo. A autora compara esse diário a um “atelier sem luz e sem saída” onde ela exprime as angústias pela busca pela melhor palavra, pela expressão mais justa e adequada, pelos efeitos de sentido que possam melhor atingir seu leitorado. 

“Coragem e acuidade clínica com que desvenda as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal.” Essas foram as palavras usadas pela Academia Sueca para justificar a escolha da 17ª mulher a receber o Prêmio Nobel de Literatura. 
Talvez uma das razões dessa escolha - para além da qualidade literária de seus escritos e da ousadia de seus temas – tema sido o fato de assumir o que a escritora chama de autossociobiografias, que seria algo como associar o discurso autobiográfico com o alcance social de sua proposta de escritura. Recusa-se a admitir que sua obra tenha tendência autoficcional, afirmando que seu trabalho de escritora estrutura-se a partir do autobiográfico.
É uma bela oportunidade de conhecer melhor a escritora e de ter acesso a suas propostas literárias e a suas obras, será a próxima FLIP – a 20ª Festa Literária Internacional de Paraty, que acontecerá de 23 a 27 de novembro deste ano, na charmosa cidade histórica de Paraty, na Costa Doce, no estado do Rio de Janeiro, para a qual a escritora é a convidada de honra deste ano. 

* Professora titular aposentada do Instituto de Letras Ufrgs. Pesquisadora 1 A/CNPq. 

 


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