Para alavancar a produção cultural negra

Para alavancar a produção cultural negra

Sílvia Abreu*

Evento da Aceleradora Cultural Lanceiros Negros na Casa de Cultura Mario Quintana

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Nos últimos 20 anos, uma série de transformações no cenário político, econômico, tecnológico e no âmbito das relações humanas promoveu o surgimento de novos protagonistas no contexto econômico, político e sociocultural brasileiro, favorecendo novos olhares, percepções e trocas culturais. No campo da economia da cultura, o aperfeiçoamento dos modelos de gestão acompanhou estas transformações, exigindo empreendedores culturais cada vez mais aptos e preparados para lidar com estas mudanças. A pandemia veio trazer um novo paradigma, uma vez que a noção de tempo e espaço redimensionou nossas práticas face ao uso orgânico da Internet. 

Em que pese o Brasil ser majoritariamente negro – dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 56% da população brasileira é negra (soma de autodeclarados pretos e pardos), o que equivale a 110 milhões de pessoas, que movimentaram R$ 1,7 trilhão em 2018, o equivalente a 24% do PIB –, esta população, no entanto, se vê sub-representada, resquício da herança colonial que estrutura o racismo a lá brasileira. Segundo o Instituto Locomotiva, 13% dessa população, aproximadamente 14 milhões, são de empreendedores e, segundo a PNAD/IBGE 2019, esses empreendedores representam 51% dos donos de novos negócios criados no Brasil, que movimentam aproximadamente 359 bilhões de reais anualmente. Parte significativa destes empreendedores atua na economia da cultura. Nesse ecossistema, em que a população negra é maioria no país, o empreendedorismo negro representa uma chance de modificar toda a estrutura social. 

Da análise deste cenário ao surgimento de iniciativas que impactem positivamente nas cabeças pensantes e no universo criativo, como um todo, é preciso um esforço de imaginação e muita vontade de mudar esse estado das coisas. Este esforço foi empreendido pela NEGRA ATIVA Produções, também responsável pela realização da Aceleradora Lanceiros Negros (https://lanceirosnegros.com.br/), um desdobramento do Festival Porongos, iniciativa criada em 2018 com o objetivo de impulsionar a cultura afrodiaspórica no Sul do Brasil. Em 2021, o projeto recebeu financiamento da Natura Musical, via Lei de Incentivo à Cultura do estado do Rio Grande do Sul (LIC), aporte que favoreceu a realização de uma imersão de mais de 30 horas de atividades com profissionais de ponta. O conteúdo desta formação se encontra, agora, à disposição do público e pode ser acessado neste endereço: https://youtube.com/c/FestivalPorongos.

A proposta consistiu na criação de um espaço de acolhimento e capacitação de 20 agentes culturais negros, negras e de gênero, indígenas e afro-indígenas, selecionados por meio de edital, em ambiente virtual, com inscrições gratuitas. Esses empreendedores culturais participaram de oficinas, mentorias coletivas e bate-papos em tempo real com profissionais da área da cultura. “A arte, para a população negra, sempre foi e será uma das principais ferramentas de combate ao racismo e de denunciar preconceitos” afirmava a diretora criativa Thaise Machado, quando do lançamento do projeto, que tiveram em seu núcleo realizador os produtores Mauryani Oliveira e João Pedro Lopes. 
O programa da Aceleradora foi elaborado a partir de expectativas dos próprios organizadores e buscou contemplar aspectos da subjetividade do público-alvo. “Comecei a construir uma linha cronológica mental sobre como teria sido, se eu tivesse recebido informações relevantes de uma maneira ordenada. Foram essas trocas e esse olhar interno que possibilitaram a construção de uma estrutura consistente”, complementa. 

Com a estrutura metodológica desenvolvida, foi possível visualizar a equipe de facilitadores. “As relações de conexão com a proposta do projeto e propósitos similares foram balizadores importantes para escolha dos facilitadores”, explica Machado. “A Lanceiros vem com uma base teórica/prática bem forte e potente, administrada por mentores e facilitadores incríveis, a fim de dar suporte e noções de como se profissionalizar na cena cultural, além de todo o acolhimento, tanto da equipe quanto dos agentes”, reforça o produtor João Pedro Lopes.

Os resultados são reconhecidos pelos participantes. “Pude ter uma maior compreensão do mercado cultural do RS e sua potencialidade no campo artístico, em especial na área da música”, constata Athemis Fonseca, assistente de produção. “Tive uma percepção da carência de programas formativos e da falta de acessibilidade a programas de fomento a artistas e agentes culturais do RS, principalmente no que diz respeito a iniciativas voltadas para “negres”, indígenas, lgbtqiap+, periféricos e a juventude”, acrescenta. Segundo a produtora, a importância do projeto está em “potencializar agentes transformadores que estão à margem da sociedade e que devido às burocracias do sistema cultural encontram dificuldades para terem seus projetos e ações culturais fomentadas por políticas culturais e políticas públicas”. Para Gisamara, a Aceleração ajudou-a a expandir as ideias e as conexões. “Pude ver as várias perspectivas sobre a produção cultural de Porto Alegre e me senti acolhida pela dinâmica”, comenta. “O jeito que a equipe da Lanceiros se comunicou com a galera foi um bom começo para seguir com entusiasmo nos encontros seguintes”, afirma o poeta e produtor cultural Felipe Deds. Na percepção do ator e agente cultural, André de Jesus, as diversas dinâmicas e métodos favorecem “maior organização, foco, um processo do trabalho”, estimulando o participante a “querer aprofundar e implementar na vida”. 
Para Mauryani Oliveira, o grande diferencial em produzir um projeto como a Lanceiros Negros se propôs foi a possibilidade de construir um ambiente seguro, onde foi possível dividir inquietações e agregar conhecimentos que impactaram na prática de trabalho dos selecionados. “Não precisamos seguir modelos de trabalhos que são extremamente frustrantes, às vezes”, ressalta a produtora cultural.

Para o gestor de carreira artística, Tiago Souza, um dos facilitadores da Aceleradora, a iniciava ajuda a desmistificar assuntos e/ou conteúdos que são caros à produção cultural. Ele diz que buscou criar uma linha que fosse conectiva, para que, ao final, os participantes tivessem um elo entre os conteúdos. “Esse é, para mim, o maior potencial que temos para criar fomento de crescimento da cadeia produtiva. As pessoas sabem fazer as coisas, o que elas não sabem, é a ordem de fazer”, avalia. Para a especialista em Finanças, Dina Prates, que atuou como facilitadora, “foi muito importante para instrumentalizar o trabalho de pessoas pretas, que já possuem talento, criatividade e potencialidade de sobra, mas que, no entanto, recebem pouco ou quase nenhum investimento em uma formação que impulsione no campo dos negócios, apresentando caminhos e orientações sólidas para fomentar o futuro”. 

 

* Jornalista e produtora cultural


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895