As metades da laranja

As metades da laranja

Durante anos, tucanos e petistas venderam a ideia de que eram diferentes. O que não contaram é que eram duas metades da mesma laranja

Guilherme Baumhardt

Quando a ex-mulher de FHC morreu, em junho de 2008, o ex-presidente Lula compareceu ao velório da antropóloga Ruth Cardoso

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No final dos anos 1990, o cantor e compositor Carlinhos Brown disse em uma entrevista mais ou menos o seguinte: “Se o Brasil fosse um país evoluído, Lula seria vice de Fernando Henrique Cardoso”. Admito não lembrar se a frase repercutiu, mas muitos devem ter classificado o baiano como louco ou desinformado. Hoje, duas décadas depois, digo que Brown acertou em metade da análise – a de que FHC e Lula deveriam estar juntos. Não acredito, porém, que a aliança pudesse significar “evolução” – talvez “honestidade” fosse mais apropriado.

Durante anos, tucanos e petistas venderam a ideia de que eram diferentes. O que não contaram é que eram duas metades da mesma laranja. Sim, existem diferenças. O PSDB parece ser o irmão mais responsável, aquele que defendeu o Plano Real, a Constituinte, a Lei de Responsabilidade Fiscal. O PT, ao contrário, é o rebelde, aquele que acredita que poupança é coisa de burguês careta e que controle de gasto público é um devaneio de gente que se preocupa demais com o cheque especial. Fora isso, são dois representantes da social-democracia – um deles um pouco mais à esquerda do que o outro.

A foto publicada nesta sexta-feira, de FHC e Lula juntos, em um almoço na casa do ex-ministro de ambos Nelson Jobim (Justiça, no governo tucano, e Defesa, nas gestões petistas de Lula e Dilma) é apenas a consolidação da leitura “browniana” de vinte anos atrás. Há algum tempo já se fala na “Teoria das Tesouras” – há textos interessantes na Internet a respeito do assunto. A pergunta a ser feita agora é: por que retirar neste momento o véu que durante anos escondeu vínculos e ligações tão fortes?

FHC e Lula já disseram que votariam um no outro em uma eventual disputa contra o atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Mas o atual chefe do Executivo é tão ruim assim? Ele representa uma ameaça tão grande? Certamente veremos defesas fortes e veementes da democracia como argumento número um para justificar a aproximação. Balela. Na verdade, a dupla está preocupada com a quebra de uma hegemonia de poder, de uma alternância que só foi interrompida porque o PT foi mais eficiente nas doses de populismo, conseguindo emplacar Dilma Rousseff como presidente após os oito anos de lulismo.

Apesar das frases fortes e polêmicas, até agora não há evidência contundente de que Bolsonaro esteja disposto a promover uma ruptura. Após dois anos e meio de governo (mais da metade do período sob a batuta de uma pandemia), não houve movimentação concreta para fechamento de Congresso ou Supremo Tribunal Federal. Pelo contrário, quem vem dando demonstrações de que está ultrapassando a linha é o STF, a ponto de ganhar força novamente no Senado a instituição de uma CPI da Lava Toga – a iniciativa é capitaneada pelo senador gaúcho Lasier Martins.

Alguns podem perguntar se o colunista não viu a recente foto de Jair Bolsonaro com Fernando Collor de Mello, hoje senador, mas presidente afastado no início dos anos 1990 por suspeitas de corrupção. Sim, eu vi. Fácil explicar (o que não torna a aproximação louvável e perfumada): a união de ambos passa muito mais pela política regional (Alagoas) do que por Brasília. Quem está na liderança dos trabalhos da CPI da Covid? Renan Calheiros. E Renan, também de Alagoas, é um entusiasta de Bolsonaro ou um crítico do atual presidente? Se dependesse apenas dele, Renan faria sozinho o impeachment do atual ocupante do Palácio do Planalto. Se Renan está de um lado, Collor buscou abrigo no outro. É bonito? Não. Mesmo depois de afastado da Presidência, o hoje congressista voltou a acumular denúncias e suspeitas na sua trajetória, algumas delas reveladas pela operação Lava Jato.

O importante é ver o que há por trás das intenções que são tornadas públicas. Por trás de um discurso bonito, existem outros interesses. E ao ver a foto de FHC e Lula juntos, lembrei de uma canção bastante popular do músico Fábio Júnior: “Carne e unha, alma gêmea / Bate coração / As metades da laranja / Dois amantes, dois irmãos / Duas forças que se atraem / Sonho lindo de viver / Estou morrendo de vontade de você”.

Aos que ainda não acreditam, eu reforço: a eleição de 2022 já começou.


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