Nossas urnas
Dá trabalho, gera debate, mas só acontece em países livres. Em ditaduras, ninguém perde tempo com isso, até porque pode perder a própria vida
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O Datafolha foi às ruas recentemente para ouvir os brasileiros a respeito da nossa urna eletrônica. A manchete da Folha de S. Paulo foi a seguinte: “Urna eletrônica tem o apoio de 3 em cada 4 brasileiros”. Ingenuamente, você acredita no que está escrito e pensa que os críticos ao atual sistema são, portanto, uma minoria. Ao mergulhar nos números o que surge é outra coisa.
Para a principal pergunta do levantamento, os índices de resposta foram os seguintes: 33% confiam muito na urna eletrônica, 36% confiam um pouco, 29% não confiam, enquanto 2% não têm uma opinião a respeito. Com a informação acima já fica escancarada e evidente a safadeza da manchete. Mas por quê? É simples. Se 36% afirmam “confiar um pouco” no atual sistema, é perfeitamente possível inverter o raciocínio e afirmar que 36% dos entrevistados “desconfiam” do equipamento. Quando alguém confia um pouco, conclui-se que esta pessoa desconfia, talvez muito.
O jornal jogou a “turma do meio” para o lado que quis – dos que confiam no sistema. Se quisesse estabelecer manchete em sentido oposto, talvez estivesse muito mais próximo da realidade vigente hoje no país. Além disso, há outro ponto fundamental, mais importante do que qualquer questão semântica ou de jogo de palavras: um sistema eleitoral precisa ser absolutamente confiável. Quando apenas um terço do eleitorado acredita no que existe hoje no Brasil, temos um grave problema.
Não se trata de defender uma volta ao passado, mas encarar os fatos com a seriedade que eles exigem. Nenhuma outra nação desenvolvida usa o nosso sistema. Faltaria dinheiro? Não para países desenvolvidos. Mas não existem aparatos semelhantes mundo afora? Sim, existem, mas nenhum igual ao nosso.
Em 2015, o Congresso aprovou uma mudança nos equipamentos. Além do registro eletrônico, a máquina faria a impressão de um voto, para posterior conferência. A proposta passou na Câmara e no Senado, mas foi vetada pela presidente Dilma Rousseff. A decisão do Planalto de barrar a ideia foi derrubada pelos congressistas e... o assunto foi parar no Supremo Tribunal Federal, que simplesmente enterrou a proposta.
A Justiça Eleitoral alega que o impacto da medida é pesado, já que todas as urnas precisariam passar pela adaptação. Estima-se que o custo gire entre R$ 2 bilhões e R$ 2,5 bilhões. Este dinheiro hoje já existe e é destinado para fins eleitorais. Onde ele está? Trata-se do fundo que a cada dois anos irriga as campanhas Brasil afora.
Minha intenção aqui não é colocar em xeque a lisura do pleito. Não tenho elementos para tal. Muito menos levantar suspeitas sobre a Justiça Eleitoral brasileira, que tem um excelente legado. Trata-se de um alerta: um sistema só tem respaldo quando aqueles que o integram têm a mais absoluta certeza da inviolabilidade dele. Transporte uma eventual desconfiança para o sistema bancário, por exemplo, e ninguém mais teria conta corrente ou poupança em qualquer banco, levando instituições financeiras a desabarem como peças de um dominó enfileiradas.
Aos que acreditam piamente nas urnas, eu lembro alguns pontos. Um dos principais argumentos do Tribunal Superior Eleitoral na defesa do sistema é o de que as urnas não estão conectadas à rede. Ou seja, estariam imunes a um ataque hacker. É correta a informação. Mas a transmissão de dados das seções eleitorais para o Distrito Federal é feita fisicamente, com urnas ou cartões de memória viajando até Brasília? Claro que não. É feita via transmissão de dados.
Neste ano vimos duas tentativas pesadas de ataques cibernéticos, uma delas justamente no primeiro turno das eleições. Felizmente, além da demora na apuração, não se tem registro de outros prejuízos. O outro episódio teve como alvo o Superior Tribunal de Justiça. O temor principal é de que dados sigilosos possam ter vazado, especialmente de casos que tramitam em segredo de justiça.
Aos que acham um absurdo eventuais críticas às urnas e a intenção de melhorá-las eu lembro um conceito básico: questionar o sistema é salutar e só ocorre em democracias sólidas, que buscam o aprimoramento das suas ferramentas. Dá trabalho, gera debate, mas só acontece em países livres. Em ditaduras, ninguém perde tempo com isso, até porque pode perder a própria vida.