O tempo, a razão e a covardia

O tempo, a razão e a covardia

Até quando vamos deixar gente incapacitada guiar nossas vidas?

Guilherme Baumhardt

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Mais de 73% da população da França está totalmente vacinada, segundo dados do Our World In Data. O índice é superior ao brasileiro, que gira em torno de 70%, com variação significativa entre Estados e regiões. Pode-se dizer que a França é “negacionista”? Pouco provável. Aliás, “negacionista” virou expressão da moda, palavrinha que pretende muito, mas diz pouco e, como se isso não bastasse, é reveladora de injustiças, pois coloca no mesmo balaio gente que é, inclusive, entusiasta das vacinas, mas que levanta dúvidas e questionamentos a respeito do que está ocorrendo hoje no mundo.

Vamos em frente. Na França, com mais 73% da população totalmente vacinada, o dia 25 de dezembro trouxe um número que assustou: pela primeira vez, mais de 100 mil novos casos de Covid-19 foram registrados em um único dia. Na terça-feira passada, dia 28, o número de contágios saltou novamente, desta vez atingindo a marca de quase 180 mil novos casos em 24 horas – a maior contagem diária registrada em qualquer país europeu desde o início da pandemia, segundo a plataforma covidtracker.fr.

“Lá vem o colunista mais uma vez descer o sarrafo no passaporte vacinal...”. Exatamente! Mais uma vez temos uma prova de que o famigerado passaporte é o ápice da excrescência. Pelos números citados acima, mas principalmente pelo fato de boa parte dos franceses contaminados terem recebido as vacinas. Ou seja: fica evidente (como já havia ficado em episódios anteriores) que a exigência imposta por governos autoritários não cumpre seu objetivo – exceto pelo seu caráter coercitivo, algo que provavelmente produz um certo grau de prazer em quem promoveu o uso da força.

Se o número de novos casos atingiu patamares jamais vistos na França, o mesmo não ocorreu (pelo menos até agora) com as internações hospitalares, especialmente com pacientes graves, em leitos de UTI. Aí talvez resida a melhor notícia que podemos ter: ou a variante Ômicron é, de fato, menos letal e agressiva (uma suspeita levantada desde a sua descoberta, mas solenemente ignorada por muitos), ou as vacinas, que não conseguiram barrar o contágio, ofereceram ao menos uma espécie de armadura, de defesa prévia aos pacientes. E, no melhor dos mundos, talvez tenhamos as duas coisas juntas, somadas.

Falando sobre a Ômicron, o leitor certamente lembra das medidas restritivas impostas mundo afora, tão logo a variante foi descoberta. Assumindo o risco de produzir uma gigantesca injustiça, inúmeras nações decidiram cancelar voos e barrar passageiros provenientes dos países do continente africano nos quais a nova cepa havia sido identificada. Ser descoberta na África do Sul, por exemplo, não necessariamente significa que a mutação ocorreu primeiro ali. Ela pode ter sua origem em outro lugar, em outro país.

Mas, mais uma vez, contrariando o que o tempo já havia mostrado, governos em todos os cantos do planeta resolveram adotar o mesmo receituário. Para quê? Para nada. A Ômicron já foi registrada em mais de 130 países. O Equador já registra transmissões comunitárias (ou seja, entre pessoas que não viajaram para fora do país sul-americano) da Ômicron. No Brasil, os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul – para citar apenas alguns – já detectaram pessoas com testagem positiva para a nova cepa e com contágio local.

Na reta final de 2021, deixo uma pergunta: até quando vamos deixar gente incapacitada guiar nossas vidas? Deixar os donos de certezas tão sólidas que se desmancham com o primeiro tapa de realidade determinarem o que podemos e o que não podemos fazer? Não aprendemos nada? Não há opiniões divergentes que merecem ser ouvidas? Não prego aqui a desobediência, a irresponsabilidade, ou uma revolta sem causa. Sim, há uma pandemia. Mas, se estivessem aqui, nossos antepassados – que enfrentaram fome, guerras, tiranos e até pandemias – estariam envergonhados do nosso grau de covardia.


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