Umbigos e megafones

Umbigos e megafones

Se você não é a favor da reserva de vagas em concursos, vestibulares ou no serviço público é automaticamente colocado – injustamente – na vala dos segregacionistas

Guilherme Baumhardt

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Durante a semana o Brasil mergulhou em uma falsa polêmica – mais uma. Falou-se em privatização do Sistema Único de Saúde, o SUS. Houve gritaria, choro e ranger de dentes. Um prato cheio para quem detesta o governo federal – e não são poucos, mas talvez não sejam maioria. O problema? Em nenhum momento a possibilidade de isso ocorrer foi concreta, de alguém passar a tirar dinheiro do bolso para pagar o atendimento em um posto de saúde ou Unidade de Pronto-Atendimento. Faltou leitura, faltou interpretação de texto. E sobrou oportunismo e uma dose exagerada de alarmismo que, não por acaso, serve a determinados grupos. Um decreto publicado no Diário Oficial da União autorizava o ingresso das chamadas UBS (Unidades Básicas de Saúde) no programa de privatizações, com o estabelecimento de Parcerias Público-Privadas (as chamadas PPPs) para estudos de viabilidade técnica. Há inúmeras estruturas como estas inacabadas pelo país. Estamos falando da porta de entrada no SUS. É o posto de bairro, da vila, o local onde o atendimento que não é considerado de urgência é feito. Se não era privatização, era o quê?

Trata-se da repetição – em outra escala – do que já vemos em estados e municípios Brasil afora. Para ficar mais claro deixemos a saúde de lado. Várias cidades brasileiras cumprem a lei e garantem vagas para crianças em creches que não pertencem ao poder público. Trata-se de um espaço privado, gerido por entes privados, com funcionários que não fizeram concurso público. Mas que estão ali, exercendo suas funções sem cobrar um único real de mensalidade de pais e mães, graças a convênios estabelecidos principalmente com prefeituras. É melhor, mais ágil, confere ao sistema um dinamismo maior e melhora – na maioria dos casos – o serviço prestado e não onera o pagador de impostos com um contrato vitalício com um servidor público que sabe-se lá se daqui a cinco ou dez anos será necessário naquela função – a demanda por vagas vem caindo em várias cidades pelo país em função da redução nas taxas de natalidade, logo, não faz sentido inchar a máquina. O mesmo ocorre na saúde. Hospitais com algum tipo de vantagem fiscal (filantrópicos e outros) são obrigados a oferecer uma contrapartida, como realizar um número maior de atendimentos pelo SUS. Os cofres do governo deixam de receber, mas o serviço não deixa de ser prestado. Na maioria dos casos ganha a população, com a contratação de um atendimento de melhor qualidade e que segue a mesma lógica mencionada no caso das creches.

O episódio “querem acabar com o SUS” é mais um capítulo de um país em que megafones estão nas mãos de histriônicos, e alarmistas de plantão se espalham pelas esquinas. Claro, nada é feito de graça. Há grupos – inclusive políticos – que ganham alimentando uma interminável teoria do caos e da conspiração. Traço nosso, a cultura brasileira não confere vitória à razão, à racionalidade, mas sim a quem grita mais alto. Foi construída dentro de uma lógica torta, que estabelece preceitos errados, mas que funcionam para blindar determinados segmentos políticos e proteger, por exemplo, partidos e candidaturas. Para exemplificar e tornar mais claro: é possível ser contra o sistema de cotas e não ser racista. Mas se você não é a favor da reserva de vagas em concursos, vestibulares ou no serviço público é automaticamente colocado – injustamente – na vala dos segregacionistas, quando a postura é justamente a oposta.

Defender que o SUS seja revisto e abrir espaço para que a iniciativa privada seja também um ator para quem não pode pagar por um plano de saúde tem sido o melhor caminho até aqui – obviamente com exceções – para tornar o sistema mais eficiente. O que interessa, em última análise, é a relação custo-benefício. Se o atendimento é melhor e custa o mesmo ou até menos, esqueça o resto. Estamos falando de qualidade. Desconfie dos histriônicos. Por trás do megafone e de berros ensurdecedores geralmente moram interesses que pouco ou nada têm a ver com melhorar a sua vida. São olhares voltados para o espelho ou para o próprio umbigo.


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