Escritora cearense Dia Nobre lança livro que desromantiza a maternidade

Escritora cearense Dia Nobre lança livro que desromantiza a maternidade

Entre cicatrizes e tabus, “No útero não existe gravidade”, expõe, de forma fragmentada, as chagas íntimas e sociais das mulheres

Correio do Povo

Obra trata da trajetória da personagem, uma menina, tendo que se descobrir sozinha em meio a diferentes acontecimentos que são comuns às mulheres, como abuso sexual, assédio, automutilação, depressão, entre outras.

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As tensas relações entre mãe e filha e as diferentes formas de abuso são os temas do livro “No útero não existe gravidade” (Editora Penalux), finalista do Prêmio Caio Fernando Abreu , da escritora, professora e historiadora cearense Dia Nobre. Com uma escrita intensa, que faz da memória, prosa poética e melancólica, a autora destrincha, na personagem central, assuntos fortes e tabus sociais, como abuso infantil, abandono materno e transtornos mentais.

Curta, intensa e reflexiva, a obra conta com orelha escrita pela escritora, poeta e cordelista Jarid Arraes. As ilustrações e colagens são da artista e escritora paraense Monique Malcher, responsável ainda pela arte da capa. O prefácio é da escritora e jornalista Gabriela Soutello, que organizou a obra “Antes que eu me esqueça: 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje” (Quintal Edições), no qual Dia Nobre também faz parte. “Dividido em duas partes complementares e um epílogo, o livro é também sobre medo, sobre prazer, sobre culpa e sobre a junção dos três, trauma materializado em águas escorridas pelas pernas. Leio este livro como uma criança que brinca de ‘o chão é lava’. Como quem analisa na boca a antropofagia de uma fruta, já sabendo que ela deixará fiapos de ferro entre os dentes”, escreveu Gabriela.

Composta por textos híbridos a obra não se encaixa em nenhuma definição de gênero literário — segundo a própria autora, “livro é o que o leitor diz que é”. Seus textos são marcados pela linguagem poética, já característica de Dia Nobre, e podem ser lidos tanto como um romance quanto como um conjunto de contos, fragmentados em relatos não lineares de uma protagonista desterritorializada e atravessada por perdas, em especial pelo abandono materno e pelas marcas deixadas por essa mãe — que, mesmo morta, está impregnada na vida da filha, sempre presente em suas escolhas —, e na busca dessa protagonista em estabelecer o controle das próprias situações. 

Para a escritora, “No útero não existe gravidade” foi uma espécie de catarse terapêutica. “Escrito ao longo do primeiro ano de pandemia, ele marca o retorno a uma questão que me inquietava há bastante tempo, mas que demorou a ser elaborada: a partida e, consequente, morte simbólica da minha mãe”, revela. A narrativa, apesar de abordar vivências da autora, não é confessional. “O que eu faço é esgarçar a memória. Eu elaboro as lembranças e os esquecimentos, meus e de outras pessoas. Eu invento histórias para mim mesma. Eu não sou a personagem do meu livro, mas ela é parte de mim porque enquanto narradora eu a construo no texto”, esclarece. 

Transformando dores em potência criativa
“No útero não existe gravidade” trata da trajetória da personagem, uma menina, tendo que se descobrir sozinha em meio a diferentes acontecimentos que são comuns às mulheres, como abuso sexual, assédio, automutilação, depressão, entre outras. “Quando há uma relação conflituosa entre a mãe/cuidadoras e o bebê, seja de recusa, negação ou falta de conexão com essa gravidez, a criança pode nascer ‘sem contorno’ ou seja, sentindo-se desprotegido; isso pode gerar vários traumas, inclusive, medo de altura, de cair, etc., porque se tem sempre essa sensação de queda, ou seja, de encontro com a gravidade que te puxa pra baixo”, diz a autora, explicando o título da obra. 

Pesquisas apontam que os casos de automutilação entre meninas dos 13 aos 16 anos de idade aumentaram 68% de 2017 até hoje. Segundo Dia Nobre, isso tem a ver com “a pressão social para se adequar a padrões, pela hiper sexualização das crianças e hiperexposição na internet”. “A automutilação é uma forma de dizer que algo não vai bem, é um pedido de socorro. A pessoa fala com o corte o que não sabe dizer com palavras. Acredito que é um tema urgente. É algo que incomoda, mas que precisamos falar sobre”, destaca.

Sobre a autora
Natural do Cariri cearense, a autora atualmente trabalha em Petrolina (Pernambuco), como professora universitária. Seu primeiro livro de ficção poética, “Todos os meus humores”, foi publicado em 2020 pela Editora Penalux. Já participou de antologias, como a “Visíveis - I Anuário Filipa Edições”. Este é seu segundo livro de ficção, também pela Editora Penalux.


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