150 anos da Biblioteca Pública do RS: futuro além do livro

150 anos da Biblioteca Pública do RS: futuro além do livro

“Casa da História do RS” vê a necessidade de ampliar a sua atuação em um mundo cada vez mais digital

Por
Brenda Fernández, Vítor Figueiró e Bernardo Bercht

A casa da "História do Rio Grande do Sul" chega aos seus 150 anos. Enquanto celebra, a Biblioteca Pública do Estado passa por um processo de transformação e transição para os novos tempos. A necessidade de se digitalizar e ampliar sua atuação no mundo virtual - acelerada pelo isolamento da Covid-19 em diversas áreas - já era uma preocupação para a instituição antes mesmo da pandemia.

A leitura é transmissora de conhecimento e ferramenta do debate e, por conta disso, o novo livro e o futuro da literatura são uma construção constante. É conversando sobre este futuro que este especial de reportagens do Correio do Povo homenageia a instituição do saber no RS.

- Biblioteca permanecerá referência, mas cativar o leitor moderno exige reinvenção

- Pandemia representa novo recomeço para a Biblioteca

- Evento virtual vai celebrar memória e futuro nos 150 anos

Um local sesquicentenário carrega em sua trajetória diversos significados e marcas, que avançam com o passar dos anos e provocam reflexões. A razão de existir de uma biblioteca se molda a cada época. “A Biblioteca Pública é a mais antiga instituição cultural do Estado e desde então não se construiu nenhuma biblioteca pública. Ela tem uma papel muito relevante, até do ponto de vista simbólico como o prestígio que se dá ao livro num dos mais belos prédios do RS. Tanto internamente, quanto externamente”, define o escritor Luiz Antônio Assis Brasil.

Para a atual Secretária Estadual de Cultura do RS, Beatriz Araujo, a biblioteca é "um remédio para alma", que cura a ignorância. “Ela é um repositório de conhecimento de geração para geração. Em diversas áreas, cultural, política, econômica. Bibliotecas oferecem aos cidadãos sabedoria, são um símbolo de sabedoria. É um remédio da alma, é o que cura uma ignorância.A partir desta cura, tu consegue curar outras enfermidades”, avalia.

Fundada em 1871, a Biblioteca Pública traz em suas prateleiras e na imponente arquitetura traços significativos da história gaúcha. O edifício atual, na esquina da rua Riachuelo com rua General Câmara, começou a ser construído em 1921 e passou por algumas obras de revitalização ao longo do tempo. Na última delas, em dezembro de 2015, inaugurou uma rede de internet compartilhada - uma aliada na busca por um resgate do público e dos visitantes, que já não frequentavam o local como antigamente, garante a atual e mais longeva diretora da instituição, Morgana Marcon.

"Nós ficamos um período fora do prédio, pela reforma. Na retomada, voltamos já com a intenção de adaptação para este recomeço. A internet compartilhada permitiu que as pessoas levassem seus equipamentos e acessassem dali mesmo, transformando o prédio também em um espaço de convivência. Em 2016, nosso trabalho de resgate ao público seguiu com novas programações. Bastante focado nos mais jovens, e também nos estudantes e pesquisadores", reitera.

No comando do prédio histórico desde 2003, Morgana se dedicou, nos últimos três anos, a fazer com que o local fosse também um centro cultural e de atividades amplas, que trata de artes, músicas, filmes e livros de todos os tipos. É que, mesmo que veja importância, a diretora admite que existem alguns dificultadores em levar o acervo da biblioteca para o digital. Atualmente, somente poucas obras e um catálogo estão disponíveis online. "Infelizmente não temos grande parte do acervo digitalizado. Esbarramos muito na questão do direito autoral e também na falta de recursos. Estamos atentos a projetos e editais para as leis de incentivo, mas sabemos que não é algo simples", explica. "Dos mais de 250 mil livros, somente 2% estão disponíveis digitalmente", enfatiza.

Por isso, a diretora ampliou as atividades no espaço e diversificou o conteúdo de programas no local. “A biblioteca há muito tempo deixou de ser um lugar de leitura e depósito de livros. Ela é um grande centro cultural. Tu podes trabalhar a literatura aliada ao cinema, à música, à fotografia. Pode trabalhar com as outras artes. Muitas letras de músicas são poesias, são contos”.

Foi justamente um projeto musical que se transformou no principal atrativo de público: o Chapéu Acústico, onde músicos de jazz, blues, rock, entre outros estilos, se apresentam no Salão Mourisco, um dos mais nobres do espaço, e são "remunerados" passando o chapéu pela platéia. "Fui questionada uma vez quando começamos o projeto: música na Biblioteca? Eu disse: a biblioteca também é um local de música. É um local para todas as artes. O prédio, o salão...é perfeito para a música. A acústica é fantástica, maravilhosa. Os próprios músicos se sentiam encantados por estarem se apresentando em um lugar belíssimo e as apresentações eram sucesso atrás de sucesso. A cidade carece de espaços assim", recorda.

A avaliação feita por Morgana para o ingresso da música na biblioteca se assemelha ao pensamento do escritor Assis Brasil, que vê isto como o processo de construção destes novos espaços. "Na minha juventude, já assistia a recitais no salão Mourisco, especialmente de piano. E assim tem que ser. A gente tem que entender as mudanças nas bibliotecas. Elas estão em processo de transformação e penso que isso tem que se levar em conta na Nova Biblioteca, que deve ser criada também para aperfeiçoar essa que está aqui. É o nosso inventário espiritual e cultural. Nos torna civilizações ter uma peça sinfônica dentro de uma biblioteca como esta", ressalta.

Esse entendimento da Biblioteca ampla, como uma base importante da cidade e uma ferramenta social, motivou a diretora a implementar o "Livros Livres", evento em que parte do acervo de doações da instituição, obras repetidas ou sem o perfil do local, eram disponibilizadas gratuitamente na frente do prédio para quem transitasse pelas ruas da Capital. "Sempre algum livro vai agradar alguém. Ficam apenas os cartazes no fim da ação. E as pessoas perguntam quando vai ter de novo, toda hora querem saber. Agora temos uma pilha de livros, mas ficamos com medo pois muitas pessoas vão manipular e ainda pode aglomerar. Estamos esperando melhorar a situação da pandemia para voltar a fazer, senão é arriscado", sintetiza. 

Biblioteca permanecerá referência, mas cativar o leitor moderno exige reinvenção

É notório que a pandemia gerou debates e até acelerou transformações tecnológicas, principalmente no consumo de informação. Uma delas é a reinvenção da biblioteca pública, o mais antigo modelo de instituição cultural do mundo. Deixando de lado formatos e ideias que remontam um imaginário de permanência temporal, a nova biblioteca já vivencia uma transição, inserindo o suporte tecnológico e as novas formas de experimentar a vivência literária - mais precisamente a leitura - aos serviços e atividades. 

Para o escritor Luiz Antônio Assis Brasil, modernizar e criar um ambiente mais convidativo à nova geração de frequentadores é necessário para a permanência deste espaço de referência – como uma espécie de “inventário espiritual e cultural” do conhecimento. “Eu penso que com o tempo a biblioteca pública poderá ser destinada a existir como uma biblioteca de referência - como a biblioteca pública Richelieu, em Paris", aponta. "Lá eles adotaram essa solução, ficou como uma biblioteca de referência e o governo construiu uma nova biblioteca de Paris, moderníssima”, conta o escritor, referindo-se ao espaço francês construído há mais de 380 anos e que hoje reúne três instituições.

Com uma trajetória recente (em torno de duas décadas), no entanto consolidada, o livro em formato digital atrai o usuário pela portabilidade, acessibilidade e baixo custo. Apesar de estar bem integrado às bibliotecas privadas, o livro digital encontra desafios na instituição cultural pública.  Mas por conta dessa ascensão, Assis Brasil, aponta que o livro físico tende a se tornar o suporte de leitura de mais curta duração da História. “Tivemos as tábuas dos babilônios, que duraram um milênio; os papiros dos egípcios, que duraram 5 milênios; o papiro medieval, que durou até 1 milênio. O livro de papel tem 500 anos e já está em vias de superação. Esse é um fenômeno que nós temos que entender do ponto de vista histórico e cultural", avalia. O escritor sublinha, porém, que esse movimento de troca de protagonismo precisa ser encarado com muita naturalidade. 

Para a reinvenção destas novas bibliotecas públicas a atuação de profissionais especializados na área é fundamental. Bibliotecários formados agora já têm dentro de si esse ímpeto de entender o período que é de transição que estamos vivendo”, afirma o escritor, ao lembrar que os novos desafios já são discutidos dentro de sala de aula. Em Porto Alegre, a graduação de Biblioteconomia é ofertada gratuitamente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e, da mesma forma, o nível técnico do curso no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS).

Assis Brasil também lembra que a lenta remodelação da biblioteca está atrelada, dentre outros fatores, aos descrédito na cultura e na educação – que acaba impactando no baixo orçamento para investimentos. “Nós temos que fazer de tudo para preservar o que temos e não nos perdermos nesse desprestígio que está tendo a educação, o livro e as bibliotecas - que têm suas verbas consideravelmente cortadas.” O mesmo acontece, segundo o autor, com o ensino superior: “Está num processo horrível, as bolsas estão cortadas de tudo que é jeito. Isso envolve uma atitude contra-humanística, e aí está incluído o livro e a biblioteca. Tudo uma conjuntura que nunca vivemos no nosso país, esse tribalismo, essa coisa que nos invade e nos tornou refém de uma estrutura educacional e cultural retrógrada.” 

A formação de frequentadores das novas bibliotecas deve acontecer de forma natural, moldados já pela vivência numa era digital. Estes espaços institucionais devem abarcar, além dos livros, diversas formas de transmissão da cultura. Um local para acolher manifestações artísticas e intelectuais. No entanto, para o escritor, além de todos estes elementos que devem ser experimentados num futuro de médio prazo, surgirão novidades que ainda nem concebemos. Basta observar como o consumo de informação se alterou desde o jornal, passando pelo computador com internet até a chegada dos smartphones que alterou todo o cenário multimídia.

“Nesta mudança de conceito eu estou incluindo elementos que eu sequer imagino quais sejam, mas eu sei que existirão. Coisas tão novas que eu não posso imaginar quais sejam, mas serão surpreendentes e eficazes - se forem pensadas pra isso", projeta Assis Brasil. "Para um período em transição, temos que ter uma mente em transição. A partir daí as pessoas vão entender a biblioteca dentro deste novo conceito”, define.

Pandemia representa novo recomeço para a Biblioteca

Todo bom livro tem o momento do desafio, a quebra de paradigma. Na nova história da Biblioteca, surgiram os desafios da Covid-19. Os shows e programações culturais precisaram ser interrompidos pelas restrições da pandemia. Foi um novo recomeço para a Biblioteca Pública, analisa Morgana. Fechada por um bom período, a instituição reabriu na bandeira amarela do Modelo de Distanciamento Controlado, mas com pouca adesão pelo temor do vírus.

“A procura foi baixa quando reabrimos. As pessoas estavam com medo. Eu lembro que a gente delimitou a 30% os lugares no salão de pesquisas. Eram 13 mesas para as pessoas e no máximo num dia a gente teve cinco pessoas." Atualmente, pela classificação alta de contágio, os funcionários seguem em home office e operam nas redes sociais para manter o público o mais próximo possível.

"Com a Covid-19, nos vimos obrigados a produzir conteúdos para as redes sociais. Temos postagens semanais com dicas de leituras e cards. Temos projetos de biblioterapia com sugestões de leitura para combater a depressão, o medo e a angústia que estamos enfrentando no mundo neste momento. Utilizamos muito as redes sociais como o Facebook e o Instagram. Intensificamos mais agora na pandemia. Realizamos uma visita guiada pelo espaço e tivemos bastante acessos", comenta a diretora.

Essa experiência com as atividades onlines motivaram a diretora a buscar ampliar as possibilidades do espaço no ambiente digital: "Temos que pensar essa questão, é o futuro. É complicada essa digitalização pelos recursos. Por isso, buscamos alternativas para além disto", pondera. "Temos sempre que estar resgatando esse público, acompanhando as mudanças, não só tecnológicas. Fazer as adaptações de acordo com o que muda na cidade, no público, tecnologia."

Nessa adaptação e nesse resgate, Morgana busca retomar o atendimento ao público deficiente visual, que ao contrário de outros, não estava acessando a biblioteca desde a retomada em 2015. "Tem um público que ainda está um pouco tímido, que existia antes, que é o pessoal com deficiência visual. A gente tem o maior setor com conteúdo em braile do estado. Era muito bom antes, mas agora estava voltando timidamente. Buscamos trabalhar pelo retorno deles". 

O processo de transição para o acervo online também enfrenta dificuldades financeiras e até de prioridades, explica a Secretária Estadual de Cultura do RS, Beatriz Araujo. "Hoje em dia, precisamos atualizar nossas instituições. Até por falta de prioridade, muitas vezes, ficam desatualizadas por falta de investimento. As bibliotecas têm que ter mais mecanismos contemporâneos, têm de ter o livro físico, mas também a possibilidade da pesquisa até no interior do espaço, que a pessoa possa acessar o acervo por meio de terminais. Tudo isso tem que fazer parte de uma biblioteca nos dias de hoje. Está no horizonte do governo essas mudanças e fazemos tudo que podemos”, garante.

Consta, inclusive, nos planos da secretaria, uma nova obra para aumentar o espaço e permitir ainda mais atividades que ampliem o quadro de programações. “Tenho um olhar para a necessidade de um anexo para a Biblioteca. Ela foi construída e inaugurada em 1.915 e recebeu depois disto a ampliação, ela já tem duas etapas de construção. Considerando a demanda que foi aumentando e atualmente ela tem um espaço que é bastante limitado para as diversas atividades que ela poderia oferecer e o acervo”.

Evento virtual vai celebrar memória e futuro nos 150 anos

Para marcar a importante data dos 150 anos, a Biblioteca Pública do Estado preparou uma agenda especial de atrações em seu site e comunidades, nesta quarta-feira. O encontro virtual nomeado de - “Biblioteca Pública do Estado do RS: onde circula o espírito do mundo” - busca homenagear o local e contará com a presença e fala de personalidades renomadas da área literária e cultural do Estado, como Jane Tutikian, Alcy Cheuiche, Luiz Coronel e Miguel Frederico do Espírito Santo, e também dos membros da Academia Brasileira de Letras Antônio Secchin e Geraldo Carneiro.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e a secretária de Cultura, Beatriz Araujo, também se somaram  ao evento, que ocorre a partir das 15h. A transmissão será pelas fanpages da Sedac e do Governo do Estado no Facebook

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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895