A difícil conciliação entre procura e espera

A difícil conciliação entre procura e espera

Nas instituições de acolhimento, predominam as crianças mais velhas ou os adolescentes, porém, entre as pessoas que desejam adotar, a preferência é por meninos e meninas de até 6 anos de idade

Por
Taís Teixeira

A segunda chance de ter uma família. De forma resumida, a adoção representa um novo caminho a quem, pelos mais diversos motivos, foi negada a criação e o convívio com a família de origem. O Brasil tem 4,9 mil crianças e adolescentes para adoção. Por outro lado, há pessoas que anseiam por ter filhos, mas não podem gerá-los ou optaram por tê-los sem vinculação genética e que buscam a possibilidade de exercer a maternidade e a paternidade. A adoção se constitui nesse elo entre a vontade comum de compor um lar. Para isso, há respaldo legal para que o processo seja positivo para todos.

Do ponto de vista jurídico, a adoção é um procedimento legal que assegura a transferência de todos os direitos e deveres de pais biológicos para uma família substituta, aferindo para crianças ou adolescentes todos os direitos e deveres de filho, quando se esgotam todos os recursos para que a convivência com a família original seja mantida, sendo irrevogável e excepcional. É regulamentada pela Lei Federal nº 8069/1990, que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Conforme o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, no dia 26 de novembro havia 3.467 crianças e adolescentes em acolhimento no RS, sendo que 341 aptos para a adoção, ou seja, casos em que não há mais possibilidade de retorno à família biológica ou outros tipos de impedimento. Para amparar todas essas crianças e adolescentes, existem 394 instituições de acolhimento (casas-lares e abrigos residenciais) e 171 famílias acolhedoras no Estado. Já em relação aos adotantes, há 3.778 pretendentes habilitados no RS.

Neste sistema, chama a atenção que o número de crianças disponíveis para adoção é muito menor que o de famílias habilitadas. A juíza-corregedora e coordenadora da Coordenadoria da Infância e Juventude do RS (CIJRS) do Tribunal de Justiça do Estado, Nara Cristina Neumann, explica que estes números não batem porque a maior parte dos pretendentes habilitados deseja adotar crianças de até 6 anos de idade, sem problemas de saúde ou deficiências, de etnia branca ou indiferente. Mais de 60% dos habilitados pretendem adotar apenas uma criança, sendo, para a maioria, indiferente a questão de gênero. “Crianças e adolescentes aptos à adoção, de modo geral, estão na faixa dos 7 aos 17 anos de idade, pertencem a grupos de irmãos ou possuem algum problema de saúde”, elucida. Neste arranjo, a juíza disse que as crianças e adolescentes são ouvidos sobre a possibilidade de adoção, ainda que não tenham um sistema em que possam efetuar este registro.

A promotora de Justiça da Infância e Juventude da Capital, Cinara Vianna Dutra Braga, também destaca que a preferência por crianças com idades iniciais é um dos entraves. “A maioria quer adotar crianças de zero a 3 anos, no máximo 6 anos, porém, 75% das que estão aptas têm mais de 6 anos.” Ela reitera que para adotar uma criança de zero a 3 anos, a espera é de quatro anos, em média. “Já para crianças com mais de 10 anos, não tem fila”, destaca. A promotora salienta que outro fator que retarda a tramitação é a ausência de equipe técnica e de um correto aparelhamento do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública para atender a demanda. “Quando entrei, em 2014, tinha apenas um juiz para o tema e a criança esperava de cinco a seis anos até sair a destituição familiar.” Hoje, a equipe está mais robusta, o que deu mais celeridade aos processos.

Na ansiedade de ter uma criança, muitos podem buscar outras vias, não legais, para cuidar do menor. No entanto, Cinara destaca que, para não estar na fila do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, o ECA prevê três exceções: a adoção unilateral, quando se adota o enteado; adoção por parentes com vínculo de afinidade e afetividade de crianças com mais de 3 anos; e para quem já tem a guarda ou curatela, também levando em conta o vínculo de afinidade e afetividade para crianças com mais de 3 anos. “Receber uma criança porque a mãe não tem condição de cuidar para depois regularizar a guarda, ou até a adoção, não é possível. Ela vai para quem está na fila de adoção”, enfatiza.

No caso de a mãe biológica não querer o filho, há a possibilidade da entrega voluntária da criança, definida na Lei Federal nº 13.509/2017. O texto diz que a gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude. “Aquela mãe que entende que, depois de toda a orientação da assistência social, não tem condições de criar a criança, passa por uma audiência com o promotor e o juiz, na qual é inquirida se quer abrir mão do poder familiar, sendo que a criança fica com o primeiro habilitado que está aguardando aquele perfil”, explica Cinara. O processo é sigiloso e a identidade da mãe não é revelada, assim como não se tem a necessidade de informar o nome do pai, sem ser cobrada, punida ou criticada. “Não é crime e preferimos que seja assim porque a criança será entregue para pessoas habilitadas, que realmente querem formar uma família”, reforça.

Durante a pandemia, menos sentenças, mas mais guardas

Foto: Alina Souza

Assim como em muitas áreas e segmentos, a pandemia interferiu na dinâmica de trabalho do Judiciário. A promotora de Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre, Cinara Vianna Dutra Braga, enfatiza que, nesse período, o número de sentenças diminuiu, mas a quantidade de liminar de guarda deferidas para fins de adoção aumentou, especialmente quando a criança está em risco. “Se for olhar o número seco, vai ver que as sentenças caíram, mas as guardas de convivência para fins de adoção subiram expressivamente.” Esse procedimento faz com que a criança aguarde com a família ao invés de ficar no abrigo enquanto se espera o término de destituição familiar. Esta colocação em liminar se dá normalmente naquelas situações em que há fortes evidências no processo de que aquela família biológica não reúne condições concretas de acolher e de assegurar os direitos básicos da criança ou adolescente e, por isso, o magistrado pode, mediante decisão fundamentada, decidir pela suspensão do poder familiar dos genitores e pela colocação desta criança ou adolescente em uma família substituta, devidamente avaliada e habilitada junto ao Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). Nestes casos, é necessário aguardar a sentença da destituição para poder haver o devido registro da sentença de adoção.

A Coordenadoria da Infância e Juventude (CIJRS) enfatiza que o acompanhamento aos processos de adoção pelo Judiciário não cessou durante a pandemia, sobretudo por ser esta uma matéria de tramitação urgente e prioritária. Traçando uma comparação, constata-se que 2019 somou 324 sentenças de adoção, totalizando 413 crianças e adolescentes adotados, ao passo que 2020 contabilizou 204 sentenças de adoção pelo cadastro, totalizando 261 crianças e adolescentes adotados. Entretanto, esta retração não equivale à redução dos processos de adoção. Hoje há 718 crianças e adolescentes em estágio de convivência com fins de adoção pelo SNA no RS.

O período do estágio de convivência, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tem duração de 90 dias, podendo ser prorrogado por igual prazo. Contudo, ainda que haja um prazo legal, a realidade concreta da situação de cada criança e adolescente precisa ser analisada, de forma que, por todas as adversidades inerentes ao processo, não raras vezes este período precisa ser ampliado, havendo o devido acompanhamento social e psicológico ao adotando e aos adotantes. “Todas as dificuldades vivenciadas em um período de pandemia se somam às adversidades já comumente relacionadas ao estágio de convivência, motivo pelo qual o acompanhamento e o apoio às famílias precisam, quando houver necessidade, ser intensificados e, por vezes, ampliados”, salienta a juíza-corregedora e coordenadora da CIJRS, Nara Cristina Neumann.

Além desses casos em que as crianças e os adolescentes já estão em estágio de convivência e em processo de adoção, existem as vinculações. A vinculação é realizada no SNA quando há o cruzamento positivo entre o perfil de uma criança ou de um adolescente com o perfil de um pretendente, de modo que se inicia a proposição daquela criança/adolescente e, na sequência, o processo de aproximação. Neste caso, o adotando e o adotante se conhecem, realizam passeios e iniciam a formação do vínculo afetivo. Uma equipe técnica (assistente social e psicólogo) acompanha esta aproximação e verifica a possibilidade de início do estágio de convivência. Nesta situação há, atualmente, 181 crianças e adolescentes no Rio Grande do Sul.

Durante o estágio de convivência, pode haver desistência, desde que a criança não tenha sido submetida a maus-tratos. “Isso é do jogo, mas se a criança estava apanhando, ingresso com ação indenizatória”, afirma a promotora. Já se os pais manifestarem desistência após esse período, em que a sentença transitou em julgado, a ação indenizatória é uma certeza. “Ingresso certo também com ação para alimentos e danos morais”, explica, enfatizando que o dano moral será irreversível, que pelo menos tenha suporte financeiro para, investir em apoio psicológico, se for necessário.

Em síntese, o número de sentenças de adoção não pode ser confundido com o número de crianças e adolescentes que se encontram em estágio de convivência ou vinculados a pretendentes habilitados junto ao SNA. “Neste contexto, considerando as informações acima prestadas, ainda que o número de sentenças de adoção no ano de 2020 tenha diminuído se comparado ao ano de 2019, verifica-se todo o trabalho que o Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul vem desenvolvendo na área protetiva da infância e juventude, sobretudo em relação à garantia do direito à convivência familiar, por meio da colocação em família substituta”, ressalta a juíza.

 

Para adotar e apadrinhar

Foto: Alina Souza

Para dar início à habilitação para a adoção, é necessário que o postulante procure a Vara da Infância e Juventude de sua Comarca de residência, a fim de receber a lista com os documentos necessários para ingressar com o pedido de habilitação. Ressalta-se que esta mesma lista se encontra disponível no site do TJRS. A constituição de advogado para entrar com o processo não é necessária. Com toda a documentação reunida, basta entregá-la no Fórum de sua Comarca, a fim de que o processo seja instaurado.

Após autuação do processo, os pretendentes passarão por curso de preparação jurídica, social e psicológica, no qual não só receberão orientações jurídicas acerca do processo, como também em relação a todas as questões que são transversais e que envolvem o tema da adoção. Isso proporciona aos postulantes um espaço rico de trocas e de socialização de informações, de dúvidas e de experiências, assim como oportuniza momentos de reflexão sobre o projeto adotivo, contribuindo para a construção de uma decisão segura e amadurecida em relação ao adotar.

Posteriormente à conclusão do curso, os pretendentes passarão por avaliação com assistente social e psicólogo, que emitirão laudo com parecer indicando a possibilidade ou não, do ponto de vista técnico, de habilitação dos postulantes. Ouvido o Ministério Público, o juiz realiza a análise de toda a documentação e profere sua decisão quanto à habilitação. No caso de a habilitação ser deferida, o pretendente é inserido no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA).

Já o apadrinhamento é possível pelo Projeto Apadrinhar, que tem como princípio estimular a manutenção de vínculos de crianças e adolescentes em situação de acolhimento com pessoas da comunidade. Após se tornarem padrinhos e/ou madrinhas, estas pessoas passam a estabelecer uma relação de afeto, respeito e cuidados, acompanhando, orientando e apoiando estas crianças e adolescentes. O interessado no apadrinhamento afetivo deverá entrar em contato diretamente com o Fórum de sua Comarca para obter informações.

A construção do amor

Cada experiência de adoção é única, assim como os sentimentos envolvidos em todos os processos que envolvem essa opção. Abaixo, as histórias de duas famílias que escolheram adotar crianças e adolescentes.

Quando já não esperava

Foto: Alina Souza

 

A jornalista Tatiana Santos Arnoud Danieli, de 50 anos, e o marido, o engenheiro civil Marcelo Danieli, de 52 anos, estão juntos desde 2007. Antes disso, ambos tiveram um casamento anterior. Marcelo teve um filho do antigo relacionamento que o acompanhou quando formou nova família com Tatiana. Na época, o rapaz tinha 15 anos e, hoje, está com 28 anos. Apesar de os dois já terem sido casados, essa não foi a primeira vez que eles se relacionaram. Na adolescência, foram namorados, dos 15 aos quase 20 anos. Ficaram separados, depois se reencontraram quando ela tinha 36 anos.

Tatiana conta que, com o enteado, teve uma boa ideia de como é ser mãe e participar da criação de uma pessoa. “Tentei muitas vezes engravidar e busquei ajuda com métodos de fertilização”, lembra Em 2017, mudou de planos. Desapegou da ideia de ser mãe biológica e buscou a adoção. “Em 2018, já estávamos habilitados.” Na hora de preencher as características do filho adotivo, não fez distinções. “Pedi crianças de zero a 5 anos, sem preferência de gênero e de cor”, salienta. Todavia, o sonhado filho ou filha, não veio rápido. “Já estava conformada e nem esperava mais”, confessa.

Veio a pandemia e com ela, perdas. A mãe de Tatiana faleceu de Covid-19 em 2020. “Fiquei muito abalada”, lembra. Depois, Brenda, a canina companheira de 19 anos adoeceu e Tatiana novamente ficou sem chão. Em meio aos cuidados com cachorrinha, quando já não esperava, recebeu a ligação que não previa. “Ligaram do abrigo perguntando se nós queríamos ainda adotar uma criança, pois tinham um menino de 1 ano e 9 meses”, relata. No momento, teve dúvidas. “Já estávamos mais velhos, tínhamos nossa rotina, nossos afetos e uma criança pequena mudaria tudo”.

Conversou com o marido e decidiram conhecer a criança. Ao ver o menino Benício, os sentimentos vieram à tona. “Fiquei olhando para ele e pensando em tudo o que eu tinha para dar para ele no aspecto emocional, psicológico”. Os pensamentos não pararam por aí. “Comecei a divagar sobre quem levaria nossas memórias, quem daria continuidade, além do meu enteado.” A sensação não foi diferente para Marcelo. “Quando olhei os olhos dele e ele sorriu para mim, me apaixonei.” Logo depois, Brenda faleceu. A dor da perda e o luto foram aliviados pela chegada do novo integrante da família. Foi um momento novo para todos. “Estamos ainda nos adaptando, mas muito felizes, não imaginamos nossa vida sem ele”, fala. O menino conquistou também os avós, que visitam com frequência. “Mexe muito comigo e com meus sentimentos, é muito amor por essa criança”, destaca Marcelo.

 

De repente quatro

Foto: Alina Souza

Há 12 anos juntos, o caminho dos empresários Michelle Augusto Feula Costa, de 41 anos, e Marcelo Cesar Costa, de 42 anos, foi trilhado, durante todo esse tempo, a dois. O desejo de ter filhos existia, mas Michelle, por questões de saúde, não podia engravidar. A adoção ainda não era uma ideia cogitada, até ela e o marido decidirem fazer um trabalho voluntário em uma casa-lar. “Ali conhecemos as crianças e suas realidades”, explica Michelle.

Era 2018, e nesse espaço, a história de quatro irmãos chamou a sua atenção. “O mais novo estava ali há seis anos, ele tinha 7 anos, ou seja, chegou ali com 1 ano de idade”, conta. Já as três mais velhas já tinham estado em um lar, mas foram devolvidas porque o casal que adotou só queria duas crianças.

Uma das filhas se cansou desse processo e disse que não aceitaria mais padrinhos e somente alguém que quisesse ficar com ela. Já outra teve um padrinho que desistiu dela. Ao se deparar com essa história, foi nascendo em Michelle a vontade de dar um lar de verdade e seguro para os irmãos. “Comecei apadrinhando os dois mais novos, mas quando falamos que íamos apadrinhar, eles entenderam que foram adotados e saíram avisando aos demais que tinham sido adotados e vieram felizes nos chamando de pai e mãe”, descreveu ela, dizendo que naquele momento decidiu pela adoção. Isso foi em abril de 2018.

Com a desistência do apadrinhamento, Michelle buscou a terceira no mês seguinte. E a que faltava, a mais velha, completou família em fevereiro de 2020. “Éramos dois e, de repente, chegaram mais quatro e ficamos seis”, salienta. O casal adotou os quatro irmãos, Ana Laura, de 15 anos, Sara, de 13 anos, Lucas Samuel, de 11 anos, e Alice, de 17 anos. Michelle e Marcelo são a exceção à regra que mostra que irmãos não estão entre o perfil preferido dos habilitados no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA).

A nova rotina da família é considerada como uma “bênção” pelos pais, mas eles não escondem que é cansativa. “Hoje são todos adolescentes e têm demandas especiais”, comenta Michelle. A adaptação dos quatro foi tranquila e, inclusive, trouxe melhoras para a saúde física e emocional dos adolescentes. “Quem nos conhece comenta que parece que sempre estivemos juntos”, fala ela, com orgulho. O pai também ganha elogios. “Ele sempre quis ser pai e é um parceirão, tem muita paciência, capacidade de diálogo e domínio, eu sou mais braba”, fala Michelle, aos risos.

 

Tecnologia impulsiona a adoção de grupos mais disponíveis

Foto: Alina Souza

Os números e o histórico de adoção reiteram que a preferência é por crianças pequenas e sem comprometimentos de saúde, o que faz com que os que não se encaixem nesses critérios acabem ficando nos abrigos, muitas vezes, até completar a maioridade. O analista de sistemas Nilson Ayala Queiroz, de 60 anos, deparou-se com essa realidade no dia em que fui buscar os irmãos biológicos que adotou no abrigo em 2012, quando eles tinham 4 e 7 anos.

Ele relata que, na época, um menino de 16 anos perguntou se ele seria pai também do mais velho dos irmãos e, diante da afirmativa, saiu com ares de tristeza. “As assistentes explicaram que esse comportamento era normal, pois sempre que viam alguém mais novo ser adotado, notavam que ficava cada vez mais longe a chance deles”, lembrou, dizendo que esse fato ficou martelando a cabeça.

Pesquisando na Internet sobre aplicativos para adoção, ficou surpreso com o resultado da busca. “Tinha adoção para gatos, cachorros, só não tinha para pessoas”, salienta. Ele então decidiu procurar a promotora de Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre, Cinara Vianna Dutra Braga, para aumentar as chances de irmãos, como no caso dele, terem mais espaço para serem vistos.

A promotora conta que buscou o Tribunal de Justiça do RS (TJRS) e a PUCRS para desenvolver o projeto. Em 2018, como resultado da parceria entre MPRS, TJRS e PUCRS, surgiu o aplicativo Adoção, que chegou com o objetivo de promover adoções de crianças e adolescentes que respondem pela grande maioria do perfil disponível: adolescentes, grupos de irmãos e jovens com deficiência. A ideia é que a humanização da busca, com fotos, vídeos, cartas e desenhos, possa despertar o interesse.

Disponível nas versões android e iOS, o aplicativo pode ser baixado nas lojas (Google Play e Apple Store). Com o App, as famílias que estão no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) podem conhecer detalhes das crianças e dos adolescentes, que contam, em vídeos, um pouco mais sobre eles. O público em geral também pode baixar o App, mas só tem acesso a informações básicas sobre adoção, sem identificação dos jovens cadastrados no aplicativo.

A ferramenta completou três anos neste ano, já tendo concretizado 41 adoções. Outras 35 crianças e adolescentes estão em aproximação ou já em estágio de convivência com suas possíveis novas famílias através da plataforma. “O Rio Grande do Sul é o terceiro Estado que mais fez adoções no Brasil, de acordo com o SNA, a partir de janeiro de 2019”, ressalta a juíza-corregedora e coordenadora da Infância e Juventude do RS, Nara Cristina Neumann, salientando que o Estado fica atrás apenas de São Paulo e do Paraná.

A experiência de Queiroz foi crucial para que houvesse avanço. Passados nove anos, a família é feliz com a escolha que fez. “Tentamos por dez anos ter filhos biológicos, aderimos a outros métodos, perdemos duas gestações, o que nos fez pensar em outra forma de ser pais”, lembra. Foi por meio da esposa, que é arquiteta e foi fazer um projeto no abrigo que moravam os filhos, que nasceu a vontade de cuidar dos meninos. “No momento, eu fiquei meio receoso, mas depois que conheci eles, foi amor à primeira vista”, recorda.

No abrigo

Foto: Alina Souza

Bruno (nome fictício) é econômico com as palavras. “Sou muito quieto.” Aos 16 anos, ele mora em um abrigo da Capital desde os 6 anos de idade. Nunca passou por nenhum lar. “Não sei como seria morar com uma família porque a vida que sempre conheci foi essa.” No seu lar, compartilha o quarto com mais dois jovens. A melhor amiga é a Jasmine, uma cachorra de cor caramelo que hoje está no abrigo por ter sido acolhida por ele. “É minha melhor amiga e melhor companhia.” Ele cursa o primeiro ano do segundo grau, é jovem aprendiz do curso de Desporto e gosta de desenhar. “Gosto de fazer personagens.” A paixão pelo esporte se expressa no skate e na escolha do futuro. “Quero ser professor de educação física.” A possibilidade de ser adotado antes de completar a maioridade virou um sonho distante. “Antes eu queria, mas agora não tenho mais expectativa.”

 

Roda dos Enjeitados

Roda dos Enjeitados que funcionava na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Foto: CP Memória

 

O abandono de crianças não é prática recente. O ato de abdicar de uma criança ainda bebê acontece há séculos. Porém, na história ganhou mais forma devido à Roda dos Expostos ou dos Enjeitados, mecanismo utilizado para abandonar (expor ou enjeitar, na linguagem da época) recém-nascidos, que ficavam ao cuidado de instituições de caridade. Tratava-se de um tambor ou portinhola giratória, embutido em uma parede, de tal forma que aquele que expunha a criança não era visto por aquele que a recebia.

Esse modelo ganhou inúmeros adeptos por toda a Europa, principalmente a partir do século XVI. No RS, a roda dos expostos existiu na Santa Casa de Misericórdia, fazendo parte da memória da instituição. A historiadora e coordenadora do Arquivo Central do Centro Histórico-Cultural Santa Casa, Vera Lucia Maciel Barroso, trabalha há 35 anos na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e destaca que a Roda dos Enjeitados começou a funcionar em 1838 e foi até 1940. “Durante 102 anos, quase 3 mil crianças foram abandonadas na roda, muitas vezes queimadas, quebradas, conforme o nível de rejeição, sendo que muitas eram colocadas quase mortas apenas para serem enterradas”, conta.

O toque de uma sineta era o aviso de que um bebê tinha sido deixado ali para então ser acionada e girar, separando o bebê do seu familiar. Muitas vezes eram pessoas muito pobres, que entendiam que não tinham condições de criar, mas também a roda recebia crianças de famílias abastadas. “Eram largadas adornadas de joias, com um enxoval riquíssimo, muitas vezes pedindo nome ou com uma correntinha para identificar a criança e possibilitar um resgate futuro.”

O futuro de meninos e meninas da roda

O destino de meninos e meninas eram diferentes. Se as famílias criadeiras não fossem continuar com a criança, aos sete anos, os meninos eram entregues à Santa Casa e as meninas aos sete. Os meninos eram levados para o Arsenal de Guerra,prédio onde fica o Museu do Exército, localizado na rua Bento Martins, esquina com a Rua dos Andradas, no centro de Porto Alegre. “Muitos iam para o serviço militar, aprendiam uma profissão, como marceneiro, funileiro, para o futuro”, conta. Já as meninas eram encaminhadas para um dos dois orfanatos que tinham na cidade, sendo um deles ao lado do Asilo Padre Cacique, que hoje fica na avenida Padre Cacique, bairro Menino Deus. “Elas aprendiam a ler, escrever, bordar, costura e, por vezes, até matemática”, ressalta.

Na idade de casar, quem cuidava da concepção do matrimônio era a Santa Casa. “Apareciam pretendentes para pedir a mão de uma menina, e se dirigiam ao diretor da Santa Casa para falar das intenções”. Fazia-se uma verificação a idoneidade do candidato, já que muitos vinham “se encostar na menina, sendo que elas ganhavam um dote para começar a vida”. Vera conta que, recentemente, descobriu-se que as meninas também ajudaram na construção do Asilo Padre Cacique, carregando pedras para a edificação do prédio.

Já o historiador chama a atenção para essa mudança de concepção na virada do século XIX, associada a outras políticas, que passam a ver aquela criança de merecedora de assistência do Estado como alguém que deveria ser útil. “Por isso a criança, que na época com sete, oito anos, já era considerada quase um adulto, começou a ser inserida no mercado de trabalho”, avalia.

A roda foi retirada por Mário Totta, médico, romancista, poeta e jornalista brasileiro, que inclusive trabalhou no jornal Correio do Povo, em 1895. A original foi consumida pela ação dos cupins, mas hoje há uma réplica no Museu Histórico da Santa Casa de Porto Alegre, que foi fundada em 19 de outubro de 1803. A origem da Santa Casa é portuguesa, sendo a primeira criada em 1498.

Contudo, nem todas as crianças colocadas na roda foram esquecidas. Vera menciona que a professora e poeta, Luciana de Abreu, que virou nome de escola e de rua,professora e poeta, foi enjeitada, e criada por um guarda livro, que decidiu não devolvê-la e a criou. “ Ela se tornou a primeira feminista do Estado e uma das primeiras do Brasil, lutando pelos direitos da mulher, com dedo em riste de políticos cobrando os diretos das mulheres”, relata. Ela faleceu de tísica, ainda jovem, sem ter completado 40 anos de idade.

Vera destaca que apareceram pessoas adotadas que foram deixadas na roda e buscam informações da mãe biológica, mas não se pode dar essa informação ao adotado, mas o anonimato é um direito jurídico da mãe assegurado pela Constituição Federal de 1988. “Apenas por via judicial, mas somente pelo nome da mãe que é o nome que tem no prontuário e não o da criança”, salienta.

 

Antes da Roda, o poder das Câmaras municipais

O mestre e doutor na área de História sobre assistência, pobreza e infância desvalida, Jonathan Fachini da Silva enfatiza que o ato de abandonar ou abdicar da criação de um filho e expor a criança na porta de uma casa, de uma Igreja ou na roda é muito antigo, oriundo do período medieval e chega até o século XX, durando cerca de 500 anos, período em que foi ganhando diversas roupagens políticas e novas lógicas do Estado. No Rio Grande do Sul, a roda chega com a colonização portuguesa, é uma prática ocidental, que vai se disseminando com outras etnias, como indígenas e africanos.

Antes da roda,o primeiro registro de abandono que se tem é entre 1755 e 1760, na primeira vila fundada pelos portugueses, em Rio Grande.“A Igreja considerava abandonar melhor do que infanticídio, pois morrer sem batismo era catastrófico”, comenta. Porém, antes da roda, a responsabilidade pelo mercado de assistência aos enjeitados no RS era das chamadas Câmaras Municipais, que eram o órgão máximo de poder da época,que instituía até questões de outras searas, como a determinação de preços. “Até 1709, tinha no RS apenas uma câmara para esse tema”, relata.

Todavia, o atendimento que essa Câmara prestava a essas crianças não era com foco na generosidade, mas na obrigação que tinha pela sua autoridade. A instituição concedia um valor para a família que tivesse uma criança abandonada a sua porta. Foi esta uma das razões que fez a Câmara delegar a Santa Casa essa incumbência. “Essa situação durou em torno de dez anos, pois a Santa Casa não queria colocar a roda mediante justificativa que potencializaria o abandono”, explica.

A Lei Provincial de Orçamento n. 9 de 22 de novembro de 1837 tornou a Santa Casa responsável pela administração dos expostos, sendo que passou a funcionar em 1838. “Até 1840, a roda era muito pouco utilizada e o abandono continuava no sistema antigo, o que fez a Câmara cobrar uma posição da Santa Casa”, relata. Então, observou-se que tinha uma luminária próxima á roda, o que poderia constranger a pessoa. “Ao retirarem a luminária, a roda começou a ser amplamente usada para o seu fim”, destaca.

O especialista conta que o primeiro registro de batismo de uma criança exposta no RS data de 15 de agosto de 1743, em Rio Grande. O número de crianças batizadas como enjeitadas em Porto Alegre de 1772 a 1837 é de 754. O registro da entrada de expostos na Roda em Porto Alegre de 1838 a 1880 é de 1.894. O RS não teve apenas uma roda. Além da Roda de Porto Alegre, que começou em 1838, teve em Rio Grande, em 1843, e Pelotas, em 1849.

Em relação à adoção, o especialista destaca que é no século XX que a legislação passa a considerar a criança como um ser digno de direitos, por meio do ECA. Antes a regulamentação era por meio de códigos, onde existia uma legislação focada na assistência e não na adoção. “Antigamente, tinha a expressão filho de criação, que é o que muitas dessas crianças se tornavam, agregados da família, poucos sendo de fato inseridos como filhos”, ressalta. Outro aspecto destacado é a informalidade depois que eram devolvidos, por volta dos sete anos.

Siva considera que, do ponto de vista de quem abdica da criança em prol de um futuro melhor para ela, pode-se estabelecer uma relação com o objetivo de adoção, que é o entendimento de que se abre mão do poder sobre a criança para que ela tenha um destino melhor. Por exemplo, muitas escravas abriam mão dos filhos para que não tivessem a mesma vida. No entanto, crianças negras entregue à roda muitas vezes eram contrabandeadas justamente para fugir do motivo que as fez parar ali e tornarem-se escravas.

O especialista lista a vulnerabilidade social como principal causa do abandono, mais do que por questões morais. Ele faz um link com a sociedade atual sobre esse caso e entende que pode-se discutir questões sociais importantes, como políticas públicas relacionadas à natalidade.

O historiador ressalta que a roda dos expostos está voltando na Europa. “Na Itália, já foi implementada devido ao alto número de crianças deixadas na rua”, explica, mostrando que muito ainda precisa ser feito nas relações sociais e humanas.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895