A retomada será verde?

A retomada será verde?

Embora haja certo consenso sobre a necessidade de que os pacotes de recuperação econômica no pós-pandemia incluam investimentos de combate às mudanças climáticas, ainda não há previsão de ações desse tipo em grande parte do mundo

Por
Simone Schmidt

A convivência de um ano com um vírus que percorreu o mundo mexeu não só com a saúde, mas passou a transformar também óticas relacionadas com produção, trabalho e subsistência. O isolamento social fechou empresas, extinguiu empregos e levou à reflexão diante de cenas como as que surgiram logo no início da pandemia do coronavírus, ainda no primeiro semestre de 2020.

Em Veneza, por exemplo, com todos dentro de casa, águas transparentes e peixes trouxeram um novo cenário aos espaços vazios, antes tomados pelo intenso trânsito de embarcações e turistas. Sabe-se que ficar isolado não é possível, mas a iniciativa tomada de emergência para evitar mais contaminações mostrou o que pode ser visto como símbolo e traz uma hipótese levantada por especialistas. Se empresas e governos respeitassem acordos ambientais internacionais, possivelmente homem, animais e natureza estariam mais afinados e o mundo seguiria com menos solavancos provocados por espalhamento de doenças.

Vem da própria diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente da Organização Mundial de Saúde (OMS), Maria Neira, a informação, divulgada amplamente na imprensa, de que 70% dos últimos surtos epidêmicos “saltaram” de animais para seres humanos depois da destruição de florestas tropicais. Alertou, portanto, sobre a necessidade de preservar “a casa” desses animais. Neira destacou também a necessidade de adotar cada vez mais o uso de energias renováveis. Não à toa, alguns governos e blocos econômicos elaboraram pacotes para a retomada do crescimento no pós-pandemia incluindo em seus planos iniciativas que protejam o ambiente e reduzam gases poluentes que intensificam a mudança climática, perigo que as florestas ajudam a dissipar com a força de sua vegetação. O aquecimento da temperatura média da Terra é impulsionado por gases de efeito estufa liberados, principalmente, a partir da queima de combustíveis fósseis.

Porém, a ONU advertiu, em relatório publicado na quarta-feira, que reativação econômica mundial está longe de ser “verde”. “Neste momento, os gastos verdes globais estão aquém da gravidade das três crises planetárias que são as mudanças climáticas, o desaparecimento da natureza e a poluição”, disse Inger Andersen, diretora executiva do Programa da ONU para o Meio Ambiente (Pnuma), no preâmbulo do documento, feito em colaboração com a Universidade de Oxford, na Inglaterra.

Humanidade, natureza e economia

A equipe da OMS que retornou em fevereiro da cidade chinesa de Wuhan, epicentro da epidemia, foi investigar as causas de toda essa reviravolta sanitária que desestabilizou também a atividade econômica. A comitiva voltou da missão sem confirmar a transmissão direta de espécies silvestres para humanos ou introdução do vírus em espécies intermediárias mais próximas de humanos, embora por muito tempo tenha sido destaque no noticiário um mercado da região que vendia animais silvestres vivos. E ainda, antes desta investigação da OMS na China, milhões de visons foram eliminados na Europa em 2020. A contaminação de fazendeiros por coronavírus na Dinamarca, na Espanha e na Holanda impulsionou a ordem dos governos de sacrificar os pequenos mamíferos, conhecidos por ter sua pele utilizada na produção de casacos. Enterrados em profundidade rasa se considerada a quantidade, outro problema sanitário surgiu por causa da liberação de gases sob o solo que “desenterrou” os animais.

Ainda que não existam conclusões definitivas, especialistas percebem a urgência de se criar harmonia entre a indústria e a natureza, tanto que países europeus já exigem, por exemplo, que empresas e governos com os quais negociam madeira, carne ou soja pelo mundo cuidem de suas matas para que as parcerias continuem. As iniciativas fazem parte da chamada economia verde, que prioriza a relação com o ambiente natural nas operações comerciais, industriais e tecnológicas. Recentemente, em fevereiro, América Latina e Caribe firmaram a Declaração de Barbados, fazendo um chamado para que a integração com as questões ambientais seja colocada no centro das estratégias de recuperação da crise provocada pela Covid-19. O documento divulgado pela Organização das Nações Unidas e assinado por ministros de Meio Ambiente da região inclui a reativação econômica baseada na inclusão social, nas atividades de baixo carbono e na conservação e uso sustentável dos recursos.

Porém, conforme o estudo do Pnuma em parceira com a Universidade de Oxford, menos de 20% dos recursos mundiais aprovados em 2020 para a recuperação favorecem o meio ambiente e o combate às mudanças climáticas. O novo Observatório Global de Reativação diz que 18% dos montantes dos planos de relançamento pós-Covid-19 de 2020 previam ações capazes de reduzir as emissões de gases de efeito estufa, limitar a poluição ou melhorar o capital natural. O valor excluí os fundos da Comissão Europeia. Se adicionados, o total representaria 23,4%. Os números levam em consideração os programas das 50 maiores economias do planeta. A análise aponta que os 341 bilhões de dólares destinados a uma retomada verde se concentraram principalmente na Coreia do Sul, Espanha e Alemanha, mas também na Dinamarca, Finlândia, França, Noruega e Polônia, entre outros. O relatório destaca os investimentos em energias renováveis na Espanha e o plano de hidrogênio na Alemanha.

Recentemente, a imprensa internacional divulgou o pacote de recuperação alemão, calculado em 130 bilhões de euros, cerca de R$ 900 bilhões, para promover crescimento e criação de empregos em setores de baixo carbono, dando ênfase a veículos elétricos, incluindo pesquisa e desenvolvimento de ônibus. E, ainda, a iniciativa alemã não relaciona em sua lista apoio à indústria automotiva baseada em combustível fóssil.

Com a União Europeia o movimento é semelhante e o valor destinado é maior. O bloco composto por 27 países montou um plano de investimento de 750 bilhões de euros, cerca de R$ 5 trilhões, para enfrentar a pandemia. Um quarto deste pacote, mais de R$ 1 trilhão, estaria ligado a ações de “crescimento verde”. Entre outros itens, há propostas de reformas na parte elétrica de prédios antigos, tornando-os mais eficientes no consumo, o que atrairia investidores do ramo de energias renováveis e tecnologias de captura e armazenamento de carbono. Há também ações relacionadas com financiamento da agricultura de baixo carbono.

Nos Estados Unidos, o plano de recuperação da economia, promulgado na quinta-feira pelo presidente Joe Biden, ultrapassa os 1,9 trilhão de dólares, cerca de R$ 10,5 trilhões. Recentemente a destinação específica para adotar “normas verdes” foi anunciada, pelo presidente democrata, eleito em janeiro. A quantia de 20 bilhões de dólares, ou mais de R$ 100 bilhões, é pequena em comparação com o todo, mas foi proposta ao Congresso pouco mais de uma semana após a posse. A atitude de Biden mostrou-se oposta à do antecessor Donald Trump, que havia inclusive abandonado compromissos internacionais relacionados ao clima. No documento, há itens como “fazer frente à crise climática, construir uma economia baseada na energia limpa, atacar as injustiças ambientais e criar milhões de empregos bem remunerados”. As medidas são similares ao Green New Deal ou “novo pacto verde” defendido pela ala progressista do Partido Democrata.

Já enfrentando no ano passado as consequências econômicas da pandemia, a Coreia do Sul elaborou um plano de recuperação voltado a tecnologias digitais no sentido de reforçar o teletrabalho e assim diminuir a circulação nas ruas e o trânsito de veículos, o que também ameniza a poluição no ar. O valor do investimento de 62 bilhões de dólares, ou R$ 335 bilhões, deverá ser aplicado até 2025 em ações que envolvem substituição de petróleo por energias renováveis e ainda a adoção de energia eólica ou solar em prédios e serviços de utilidade pública. Na mesma iniciativa tem espaço a criação de vagas de trabalho nas áreas de prevenção de desastres naturais e de manejo de recursos hídricos.

Organizações não governamentais acusam a continuidade do financiamento a poluidores. Na quarta-feira, ativistas do Greenpeace penduraram faixas com os dizeres "Pare de financiar assassinos do clima!" no telhado do Banco Central Europeu (BCE), em Frankfurt, na Alemanha. Foto: Armando Babani / AFP / CP

Baixo carbono como moeda

As iniciativas de governos pelo mundo para enfrentar a pandemia se relacionam com propostas de baixo carbono. Recentemente o presidente americano Joe Biden colocou os Estados Unidos novamente no Acordo de Paris, do qual o presidente anterior, Donald Trump, havia se desligado. Firmado a partir de iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) para combater o aquecimento global, o pacto persegue a meta de evitar o aumento da temperatura terrestre, ou seja, impedir o aumento de dois graus centígrados na temperatura do planeta em relação à era pré-industrial, resultado que seria desastroso por impulsionar o aquecimento global e a consequente mudança climática que potencializa calor, derretimento de geleiras, furacões e chuvas intermináveis. O acordo estimula a criação de mecanismos para diminuir esses impactos que são também econômicos, já que comunidades inteiras ficam sem energia e Internet e sem capacidade de produção quando os fenômenos ocorrem em frequência cada vez maior.

O Acordo de Paris foi celebrado em dezembro de 2015 durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP), e as propostas entraram em vigor em novembro de 2016. Na prática, não há lei que obrigue o cumprimento das regras, mas quem entra no pacto deve cumpri-lo. Uma parceria comercial feita entre dois países que assinaram o tratado, por exemplo, pode ser desfeita caso um deles não obedeça às regras estabelecidas. A economia de baixo carbono foi um termo que ganhou popularidade a partir das discussões mundiais sobre defesa do meio ambiente. Em outras palavras, seria um sistema econômico com baixa emissão no ar de poluentes como monóxido e dióxido de carbono, gases formados a partir de queima de óleos e funcionamento de motores movidos a combustível fóssil. Também por isso a indústria automotiva já se movimenta para investir em automóveis e ônibus movidos a eletricidade.

Busca de bem-estar

A expressão "economia verde" ganhou popularidade em 2011 quando o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente conceituou: "Uma economia que resulta em melhoria do bem-estar da humanidade e igualdade social, ao mesmo tempo em que reduz os riscos ambientais e a escassez ecológica". A iniciativa se consolidava após a crise econômica enfrentada em 2008 e 2009 nos Estados Unidos e que afetou praticamente todo o planeta. Agora, pressionados mais do que nunca pelas dificuldades com a Covid-19, governos buscam soluções na energia limpa para ampliar a tecnologia que permite trabalho à distância, o que significa menos deslocamentos e menos poluição e tráfego intenso de veículos que deixam gases no ar. O que a ONU chamou de economia verde há 10 anos vai se transformando.

Iniciativas em energia limpa, como essa instalação de painéis solares flutuantes no reservatório Tengeh, em Cingapura, enfrentam desafios como custo e acesso e descarte de materiais. Foto: Roslan Rahman / AFP / CP

Pelo Brasil, pesquisadores vão além e trabalham com “bioeconomia”, como é o caso de Daniel Caixeta Andrade, professor da Universidade Federal de Uberlândia que leciona a disciplina de Desenvolvimento e Sustentabilidade no Programa de Pós-Graduação em Economia. O pesquisador é enfático ao dizer que o Brasil contribuirá muito com a economia verde a partir do momento que controlar o desmatamento. Somente com essa ação, observa, a emissão de gases se reduziria e entraria em padrões internacionais de controle. Além disso, assinala, o desmatamento tem influência direta nas zoonoses, ou seja, doenças detectadas em animais que podem ser transmitidas para humanos. Para Andrade, a pressão externa sobre o Brasil quanto a outros países comprarem produtos somente de empresas que preservem florestas é um primeiro passo para progressos. Críticas do presidente francês Emmanuel Macron feitas no início do ano a agricultores que plantam soja em áreas desmatadas e possíveis retaliações teriam apressado a busca de providências pelo governo do Brasil. Em nota divulgada à época, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) destacou que "a soja produzida no bioma Amazônia no Brasil é livre de desmatamento desde 2008 graças à Moratória da Soja".

O governo federal criou a Conselho da Amazônia, coordenado pelo vice-presidente, general Hamilton Mourão, que há algumas semanas anunciou o fim da presença de militares na fiscalização da floresta. Ibama e Instituto Chico Mendes ficarão responsáveis pelo trabalho. “Faremos mais com menos”, declarou. No Fórum de Davos, realizado este ano de modo virtual, Mourão havia afirmado que o Brasil faria esforços para preservar a Amazônia, mas ressaltou que para investir nesta proteção precisaria também, além da parceria do BNDES, de apoio da iniciativa privada.

Mais recentemente, em fevereiro, o governo do Mato Grosso informou ações regionais. Secretários de meio ambiente da Amazônia Legal firmaram um plano conjunto para combate a desmatamento e a incêndios. “Nossa preocupação com incêndios florestais e desmatamento é porque o cenário de chuvas aponta que teremos novamente um ano de muita seca que possivelmente vai gerar um número de focos de calor igual ou maior que do ano passado. O ideal é que tenhamos uma resposta antecipada, com o alinhamento de operações coordenadas e regionais”, explicou Mauren Lazzaretti, presidente da Câmara Setorial e do Fórum dos Secretários de Meio Ambiente. Mauren também é a titular da pasta no Mato Grosso. A Amazônia Legal, segundo o IBGE, abrange nove estados e ocupa 58,9% do território nacional. É formada por 52 municípios de Rondônia, 22 do Acre, 62 do Amazonas, 15 de Roraima, 144 do Pará, 16 do Amapá, 139 do Tocantins, 141 do Mato Grosso e ainda 21 municípios do Oeste do Maranhão. A superfície total é de 5.015.067,749 km². Dados de 2020 mostraram que o desmatamento aumentou 30% frente a 2019 e consumiu 8 mil quilômetros de floresta, segundo o Instituto Amazon. A perda em área corresponderia a cinco cidades do tamanho de São Paulo.

O professor Andrade também destaca que preservar a Amazônia não se limita a apenas auxiliar na eliminação de gases no ar. “É um patrimônio econômico”, assinala, lembrando que a floresta é “uma biblioteca e um laboratório”, pela quantidade de conhecimentos que proporciona a cientistas na produção de medicamentos a partir de suas plantas e ervas. “Reduzir o desmatamento e reduzir emissões é uma oportunidade econômica”, reitera.

Foto: Jean-François Monier / AFP / CP

Estudiosos apontam que a forma como criamos animais e a destruição das florestas são potenciais criadouros de zoonoses. Na foto de cima, membros do parlamento europeu acompanham o transporte de perus em Blancafort, na França. Na foto de baixo, também na França, técnicos trabalham na construção de um ônibus a hidrogênio em Albi.

Foto: Georges Gobet / AFP / CP

"Problema coletivo tem que ser resolvido como tal"

A observação não é estatística, mas o senso comum seguidamente traz a impressão de que players do mercado financeiro se preocupam unicamente com resultados e retornos sem considerar efeitos sociais ou ambientais. Na contramão desta ideia está Fernanda Feil, economista gaúcha radicada no Rio de Janeiro, doutoranda na Universidade Federal Fluminense. Fernanda atua como consultora e palestrante e seu trabalho de pesquisa é concentrado no setor financeiro com foco no processo de desenvolvimento econômico e na transição verde. “Vivemos neste momento não só uma crise sanitária, mas política, econômica e acima de tudo ambiental”, afirma, acrescentando que a busca de soluções passa por um processo que considere a preocupação com o meio ambiente nas atividades de produção e que seja “grande e coordenado”.

Fernanda se refere a três espaços específicos: Estados Unidos, União Europeia e China. O retorno dos Estados Unidos ao Acordo de Paris, enfatiza, é um sinal relevante e as práticas europeias na busca de energia limpa também contribuem de forma importante. O maior esforço, observa, ainda precisa vir da China. “Estados Unidos e China são responsáveis por mais de 60% das emissões de carbono. Se esse bloco fizer uma movimentação de mudança de alta produção para baixa produção de carbono, aí sim”, observa, lembrando que a iniciativa tende a impactar praticamente todas as regiões do planeta, entre estas a América Latina. “Problema coletivo tem que ser resolvido como tal”, alerta, acrescentando que o mundo todo foi afetado não só pela pandemia, mas também por desempenhos negativos do Produto Interno Bruto (PIB). A exceção foi a China, que ainda conseguiu registrar crescimento em sua economia no ano passado, mas o avanço de 2,3% foi o menor em 44 anos.

Sobre como resolver uma recuperação econômica em conjunto com as questões ambientais, a consultora explica que os bancos públicos têm papel de destaque. “O Brasil tem a vantagem de poder fazer isso por meio dos bancos públicos e eles vão ter que se voltar para a transição verde”, afirma, lembrando que o caminho vai se consolidando à medida que países mais desenvolvidos, na hora de fechar negócios, cobram de seus parceiros comerciais postura de respeito e de limites quando a questão é uso de recursos naturais.

As preocupações que neste momento crescem junto com a crise do coronavírus estão relacionadas com um termo que se tornou popular nos últimos 10 anos: green swan, ou cisne verde, uma analogia ao cisne negro ligada a desastres raros e com grande potencial de destruição. Especialistas do ramo usam a expressão para se referir ao aumento de eventos climáticos e catástrofes como furacões, terremotos, chuvas desmedidas e incêndios florestais que destroem regiões inteiras, paralisam comunidades e indústrias, causam desemprego e inflação repentina a partir do aumento de preços por conta da escassez de produtos, o que mexe até com o valor de mercado de empresas. Assim como muitas vezes os fenômenos ligados à natureza trouxeram potenciais estragos, com o espalhamento da Covid-19 não foi diferente. Pouco antes de a pandemia ser declarada no mundo em 11 de março do ano passado, o Bank for International Settlements (BIS), considerado o “banco central dos bancos centrais”, publicou o livro “The Green Swan”, com autoria de Patrick Bolton, Morgan Despres, Frédéric Samama, Romain Svartzma e o brasileiro Luiz Pereira da Silva, que é diretor na Instituição. A publicação relaciona economia e mudança climática e as possíveis perdas neste cenário. O episódio da Covid, acredita Fernanda, se assemelha ao cenário descrito pela publicação, já que os acontecimentos ligados a um vírus também estão muito relacionados com o ambiente, trazendo prejuízo social e financeiro. “Tira tudo do lugar”, diz ela, argumentando ainda que políticas monetárias e fiscais precisam ser construídas pelos governos junto com a sociedade, considerando sempre formas de produzir equilíbrio ambiental.

Agenda dos bancos

O Banco Central (BC) incluiu a dimensão sustentabilidade na agenda institucional BC# ainda em 2020, ano da pandemia. Fernanda Nechio, diretora de Assuntos Internacionais e Gestão de Riscos Corporativos do Banco Central, elencou, em evento virtual, os pilares na agenda institucional, entre eles campanhas internas de conscientização ambiental e incorporação de cenários de riscos climáticos em testes de estresse. O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, lembrou que a Covid-19 mostrou o quanto o mundo é vulnerável a fatores naturais e destacou que 22% do saldo de crédito para empresas, segundo informações do BC, foram destinados a setores que contribuem com a economia verde.

O BNDES, que realizou em outubro uma série de webinars sobre a retomada vede, oferece linhas de crédito que são concedidas por meio de três programas. O Fundo Clima apoia plantio florestal com valor de até R$ 3 milhões e o BNDES Finem tem dois ramos: um voltado à recuperação e conservação de ecossistemas e biodiversidade, com manejo de florestas no valor de até R$ 10 milhões, e outro é direcionado para investimentos “na exploração ordenada de recursos naturais vegetais e animais em ambiente natural e protegido”, com limite de R$ 20 milhões.

Em nível regional, 2020 também marcou iniciativas, mas desta vez pela captação de crédito no exterior para desenvolver projetos sustentáveis. Dirigentes do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) firmaram com a Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) financiamento de 70 milhões de euros, cerca de R$ 470 milhões. O governador Eduardo Leite observou na época que a confirmação do contrato com o órgão francês permite crédito para os chamados projetos “de alto impacto socioambiental” no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Trouxe como exemplo uma empresa que adotou um modelo conjugado de uso de compostagem e biodigestores e que produz 80 mil toneladas de adubo a partir de resíduos industriais e agropastoris orgânicos.

Reorganização e cautela

Doutor em Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente pela Unicamp, o economista, pesquisador e professor da Universidade Federal do Paraná Junior Ruiz Garcia é cauteloso ao analisar o real potencial da economia verde para uma retomada no mundo. Garcia aprofunda em sua pesquisa estudos sobre economia ecológica, agrária, agrícola e regional, além de valoração e gestão dos recursos naturais. Para o ele, o uso de tecnologias limpas não é suficiente para resolver dificuldades que já estão muito além do limite. Garcia chama a atenção para o problema trazendo o exemplo de carros e ônibus elétricos, já bastante incentivados na Europa e festejados como alternativa à queima de combustível fóssil. “Aqui no Brasil já estivemos na bandeira vermelha”, recorda, lembrando que em dezembro a cobrança extra na conta de luz chegou à cor vermelha de patamar 2, ou seja, a taxa mais cara e que custa R$ 6,24 para cada 100 quilowatts/hora gastos pelo consumidor. Essas taxas geralmente são cobradas quando os reservatórios do país ficam em baixa e, no lugar de só as hidrelétricas atenderem ao consumo, é preciso ativar também as termoelétricas, que têm custo mais alto, repassado para as tarifas de energia.

Nos primeiros meses deste ano o país até conseguiu amenizar essa cobrança extra, mas não eliminá-la, tanto que janeiro e fevereiro tiveram bandeira amarela, com valor menor que o da cor vermelha: R$ 1,34. Essas quantias podem parecer toleráveis se vistas na conta de luz de uma pessoa física que mora só ou uma família pequena, mas o valor se amplia de forma significativa quando os clientes são indústrias e comércios. A cobrança extra só não é feita quando o sistema está na cor verde. Diante dessa necessidade de ativar termoelétricas, que vem ocorrendo de forma consecutiva desde o final do ano passado, o professor questiona o quanto a indústria energética estaria preparada para uma transição que levaria a mais consumo.

Outra preocupação trazida pelo economista é relacionada com o descarte. A quantidade de lixo eletrônico a partir de baterias e outros componentes não mais utilizados seria outro nó do emaranhado na corrida por soluções consideradas mais limpas. “O Brasil hoje tem 60 milhões de carros. Imagine o aumento da demanda energética”, reitera, complementando: “Não digo que a tecnologia não é boa, mas não é suficiente para resolver”. Garcia se refere a outros pontos relacionados com consciência, educação e consumo, já que, conforme alerta, há um “teto” para a extração de recursos do planeta e para a capacidade de absorver material descartado. “Existe um limite de crescimento e esse limite já foi ultrapassado”, observa, explicando o porquê de não adotar o termo “retomada” para uma recuperação econômica. Em lugar de retomada, acredita, a economia precisa se estabilizar por meio da reorganização e da adoção de um novo pensamento, ou seja, menos desigualdade e melhor distribuição da renda e da produção de alimentos, hoje bastante concentrada. “Qual a necessidade de uma sociedade com tantos desafios ambientais produzir bens de luxo?”

Economistas e pesquisadores compartilham um mesmo posicionamento: na recuperação da economia de forma ambientalmente sustentável é preciso acrescentar o combate à desigualdade. Na foto, mulheres esperam para conseguir comida em um refeitório do setor de Pamplona Alta, que também sofre com a falta de água, na periferia de Lima, no Peru. Foto: Ernesto Benavides / AFP / CP

"Não há retomada verde sem pressão social"

Verônica Korber Gonçalves é professora da Ufrgs na graduação em Relações Internacionais e na pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais. Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e graduada em Direito, a professora é enfática ao avaliar que as alternativas para a economia mundial passam pela integração entre comunidades e governos. “Não existe retomada verde sem pressão social e sem que o Estado coordene. Esse discurso de crise-oportunidade assentado na sociologia traz uma crença de que sempre conseguimos resolver tudo com tecnologias mais novas”, assinala, mas não sem ponderar que, apesar das dificuldades, há alentos.

Ela considera que Europa e Estados Unidos mostram caminhos à medida que Joe Biden, o presidente americano, retorna ao Acordo de Paris, e à medida que a União Europeia desenha parte de seu pacote econômico voltado a uma produção com menos poluição. Entretanto, ressalta a pesquisadora, se for usado o mesmo exemplo dos veículos movidos com energia limpa, projeto no qual quase todos os países europeus já apostam, fica a dúvida quanto a outros materiais previstos na fabricação. “Tira o carro que queima combustível, mas o plástico, o aço, todo o resto permanece. E o descarte disso?”, pergunta. “O quanto nossas cidades ainda serão lugares adequados?”, completa, lembrando que tanto entusiasmo com uma produção sem combustíveis fósseis poderia levar à ampliação do consumo e do interesse por comprar automóveis, exigindo ainda mais vias para o trânsito. “Tudo isso está muito presente no imaginário da União Europeia, mas vai exigir mais estradas, impermeabilizar o solo”, prevê, referindo-se ao asfalto de ruas e avenidas que acabam se transformando em “piscinas”, já que as pistas construídas a partir de petróleo não permitem que, em dias de chuva, a água seja absorvida pela terra, uma barreira que contribui para alagamentos e incontáveis estragos, tanto de cunho econômico quanto social.

É preciso "derrotar a pandemia", dizem organismos

Economistas e pesquisadores compartilham um mesmo posicionamento: no processo de retomada é preciso acrescentar o combate à desigualdade. Ou seja, recuperar a economia de forma sustentável significa também acolher os mais pobres e fazer com que chegue até eles alimento, saneamento, trabalho e renda, itens que ficaram ainda mais escassos ou até desapareceram em nações menos desenvolvidas com o advento da pandemia.

O tema voltou à discussão na reunião organizada pelo G7, grupo dos países mais ricos e desenvolvidos composto por Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido. No encontro ficou acertado que os países industrializados devem posicionar as questões climáticas no centro de suas decisões econômicas, ajudar nações mais pobres a lidar com a pandemia e avançar no imposto digital, conforme detalhou o Reino Unido, nação que presidiu o evento por meio do ministro de Finanças britânico Rishi Sunak. Ministros de finanças e banqueiros dos países do grupo se uniram em videoconferência, acompanhados de representantes do Banco Central Europeu (BCE), do Eurogrupo, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. O encontro foi preparatório para a Cúpula de Chefes de Estado e de Governo do G7, marcada para junho na Cornualha, Sudoeste da Inglaterra, o que ainda depende do andamento da pandemia. Sunak pediu aos participantes que concentrem suas ações em “ajudar os países mais vulneráveis em 2021 e fazer do clima uma prioridade central para alcançar uma retomada econômica verde após a pandemia”.

As questões climáticas ocupam agora um lugar de destaque na agenda do Reino Unido, que em novembro deverá sediar a COP26 em Glasgow, na Escócia. O ministro britânico defende distribuição rápida e justa de vacinas contra a Covid-19 em todo o mundo e alertou para que instituições financeiras internacionais “tenham as ferramentas certas” para ajudar. Londres acrescentou que o G7 também reconhece a necessidade de avançar para uma solução internacional sobre um imposto a ser cobrado de gigantes da Internet e da tecnologia, como Google, Amazon, Facebook e Apple, o que auxiliaria na distribuição de recursos. A previsão é chegar a um acordo até meados deste ano e o assunto deverá ser trabalhado também pelos países do G20 e pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A operação de ajuda aos países mais pobres vem sendo debatida pelo FMI desde o ano passado e igualmente inclui ações de combate à mudança climática para mover a economia. A diretora-gerente do organismo, Kristalina Georgieva, informou mais recentemente que economias avançadas gastaram aproximadamente 24% do PIB em média para apoiar medidas durante a pandemia em comparação com 6% em países emergentes e 2% em países de baixa renda. Georgieva traz ainda uma preocupação quanto a grandes agitações sociais, inclusive em países emergentes, o que seria desencadeado pela diminuição de renda e extinção de empregos, desequilibrando mais uma vez o processo econômico. Ela ressaltou, por fim, que as campanhas de vacinação têm sido desiguais nas regiões mais vulneráveis: “O aumento nas infecções é um poderoso lembrete de que uma recuperação econômica sustentável não pode ser alcançada a menos que derrotemos a pandemia em todos os lugares”.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895