Abates clandestinos desafiam fiscalização

Abates clandestinos desafiam fiscalização

Sistema de Defesa Sanitária costuma detectar a venda de carne irregular e, a partir desta informação, deflagra operações que encontram condições precárias de higiene no manuseio e armazenagem do produto. Em três anos, foram 31 casos

Por
Danton Júnior

As condições de higiene são precárias. Pelos podem ser encontrados em meio aos pedaços de carne. Cães e gatos circulam livremente no mesmo ambiente do produto. Restos de animais são despejados no meio ambiente. Assim os agentes da fiscalização descrevem os abatedouros clandestinos encontrados no Rio Grande do Sul nos últimos anos. E não foram poucos. Somente no ano passado, dez operações de combate ao abate clandestino (como na foto acima) foram deflagradas pela Divisão de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa), da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr), envolvendo produtos de diferentes espécies animais. Nos últimos três anos, o total de casos chega a 31. 

A descoberta de um esquema que vendia ilegalmente carne de cavalo para hamburguerias de Caxias do Sul, em novembro do ano passado, assustou os consumidores, mas outros casos semelhantes têm sido descobertos, muitas vezes sem a mesma repercussão. A prática criminosa representa um grave risco à saúde pública, com a possibilidade de transmissão de diversas zoonoses (doenças infecciosas transmissíveis de animais para seres humanos). “(O abate ilegal) se dá em cidades de menor poder aquisitivo, eventualmente abastecendo a região periférica das grandes cidades”, explica o chefe da Dipoa/Seapdr, Endrigo Ziani Pradel.

A maioria dos abates clandestinos ocorre fora de empresas legalmente constituídas. Pradel explica que, em muitos casos, o responsável pela prática começa vendendo o excesso da sua própria produção, até que passa a aumentar o número de animais abatidos. “A partir do momento em que ele começa a expandir, ele se torna detectável no nosso sistema de defesa”, explica. Neste momento, as atividades começam a ser rastreadas, o que poderá culminar com alguma operação. As operações são desencadeadas a partir de informações captadas pela rede de vigilância sanitária, presente em todos os municípios gaúchos, ou por meio de denúncias. 

A maior parte dos casos envolve a produção ilegal de carne bovina, mas também há uma participação grande da carne ovina. No caso da carne de cavalo, o abate e o consumo não são proibidos – embora no Rio Grande do Sul haja uma relação mais “afetiva” com o animal. O Estado conta com um único frigorífico registrado para o abate de equídeos, localizado em São Gabriel, voltado à exportação. 

Entre as doenças com maior possibilidade de transmissão estão a salmonelose, listeriose, brucelose, tuberculose e disenterias por coliformes. “Essas carnes, invariavelmente, são contaminadas por coliformes”, assegura Pradel. Em um estabelecimento legalizado, o médico veterinário responsável pela inspeção faz a segregação das partes impróprias para consumo. Um dos fatores que facilitam a proliferação bacteriana é a utilização de galpões de madeira, material que, por ser poroso, torna-se difícil de higienizar. Há casos, porém, em que o abate é feito a céu aberto. 

São abates clandestinos aqueles feitos fora de um estabelecimento autorizado e sem a presença de um fiscal agropecuário. Segundo a Seapdr, o Rio Grande do Sul conta com 57 abatedouros habilitados por meio do Serviço de Inspeção Federal (SIF), 98 pelo Serviço de Inspeção Estadual (SIE, antigo Cispoa) e 313 pelos Serviços de Inspeção Municipais (SIM). A atividade é regrada pelo Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária dos Produtos de Origem Animal (Riispoa), que determina quais são os padrões para registro e funcionamento dos estabelecimentos e especifica como deve funcionar a inspeção dos produtos de origem animal. Para o chefe do Dipoa, a maior dificuldade no combate ao abate clandestino é a aceitação da comunidade, que muitas vezes fomenta a prática por querer pagar menos pela carne. 

O aumento da fiscalização é apontado por entidades como a principal forma de reduzir a incidência dos abates clandestinos. “Em um estado com uma pecuária forte, como é o nosso, precisaríamos de muito mais fiscais”, afirma o promotor Alcindo Luz Bastos da Silva Filho, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) – Segurança Alimentar do Ministério Público Estadual (MP/RS). 

Em novembro do ano passado, o promotor esteve à frente da operação Hipo, que desarticulou uma organização criminosa que vendia carne de cavalo a hamburguerias de Caxias do Sul. Quatro réus estão presos preventivamente. Segundo Silva Filho, a prática incorre em crime contra as relações de consumo e a ordem tributária (pena de até cinco anos de detenção) e alteração e comercialização de substância alimentícia deteriorada ou sem procedência (até oito anos). 

Consumidor é orientado aos hábitos preventivos

Órgãos de fiscalização pedem que comprador observe aspecto da carne, confirme se o produto tem os selos de garantia e até se fidelize a fornecedores de confiança

Alimento exposto em açougues deve ter aparência saudável e não pode conter resquícios de poeira, grama, terra ou pelos, entre outras impurezas. Foto: Paulo Nunes / CP Memória

Toda a carne abatida de forma legal deve contar com o selo de uma das três instâncias de inspeção: SIM (municipal), SIE (estadual) ou SIF (federal). Isso significa que os estabelecimentos produtores estão registrados nos órgãos competentes e que os animais foram abatidos na presença de um fiscal agropecuário. É o fiscal que irá colocar o carimbo azul no produto, atestando que ele foi inspecionado antes de chegar ao comércio. 

Outra orientação ao consumidor é observar o aspecto da carne. “De maneira nenhuma ela pode ter pelos, grama, poeira ou terra”, observa Endrigo Pradel, chefe do Dipoa/Seapdr. Na industrialização dentro da legalidade é feito o processo de sangria do animal, que permite a retirada do sangue, o que não ocorre no abate clandestino. Desta forma, a carne ilegal apresenta um aspecto mais escurecido. “Muitos destes animais são fruto de abigeato. É muito raro que se encontrem em estado adequado para abate. A carne é mais feia, mais flácida, tem menos gordura, visualmente diferente do padrão”, descreve Pradel. 

O promotor Alcindo Bastos, do MP/RS, recomenda que o consumidor tente se fidelizar com algum estabelecimento comercial de confiança, de modo a evitar o consumo de carne sem procedência. Outra orientação é prestar atenção à data de validade e à forma de conservação. “Um produto congelado tem que ser vendido congelado. Nas carnes a granel, penduradas nos balcões, (deve se) tentar ver se tem o carimbo”, recomenda. 

O avanço das novas tecnologias permitiu que os criminosos aperfeiçoassem as suas técnicas de comercialização da carne abatida ilegalmente. Nos últimos anos, anúncios de fábricas clandestinas multiplicaram-se pela internet. Segundo o chefe do Dipoa/Seapdr, Endrigo Pradel, é comum encontrar anúncios de produtos vendidos como “caseiros” ou “artesanais” em sites de venda ou em redes sociais. “O comércio ficou muito mais fácil”, observa. “As pessoas se atraem pelo baixo preço ou por um produto supostamente ‘artesanal’ e se esquecem que é necessária uma garantia para a própria saúde”, complementa. Conforme o veterinário, esse tipo de prática torna ainda mais difícil o trabalho de fiscalização, já que raramente os clandestinos divulgam na internet o endereço do estabelecimento.

A opção dos consórcios regionais

O pequeno porte dos ovinos e a facilidade para transportá-los fazem com que esses animais sejam alvo de quadrilhas de abigeatários, que praticam o abate de forma ilegal. O assunto preocupa entidades do setor, mas há outro tema que também recebe a atenção da Associação Brasileira de Criadores de Ovinos (Arco): a situação da ovinocultura de subsistência, formada por pequenos pecuaristas, cujos abates também são denominados clandestinos por não contarem com inspeção sanitária. 

“Não podemos simplesmente deixar de olhar essa ovinocultura de subsistência, que é tão importante principalmente na questão da carne, mas também no aspecto da lã”, afirma o presidente da Arco, Edemundo Gressler. A sugestão do dirigente é a organização de consórcios intermunicipais. Prefeituras vizinhas se organizariam para que os abates ocorressem em um frigorífico de pequeno porte, com inspeção municipal, sob o acompanhamento de um médico veterinário. “Esse produto poderia circular de forma oficial entre os municípios que fizessem parte deste consórcio”, sugere Gressler. 

O abigeato também é uma preocupação para os criadores de bovinos. Segundo o coordenador da Comissão de Pecuária de Corte da Farsul, Pedro Piffero, o trabalho das delegacias especializadas na repressão aos crimes rurais e abigeato (Decrabs) tem ajudado a combater a prática, mas o período de valorização da pecuária acendeu o alerta para os produtores. 

Piffero ressalta ainda a importância de reforçar o trabalho de fiscalização da Seapdr no interior do Estado. “Nosso carro-chefe é a sanidade, que torna-se ainda mais importante com a retirada da vacina (contra febre aftosa)”, observa. 

Como denunciar irregularidades

Superintendência Estadual da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no Rio Grande do Sul – SFA/RS

Fiscaliza produtos de origem animal e vegetal. Site: www.agricultura.gov.br/ouvidoria.

Vigilância Sanitária - Secretaria Estadual da Saúde

Atua na fiscalização dos alimentos, de origem animal e vegetal, disponibilizados no comércio em geral. Site: www.saude.rs.gov.br. E-mail: dvs@saude.rs.gov.br.

Procon RS

O Procon tem como objetivo a proteção dos cidadãos em todas as relações de consumo. Site: www.procon.rs.gov.br.

Ministério Público do Rio Grande do Sul

O Ministério Público é o defensor dos interesses coletivos da sociedade. Site: www.mprs.mp.br/siac/formulario.

Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr) 

Fiscaliza frigoríficos, abatedouros e todas as indústrias que distribuem produtos deste tipo no Estado. Site: www.agricultura.rs.gov.br/contato. E-mail: protocolo-dipoa@agricultura.rs.gov.br. Fone: 51 3288 6393.

Para CRMV, mais municípios devem ter o SIM

Conselho entende que a legislações devem ser unificadas porque a ausência de um serviço de inspeção local favorece o abigeato e a produção clandestina de carne

Para o presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV/RS), Mauro Correa Moreira, as prefeituras deveriam avançar na implantação do Serviço de Inspeção Municipal (SIM), que é o responsável pela fiscalização de produtos de origem animal em trânsito dentro do município. A ausência do serviço, segundo Moreira, favorece a produção clandestina e o abigeato. 

Moreira defende a unificação da legislação dos SIMs. O tema deve pautar reunião do CRVM/RS com a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) nas próximas semanas. Conforme o dirigente, é necessário que os serviços municipais possam se comunicar e trocar informações sobre o abate de animais. “Precisamos ter um controle sanitário que faça a interface entre a inspetoria veterinária, o SIM e até mesmo o SIF. Com um sistema unificado, poderemos ter um controle maior”, acredita. A unificação também ajudaria a coletar informações sobre o número de abates, conforme Moreira, levando-se em conta que o Rio Grande do Sul é um grande produtor e consumidor de carne. 

Há também casos de municípios que não preveem a presença de um médico veterinário nos momentos de abate e pós-abate, segundo Moreira. Porém, ele alega que se o responsável técnico for um profissional de outra área, o CRMV/RS não tem como atuar – o que reforça o pleito por uma legislação unificada. “A responsabilidade técnica não é para o conselho fiscalizar, é para dar à sociedade o direito de consumir um produto certificado”, defende o presidente do CRMV. 

No caso de municípios que não contam com o SIM e nem com um médico veterinário para fiscalizar os abates, há o risco de que um produto sem origem conhecida também seja abatido, segundo Moreira. Ao longo de 2022, o CRMV/RS planeja oferecer cursos de responsabilidade técnica a profissionais que atuam em abates. 

Criada em 2018, a Associação dos Servidores da Inspeção dos Serviços Municipais do Rio Grande do Sul (Assim/RS) conta com 80 associados. Segundo o presidente da entidade, Ariel Duarte Lima, os profissionais da área estão sujeitos muitas vezes a interferências políticas, que visam flexibilizar o cumprimento da legislação. Na avaliação dele, fortalecer o SIM é a melhor forma de combater o abate clandestino e o abigeato. 

Afagro defende contratações

O número de ocorrências envolvendo abates clandestinos poderia ser maior se o Estado contasse com mais servidores para a fiscalização, segundo o presidente da Associação dos Fiscais Agropecuários do Rio Grande do Sul (Afagro), Richard Alves.

Além da competência relacionada à Seapdr, Alves acredita que a vigilância sanitária, ligada à Secretaria Estadual da Saúde, deve atuar para fazer a fiscalização em açougues, de modo a identificar a carne que não possui qualidade para chegar ao consumidor. “Falta gente para fazer isso no dia a dia”, resume.

Alves afirma também que a categoria encontra-se desde 2014 sem reajuste salarial e que muitos servidores acabam deixando o quadro em busca de carreiras mais atrativas no mercado. O dirigente queixa-se ainda da redução no número de Inspetorias de Defesa Agropecuária (IDAs) no interior do Estado, após reestruturação da Seapdr. 

Em nota, a Seapdr respondeu que foi publicado no dia 26 de novembro de 2021 o edital de concurso público que prevê a abertura de 31 vagas para o cargo de fiscal estadual agropecuário, sendo 16 delas para médicos veterinários. A solicitação inicial da secretaria ao governo estadual era de 135 cargos para repor as vagas de grau A (em que se inicia a carreira).

Quanto à redução do número de inspetorias, a Seapdr lembra que, em maio de 2020, foi editada a Instrução Normativa nº 11, que estruturou o Serviço de Defesa Agropecuária do Estado, considerando os relatórios de autoria do Ministério da Agricultura que apontaram diretrizes técnicas e que alçou, ao final, o Rio Grande do Sul a área livre de febre aftosa sem vacinação.

Sobre os reajustes salariais, a Seapdr informa que recentemente foi anunciada pelo governo do Estado a abertura de novo processo de promoções para o quadro geral. Também foi encaminhada à Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão minuta de projeto de lei com objetivo de aumentar a Gratificação de Estímulo à Defesa e ao Fomento Agropecuário para o quadro de servidores. 

No Sul, operações flagram abate de cavalos

Fiscal agropecuário já contabilizou interdição de mais de 300 matadouros clandestinos

Somente no ano passado, cinco ações detectaram ilegalidades e encontraram carne de equinos na região de Pelotas. Foto: Seapdr /  Divulgação / CP

Agentes da Polícia Civil foram a um endereço de Pelotas à procura de drogas, em cumprimento a mandados de busca e apreensão. Ao chegar ao local, depararam-se com duas cobras exóticas e acionaram a Patrulha Ambiental da Brigada Militar. Além de apreender as cobras, os policiais militares descobriram nos fundos da casa uma câmara fria, com várias carcaças de cavalo. 

O dono, pai do homem procurado pela Polícia Civil, possuía um açougue no bairro, onde foi encontrada carne de cavalo para venda. Os equinos, sem procedência, eram armazenados em uma propriedade no interior de Capão do Leão. Além de comprar e criar animais, o criminoso abatia e vendia a carne, perfazendo todos os elos da cadeia. Os cavalos encontrados foram apreendidos, sendo que alguns deles, que haviam sido furtados, foram posteriormente entregues aos donos. 

O caso é contado pelo fiscal estadual agropecuário Valmor Lansini, que em quase 25 anos de serviço público afirma ter interditado mais de 300 estabelecimentos clandestinos na região de Pelotas. Em 2021, foram cinco operações contra o abate ilegal de cavalos. 

Três ações são adotadas de imediato: o responsável pelo abate recebe um auto de infração, o produto é apreendido e inutilizado e o local é interditado. A partir de então tem início o processo administrativo, que deverá resultar na aplicação de uma multa, com valor inicial de R$ 8 mil – que pode ser maior caso haja agravantes. 

Quanto ao abate dos animais, Lansini afirma que isso ocorre da forma mais primitiva possível. Não há insensibilização (ação que tira a consciência do animal, para que possa ser abatido sem dor) e o abate pode ser feito com marreta, machado ou arma de fogo. Não é raro que os fiscais flagrem animais sendo abatidos doentes. “O que prevalece é a barbárie”, lamenta o fiscal. 

Lansini alerta para o fato de que, em tempos de alta no preço das carnes, o valor do produto clandestino pode se tornar atrativo para muitos consumidores. Mesmo assim, segundo ele, a consciência do comprador evoluiu nos últimos anos. Apesar disso, a recomendação é desconfiar em caso de preços muito inferiores aos do mercado. 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895