Abstenções marcam eleições

Abstenções marcam eleições

A elevada ausência no pleito neste ano trouxe elementos para discussões como o impacto da pandemia no processo eleitoral, o desinteresse com as eleições e até se o voto deve permanecer obrigatório

Por
Mauren Xavier

No primeiro turno das eleições municipais, no dia 15 de novembro, 23,14% de todos os eleitores aptos a votar não compareceram às urnas no país. Nas cidades em que houve a segunda etapa, o percentual médio foi maior e chegou a 29,5%, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na prática, 11,1 milhões de pessoas nas 57 cidades com segundo turno não foram até os locais de votação. É um recorde para as eleições brasileiras. Associado a esse resultado, existe ainda um contingente de pessoas que foram às urnas, mas optaram por votar em “branco” e “nulo”. Em algumas cidades, a soma desses votos e das abstenções superou aqueles recebidos pelos eleitos, como é o caso das capitais do Rio de Janeiro e São Paulo. Na prática, é possível pensar ainda que a abstenção teria condições de mudar drasticamente os resultados conhecidos das urnas. Mas por que a ausência neste momento cresceu? Como tentar compreender o impacto das taxas de abstenção? Ou melhor, qual seria o recado que essa ausência traz à sociedade, partidos e candidatos? Nas justificativas mais claras apontadas por especialistas para o aumento nas ausências, estão o próprio cenário inédito imposto pela pandemia da Covid-19 e um percentual de desinteresse da população com a política. 

Eleição no meio da pandemia 

Boa parte do trabalho feito pela Justiça Eleitoral nas eleições municipais esteve relacionada a garantir condições de segurança para os eleitores e todos os que estavam envolvidos no pleito. Foram milhares de equipamentos de proteção individual e também novos hábitos no momento de votar, além da exclusão da biometria, para evitar filas e garantir a ausência de contato entre mesários e eleitores. Porém, por ser um fato inédito, é impossível calcular ou comparar o real impacto da pandemia na presença ou ausência dos eleitores. 

Após o segundo turno, o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, avaliou que a abstenção foi “maior que a desejável” pela Justiça Eleitoral. E citou exatamente a pandemia como um fator relevante. Segundo ele, parte do eleitorado deixou de comparecer às urnas por ter medo de contaminação pelo novo coronavírus. “É preciso ter em conta que nós realizamos eleições em meio a uma pandemia que já consumiu 170 mil vidas e que muitas pessoas, com o compreensível temor de comparecem às urnas, deixaram de votar. Muitas por estarem com a doença, muitos por estarem com sintomas e muitas por estarem com medo”, completou Barroso. 

Especialistas reconhecem que é muito difícil de dimensionar o impacto da pandemia, mas que, pela elevação na abstenção, esse pode ser um fator importante.

Analisando os dados 

“Não dá para se saber o que está na cabeça das pessoas. Mas temos sim que pensar no impacto da Covid-19. Não só o medo com a doença, mas também a questão econômica, dos eleitores que não tinham meios financeiros para o dia a dia”, ponderou o cientista político da Universidade de Brasília Adrian Albala. Ao ampliar a justificativa da pandemia, ele recorda ainda que estudos mostram que quanto mais polarizada a disputa eleitoral, a tendência é que a participação aumente, como ocorreu na eleição presidencial dos Estados Unidos, em que a participação foi elevada neste ano. “Surpreendentemente, nesta eleição a abstenção foi recorde no país e foi contra essa lógica”, avaliou, usando inclusive como exemplo adisputa em Porto Alegre que tinha concorrentes conhecidos, o que, logicamente, deveria aumentar a participação. 

Nesta mesma linha, o cientista político da Universidade Federal do Paraná Emerson Cervi completa que a pandemia é um episódio que precisa ser levado em consideração por ser o diferencial do pleito. Completou ainda que, tradicionalmente, o eleitor se abstém menos nas eleições municipais. Isso ocorre pela proximidade com os candidatos. “Ele se sente mais estimulado a participar do que na comparação com um pleito estadual e nacional, como ocorre nas eleições gerais.” 

Ao pegar os dados das duas últimas eleições gerais (para presidente da República, governadores e integrantes do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas), em 2018 e 2014, as médias de abstenção giram em torno dos 20%, enquanto que as municipais eram inferiores. Analisando as últimas quatro eleições municipais (2008, 2012, 2016 e 2020, nos primeiros e segundos turnos) é possível ver que a taxa vem em crescimento contínuo, mas que de uma eleição para a outra a avaliação foi relativamente pequena, ficando em 2%. Porém, neste ano, a diferença chegou a quase 8% se compararmos o segundo turno de 2016 e o segundo turno de 2020. 

Brasil teve 23,10% de abstenção no primeiro turno e 29,47% no segundo turno. O Rio Grande do Sul apresentou 23,67% de abstenção no primeiro turno e Porto Alegre alcançou 33,08% de abstenção no primeiro turno. Foto: Ricardo Giusti

Seguindo a lógica, Cervi traz outro elemento de discussão que é a abstenção nas grandes cidades em relação àqueles municípios menores. “Nas cidades pequenas, a abstenção é menor do que na comparação com as cidades maiores”, contextualiza Cervi. E a justificativa é a mesma das eleições gerais: fator proximidade. Partindo desse pressuposto, analisando a ausência nas dez cidades gaúchas com menor número de eleitores, segundo o TRE-RS, a média, nesta eleição, foi de 8,35%, bem inferior do que a de Porto Alegre no primeiro turno, de 33,08%. Entre as dez cidades, a que teve a menor abstenção foi Carlos Gomes, que tem 1.380 eleitores aptos e apenas 72 não compareceram, representando 5,22% do eleitorado da cidade. 

Ainda sobre os fatores, o professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS) Augusto Neftal ressaltou que é preciso ainda levar em consideração que parte do eleitorado está apta a votar, mas a opção é facultativa. Na prática, o cálculo do eleitorado leva em consideração todos os eleitores com mais de 16 anos que fizeram título de eleitor. Assim, inclui faixas em que o voto não é obrigatório, como daqueles com idade entre 16 e 17 anos e os com mais de 70 anos. 

Essa explicação se mostra em dados. No primeiro turno, no país, a taxa de abstenção foi de 23,09%, o que representou 34.161.284 eleitores ausentes. Quando olhamos apenas para a faixa etária que não é obrigada a votar (16 e 17 anos e os com mais de 70 anos) temos o seguinte dado somado: 8.323.783 eleitores ausentes, o que representa 24,3% do total da abstenção. Ou seja, mais de 75% dos ausentes não faz parte do grupo em que o voto não é obrigatório. 

Outro fator técnico e que foi provocado, mesmo que indiretamente, pela pandemia, foi o processo de mudança de domicílio e recadastramento do eleitorado. Segundo o cientista político Alberto Carlos Almeida, quando é feito o recadastramento, há uma queda considerável na abstenção, exatamente porque abrange os eleitores que mudaram de domicílio. “Grande parte da abstenção é de pessoas que se mudaram de domicílio e não conseguiram mudar o título”, avaliou. Neste aspecto pode ser incluído ainda o fato de que viagens ou deslocamentos de eleitores para ir votar em outras cidades foram prejudicadas em função da pandemia. 

Descrédito e desconfiança? 

Uma parte da abstenção pode ser compreendida também pela desconfiança e desconformidade com a política, como mostram pesquisas de satisfação com a democracia e com os partidos. “Elas (as pesquisas) mostram que os eleitores vêm confiando menos nos partidos políticos e nos eleitos. O que é um sinal. E que deve ser visto com preocupação por todos”, reforçou Augusto Neftal, da PUCRS. Uma das estratégias de reverter esse panorama é um processo de reaproximação dos partidos com os eleitores, no sentido de ampliar a confiança no sistema político e nos próprios políticos. 

Segundo Alberto Carlos Almeida, a abstenção é resultado de uma soma que envolve a pandemia e uma certa frustração com a política. “Em muitos lugares, na eleição de 2018, nacional, (Jair) Bolsonaro significava ir contra tudo o que estava ali. No Rio de Janeiro, (Wilson) Witzel, em Minas Gerais, (Romeu) Zema. Então, acontece com o Witzel (impeachment). A economia não decola com o Bolsonaro. E ele gera muito ruído”, avaliou ele sobre o momento político atual. Mesmo assim, não acredita que a abstenção signifique um sentimento coletivo de descrédito. “Tivemos disputas muito acirradas, como em Porto Alegre.” 

Adrian Albala, da UnB, completa que o descrédito não é um fenômeno novo. Ao contrário, pode ser percebido como uma tendência dos últimos 30 anos, com uma desconfiança na política e nos políticos. “Mas o que temos visto é que o interesse tem aumentado nas últimas eleições. Não parece ser esse elemento (que justifique a abstenção) neste momento. Mas nós também nunca chegamos a 100%. Há uma parte (de eleitores) que não vota, mas é relativamente pequena”, reforçou.

Uma maneira de compreender o impacto das abstenções, citou o professor Augusto Neftal, é compará-la com a de outros países democráticos. “Cerca de 30% (taxa) não é estranho em regimes democráticos”, pondera. Ao mesmo tempo, defende que a preocupação deve ser por garantir que o voto seja acessível para todos os eleitores. “A eleição tem que ser um processo seguro, legítimo e fácil. Não pode ser mais difícil para um ou para outro. Deve ser acessível de maneira igual”, avalia. 

Caminho para o voto facultativo?

Concluído o processo eleitoral, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, afirmou que os dados de ausência poderiam justificar o fim obrigatoriedade do voto. Segundo ele, o aumento nos dados deve-se à pandemia, mas as taxas seguem crescentes. “Há algum tempo já se discute a questão do voto obrigatório aqui no Brasil, quando você vê candidato eleito com menos votos que os brancos, nulos e abstenções, isso é algo a se pensar”, afirmou. 

O assunto já esteve em discussão em algumas ocasiões no Congresso Nacional, mas sem avançar efetivamente. Para especialistas, o fim da obrigatoriedade traria reflexos incertos e poderia, na prática, tornar desigual a discussão política. Emerson Cervi alertou que a obrigatoriedade diminui as desigualdades e estimula uma maior participação. Naquelas regiões mais afastadas, os rincões, seria menor a representação política e, inclusive, haveria a possibilidade de ela nem existir, porque os eleitores poderiam não participar do pleito, assim como os candidatos nem se preocuparem em conquistar esse eleitorado. Ao mesmo tempo, poderia fazer com que a campanha política ficasse mais cara, abrindo espaço para a compra de votos. “A obrigatoriedade ainda é uma necessidade”, ressaltou. 

Outro fator possibilidade seria diminuir ainda mais o interesse dos eleitores pelo processo eleitoral. "Não sei se seria desejável no caso brasileiro. Estamos falando de uma sociedade que redescobriu a democracia recentemente. A cultura cívica é baixa e as pessoas (em geral) não sabem direito o que é esquerda e direita. Se você tira essa obrigatoriedade, as pessoas vão votar muito menos. É uma bola de neve. Cresce o sentimento de distanciamento, menos voto, menos interesse, e por aí vai”, contextualizou Adrian Albala.

 

Nesta mesma lógica, o cientista político Alberto Carlos Almeida, autor de obras como “A Cabeça do Brasileiro”, acredita que a não obrigatoriedade faria com que grupos mais pobres participassem menos. “De modo geral, os mais pobres se abstêm mais e os menos pobres comparecem mais. E há uma tendência de esses grupos mais pobres votarem em candidatos mais à esquerda e vice-versa”, ponderou. Inclusive, acrescentou que a abstenção, na avaliação dele, pode justificar determinados equívocos de pesquisas eleitorais, citando o caso de Manuela D’Ávila (PCdoB), em Porto Alegre, e Marília Arraes (PT), no Recife. “Pode justificar a diferença da pesquisa em relação ao resultado final, não que isso explique o resultado das eleições”, pondera Almeida, ao ver que o resultado das eleições não foi questionado apesar das taxas de abstenção, brancos e nulos. Mesmo assim, o cientista político traz outro temor com o voto facultativo e usa o caso do Chile para exemplificar. No país vizinho, o voto deixou de ser obrigatório em 2012 e o ex-presidente Sebastián Piñera foi eleito pela segunda vez em 2017. Dois anos depois ocorreram reações contrárias, com manifestantes nas ruas e protestos à sua permanência no poder. “Até que ponto o voto obrigatório poderia ter modificado esse resultado?”, questiona. No pleito, a abstenção chegou a ser superior a 50% do total de eleitores aptos. 

Sobre o contexto atual, Augusto Neftal ressalta que a obrigatoriedade do voto não é característica determinante para reduzir a abstenção. “Há análises que indicam que o voto facultativo poderia alienar o eleitor menos ideológico”, pondera. Ao mesmo tempo, acrescenta que existe atualmente uma facilidade para justificar a ausência na eleição, inclusive podendo ser feita diretamente pelo aplicativo do e-Título, da própria Justiça Eleitoral. 

Ao avaliar a facilidade na justificativa e o valor da multa, Adrian Albala acredita que, na prática, o voto já é facultativo. “O risco maior de não votar é pagar uma multa de R$ 3,51 e, na sequência, ter uma ou outra complicação. Convenhamos que é bem fácil de justificar, inclusive com esse sistema que o TSE colocou à disposição, que pode se justificar on-line. Se formos fazer comparativos com outros países em que o voto é obrigatório, a média do valor da multa é de 100 dólares. Daí sim é obrigatório mesmo. Na prática já é facultativo, mas na mente não é.” 

Perfil do eleitor ausente 

No país, apesar de o percentual ser muito similar, a abstenção foi maior entre as mulheres em quantidade (17.730.126 mulheres) e maior entre os homens em percentual (23,36%). No Rio Grande do Sul e em Porto Alegre as mulheres estiveram mais ausentes em quantidade e percentual. No Estado foram 1.062.858 mulheres ausentes (24,03%), na Capital, 202.060 (33,94%).
Entre os brasileiros com idade em que o voto é obrigatório (dos 18 aos 69 anos), a abstenção foi maior na faixa etária entre 21 a 24 anos, com 24,24% do total deste grupo. No Rio Grande do Sul, o grupo dos que têm 20 anos foi o que mais faltou, representando 27,41%. Na Capital, a idade coincide com o país. Os eleitores entre 21 e 24 anos foram os mais ausentes, 33,15%. 

Quando analisado o grau de instrução no país, a abstenção foi maior entre os que declararam ser analfabetos (46,22%). Para esse grupo, o voto é opcional. Entre os demais, foi entre o que sabem ler e escrever (28,34%). No Estado, o mesmo panorama se repete. Entre os analfabetos chegou a 54%. Nos grupos em que o voto é obrigatório, os que sabem ler e escrever representam 39,24% dos que não votaram. Em Porto Alegre, os analfabetos atingiram 69,92% e os que sabem ler e escrever 53,25%.

Justificativa

O eleitor que não comparecer nos dias de votação precisa justificar a ausência através do aplicativo e-Título ou pelo Sistema Justifica no site do TSE. A justificativa pode ser feita em até 60 dias depois do turno ausente. Sem ela, o eleitor precisa procurar a Justiça Eleitoral e pagar multa de R$ 3,51 para cada turno que não participou. Se a multa não for paga, fica em débito e sofrerá penalidades previstas no Código Eleitoral. Se deixar de votar em três eleições consecutivas, sem apresentar justificativa ou pagar as multas, pode ter o título cancelado. 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895