O aumento da frequência e intensidade das catástrofes naturais “põe em perigo os sistemas alimentares do planeta”, advertiu na quinta-feira a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que deseja que a comunidade internacional invista mais para reduzir os riscos e tornar os sistemas agrícolas “mais resilientes”. Secas, inundações, tempestades, tsunamis, incêndios florestais, invasões de pragas, epidemias, etc., “fazem a agricultura pagar um preço alto em todos os seus setores”, ressalta, em relatório, a agência. O número anual de catástrofes triplicou em relação aos anos 1970 e 1980.
Em países de baixa e média renda, “a agricultura absorveu um quarto (mais especificamente 26%) das consequências das catástrofes entre 2008 e 2018”, declarou à AFP Dominique Burgeon, diretor responsável pela divisão de emergência e reabilitação da FAO. “Isso representou 108,5 bilhões de dólares em perdas de safras e produção de animais durante este período.” Segundo ele, essas perdas econômicas podem ter um efeito devastador na vida das pessoas, já que "mais de 2 bilhões de pessoas dependem do setor agrícola para a sua subsistência".
A edição anterior deste relatório sobre “o impacto das catástrofes e crises na agricultura e na segurança alimentar” datava de 2017 e a situação não melhorou desde então. O ano de 2020, “que encerrou uma década de desastres exacerbados, de aquecimento global, recuo das geleiras e aumento do nível do mar”, trouxe novos desafios.
A pandemia da Covid-19 desorganizou as cadeias alimentares, enquanto algumas regiões sofreram inundações recordes e grandes enxames de gafanhotos do deserto devastaram plantações e pastagens em vários países da África, da Península Arábica e do Sudeste Asiático, segundo a organização com sede em Roma.
O relatório, focado no período de 2008-2018, traz um capítulo sobre o impacto da Covid-19, detectada pela primeira vez na China no final de 2019. Devido à pandemia, “os agricultores têm acesso reduzido a insumos, mão de obra e terras agrícolas, o que leva à perda de produção, queda na renda familiar e diminuição da nutrição”, observa Burgeon, destacando que a situação é muito variável segundo as regiões do mundo.
A lagoa de Suesca, reserva de água no município de Cucunaba, na Colômbia, secou devido às secas que vêm se agravando desde 2012, de acordo com autoridades ambientais locais. Foto: Raul Arboleda / AFP / CP
Com este relatório, a FAO pretende ajudar a comunidade internacional a identificar áreas nas quais deve investir para reduzir o risco de desastres e fortalecer a “resiliência” dos sistemas agrícolas. A comunidade internacional deve investir mais e, principalmente, na prevenção dos riscos, considera Burgeon. Vários tipos de ações podem ser tomadas, como a criação de sistemas de alerta precoce ou o estabelecimento de seguro contra desastres, cita o diretor.
Entre 2004 e 2016, apenas 3% da assistência oficial para países em desenvolvimento e países em transição foi gasto em medidas relacionadas à agricultura com foco na redução do risco de desastres.
A ONU está preparando uma Cúpula de Sistemas Alimentares a ser realizada em setembro, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque, como parte da década de ação para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030. Uma reunião pré-cúpula será realizada de 19 a 21 de julho, em Roma, anunciaram na quarta-feira a ONU e o governo italiano. O encontro deverá ser presencial para alguns dos participantes e virtual para os demais.
Risco de "milhões" de mortes pela morte
O alerta sobre os problemas com a produção de distribuição de alimentos também ocorreu em outras ocasiões. O secretário-geral da ONU, António Guterres, advertiu o Conselho de Segurança, no dia 11, que, sem uma ação imediata, “milhões de pessoas” estarão em risco de sofrer “fome extrema e morte” no mundo. “Os impactos climáticos e a pandemia da Covid-19 alimentam” o risco, afirmou Guterres, durante uma reunião do Conselho sobre o vínculo entre fome e segurança organizada pelos Estados Unidos, acrescentando que, em cerca de 30 países, “mais de 30 milhões de pessoas estão a um passo de serem declaradas em situação de fome”. “Tenho uma mensagem simples: se você não alimenta as pessoas, alimenta o conflito.”
De acordo com ele, fome e inanição não são mais por falta de comida. “Agora são em grande parte causadas pelo homem e eu uso o termo deliberadamente", disse Guterres. “Não há lugar para fome e inanição no século 21.”
Depois de contar que testemunhou a morte por fome de uma menina de 2 anos em Uganda, em 1993, a embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Linda Thomas-Greenfield, também enfatizou que “não há razão para não fornecer recursos para aqueles que necessitam deles urgentemente”. “No mundo de hoje, a fome é causada pelo homem. E se nós a causamos, isso significa que temos que pará-la também”, acrescentou. A diretora internacional da Oxfam, Gabriela Bucher, enfatizou que “aqueles que sofrem com a fome pouco se importam se sua condição é o resultado de uma ação deliberada, da negligência insensível das partes no conflito ou da comunidade internacional”.
Crimes relacionados à fome
No final de 2020, mais de 88 milhões de pessoas sofriam de fome aguda devido a conflitos e instabilidade, um aumento de 20% em um ano, disse ele, apontando para tendência de piora em 2021. As áreas de alto risco são o Sahel, o Chifre da África, o Sudão do Sul, o Iêmen e o Afeganistão. Guterres anunciou que lançará uma força-tarefa “para evitar a catástrofe” depois que o Programa Mundial de Alimentos e a FAO solicitaram mobilização emergencial de 5,5 bilhões de dólares.
Gabriela Bucher destacou, no entanto, que a responsabilidade dos estados não termina na doação de dinheiro. Ela denunciou “uma comunidade internacional cujos estados mais poderosos muitas vezes causam fome com um abundante suprimento de armas” em vários países. Citando exemplos concretos como na Etiópia, no Iêmen e na República Centro-Africana, ela pediu ao Conselho de Segurança da ONU “compromisso claro de ação”, que “garanta o acesso à ajuda humanitária” em todos os lugares, exigindo “responsabilidades significativas” para aqueles que cometerem “crimes relacionados à fome”.
Por sua vez, Linda Thomas-Greenfield pediu ao chefe da ONU dois relatórios anuais sobre a fome, de forma a evitá-la de maneira mais eficiente. Guterres anunciou a criação de um “grupo de trabalho de alto nível para a prevenção da fome” na sede da ONU em Nova Iorque, para o qual contribuirão representantes do Programa Mundial de Alimentos (PMA) e da FAO.
Desperdício
Voluntários separam alimentos para distribuir a estudantes em situação de vulnerabilidade em Paris, na França. Foto: Stephane de Sakutin / AFP / CP
Quase 1 bilhão de toneladas de alimentos é desperdiçado a cada ano no mundo, quase 20% dos alimentos à disposição dos habitantes do globo, segundo a ONU. E esse é outro problema que atinge os sistemas alimentares do mundo. “O problema é enorme. É custoso do ponto de vista ambiental, social e econômico”, declarou à agência AFP Richard Swannel, diretor de desenvolvimento da ONG britânica Wrap, coautor do relatório sobre o índice de desperdício de alimentos, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
De acordo com os autores, “o relatório apresenta a coleta, análise e modelagem mais abrangente de dados de resíduos alimentares até hoje”. Os dados (para o ano de 2019) foram coletados de 54 países, desenvolvidos e de baixa renda, sobre varejo, restaurantes e residências. Resultado das compilações, então modeladas em escala global: 931 milhões de toneladas de alimentos jogados fora por ano (o relatório leva em conta apenas as partes comestíveis e não ossos e cascas, por exemplo).
Ao contrário da crença popular, esses dados mostram que o fenômeno atinge todos os países, independente de seus níveis de renda, ainda que, segundo a ONU, cerca de 700 milhões de pessoas no mundo passem fome e que 3 bilhões não tenham acesso a alimentos saudáveis, para uma população mundial estimada em 7,8 bilhões.
“Até o momento presente, o desperdício de alimentos tem sido visto como um problema para os países ricos”, comentou a coautora do Pnuma Clementine O'Connor. “Mas nosso relatório mostra que em todos os países que o mediram, o lixo doméstico é um problema.” Para 121 quilos de alimentos desperdiçados a cada ano por habitante da Terra, 74 quilos, bem mais da metade, são desperdiçados no nível doméstico. Em termos de percentual do total disponível aos consumidores, 11% são jogados fora em domicílio, 5% nos restaurantes e 2% no varejo.
A FAO, por sua vez, elabora um relatório sobre as “perdas” alimentares medidas ao nível da produção e distribuição agrícola. De acordo com esses números, cerca de 14% dos alimentos produzidos no mundo são perdidos antes mesmo de chegarem ao mercado, totalizando cerca de 400 bilhões de dólares por ano, aproximadamente o PIB da Áustria. “Se o desperdício e a perda de alimentos fossem um país, seria o terceiro maior emissor de gases de efeito estufa do mundo”, observa Richard Swannel. “Temos que consertar o sistema alimentar se quisermos enfrentar a mudança climática e uma das prioridades é lidar com o lixo.”
Os autores do estudo destacam que os alimentos não devem, sobretudo, acabar em aterros, onde seu processo de decomposição emite metano, um poderoso gás de efeito estufa. Um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU prevê a redução pela metade do desperdício de alimentos dos consumidores e no varejo até 2030. As Nações Unidas também devem organizar uma primeira cúpula sobre sistemas alimentares, voltada para modos de produção e consumo mais saudáveis, sustentáveis e equitativos.