Anos de avanços

Anos de avanços

Em meio à pandemia da Covid-19, cooperativismo usou suas características para manter a produção, acelerou a adoção da tecnologia nas relações com seus associados e o mercado e acredita que fechará 2020 sem impactos nos seus ingressos

Aferição de temperatura faz parte da rotina da Dália Alimentos

Por
Cíntia Marchi

O cooperativismo tem em seu DNA a característica de perdurar durante as crises. Esta resiliência precisou aflorar com força e rapidez em 2020, ano impactado por uma estiagem severa no Rio Grande do Sul, que encolheu a safra de grãos, e pelo surgimento de uma doença, a Covid-19, que mexeu com o mundo todo. Ao encarar estes tempos de incerteza, as cooperativas agropecuárias gaúchas conseguiram não só ajudar a manter o abastecimento de alimentos nos mercados doméstico e internacional como também foram capazes de inovar e se reinventar.

No momento em que a pandemia do coronavírus cobrou distanciamento social, as cooperativas apelaram para a proximidade tecnológica. Muitas intensificaram o uso de recursos digitais para se comunicar com os associados e prestar assistência técnica aos produtores rurais. Também migraram tradicionais eventos de capacitação presenciais para plataformas virtuais, acelerando a implantação de algumas tendências que levariam tempo para se concretizar. Algumas criaram regras rigorosas para proteger os funcionários das plantas agroindustriais (foto acima) e nisso foram além dos protocolos exigidos pelas autoridades sanitárias. Também tocaram obras, seguiram abrindo mercados para escoamento da produção e fazendo a economia regional e estadual girar. “A pandemia é muito ruim, mas houve um grande aprendizado neste período”, avalia o presidente executivo da Dália Alimentos, Carlos Alberto de Figueiredo Freitas.

Mesmo diante das dificuldades, a previsão, segundo a Federação das Cooperativas Agropecuárias do Estado (Fecoagro), é que as organizações fechem o ano com faturamento semelhante ao de 2019. O presidente da entidade, Paulo Pires, diz que, embora tenha sido um ano ruim para as lavouras, especialmente as de soja e de milho, a existência de estoques do ciclo anterior, os preços dos grãos, carnes e leite em níveis históricos, câmbio valorizado e novos hábitos de consumo da população brasileira poderão sustentar os ingressos das cooperativas em 2020, situação muito diferente de empresas de diversos outros segmentos econômicos que sequer conseguiram se manter abertas. Dados da Junta Comercial, Industrial e Serviços do Rio Grande do Sul (JucisRS) apontam que 30,5 mil negócios fecharam no Estado, entre março e agosto deste ano.

Segundo o professor de pós-graduação em Cooperativismo na Univates e na Faculdade de Tecnologia do Cooperativismo (Escoop), Sandro Luís Kirst, parte do resultado alcançado pelas cooperativas agropecuárias se dá em virtude de uma variável, a questão mercadológica. “Em momento algum foi dificultada a continuidade deste setor durante a pandemia porque o agro precisava continuar produzindo alimentos”, comenta. Em função disso, Kirst acredita que é possível projetar para 2020 a manutenção de um crescimento natural das organizações, mesmo que elas não tenham passado incólumes pela pandemia e tenham necessitado fazer investimentos que não estavam programados para se adequarem ao período. “Isto mostra a solidez do segmento e a força da gestão cooperativada, que tem passado por um processo muito forte de profissionalização”, avalia o professor.

Para o presidente do Sistema Ocergs-Sescoop/RS, Vergílio Perius, o êxito das cooperativas em atravessar momentos de crise ocorre porque são entidades de pessoas com longa vivência, diferente de outros tipos de sociedades que visam ao lucro. “Creio que está aí o segredo da questão”, pontua. “É uma sociedade de pessoas que se aproxima e não se distancia, se comunica e dá resposta rápida”, acrescenta. Perius diz que viu, ao longo dos últimos meses, muita convergência em torno de objetivos comuns, com as famílias se recolhendo em suas propriedades para produzir alimentos e as cooperativas se adaptando para dar conta de um consumo crescente por parte da população. “Foi uma forma de reação muito importante”, classifica.

Pertencimento

Esta mobilização, no entender de Kirst, ocorre com mais facilidade dentro de um sistema cooperativista por conta de fatores como o sentimento de pertencimento dos associados, forte identidade regional e diversos canais de comunicação estabelecidos entre as organizações e os cooperados, seja por meio das redes de lojas que as cooperativas costumam ter (supermercados, postos de combustíveis, farmácias, comércio de insumos), seja por meio das assembleias e até mesmo pelos técnicos e motoristas de caminhão que frequentam a propriedade agrícola. “Existem vários canais para criação de vínculos”, complementa.

Para a professora da especialização em Cooperativismo da Unisinos, Camila Luconi Viana, os desafios impostos pela pandemia ajudam a rememorar a história do cooperativismo. Ela lembra que as primeiras cooperativas surgiram na Inglaterra, em 1844, criadas por tecelões que precisaram se organizar para ter alimentos. Avançando 176 anos, Camila afirma que a característica de persistir e inovar de forma colaborativa em momentos difíceis segue presente. “Tem dado certo porque estas organizações pertencem a quem planta, a quem ordenha o leite, a quem produz”, avalia.

 

Prevenção de ponta a ponta

Produtores de leite, transportadores e funcionários da CCGL tiveram de ampliar os cuidados com o coronavírus e até suspender alguns hábitos como os contatos pessoais e a parada para o chimarrão. A proteção em todas as etapas, da coleta à industrialização, garantiu a manutenção das operações sem qualquer momento de ruptura

Indústria recebe leite coletado em 276 rotas pelos transportadoresIndústria recebe leite coletado em 276 rotas pelos transportadores. | Foto: Comunicação da CCGL

O leite que chega todo dia ao parque industrial da Cooperativa Central Gaúcha (CCGL), em Cruz Alta, é fornecido por 4,5 mil produtores gaúchos. A ponte entre as propriedades rurais e a indústria é feita pelos transportadores, que todos os dias percorrem milhares de quilômetros chegando de casa em casa para garantir a captação da matéria-prima. Diante desta logística grandiosa, a CCGL sabia que era preciso focar um dos trabalhos de prevenção contra o coronavírus nos motoristas. Foi aí que reuniu, no início da pandemia, os transportadores responsáveis por manter ativas 276 rotas de coletas para uma ação de conscientização.

Era preciso resguardar a saúde deste profissional, bem como a dos produtores e a dos 750 funcionários da fábrica, para não comprometer nenhum dos elos da cadeia. A cooperativa agiu rápido. Mobilizou seus médicos e deu início à divulgação de informações. O presidente da CCGL, Caio Vianna, conta que, com os transportadores, foram feitas palestras para explicar como ocorre a transmissão da doença, o que é o coronavírus, quais são os equipamentos de proteção individual necessários e cobrar a obrigatoriedade de manter a distância entre as pessoas. “Se proibiu os motoristas de circularem pelas propriedades e também de ter contato com os funcionários da fábrica”, lembra.

Bruno Walbrink, que há 40 anos trabalha com a coleta de leite, foi um dos prestadores de serviço que participou desta preparação para se manter longe do vírus. Ele possui sete caminhões que transitam de segunda a segunda, por 340 propriedades de Ibirubá, Saldanha Marinho, Fortaleza dos Valos e Cruz Alta.

“No início, ficamos muito preocupados e havia o receio de que tudo fosse parar”, lembra Walbrink. O transportador conta que, durante o dia, os motoristas passaram a estacionar o caminhão na propriedade somente com o objetivo de carregar a matéria-prima, sem bate-papo, e que, durante a noite, o contato com os produtores, que já era incomum, ficou ainda mais restrito. Diz ainda que alguns dos cuidados já eram rotina visando a qualidade do leite, como o uso do álcool para higienizar os equipamentos na chegada em cada tambo.

A maior parte das novidades, segundo Walbrink, se deu na fábrica, onde passou a fazer parte do cotidiano a medição da temperatura de todos que acessam o local, aumentou o afastamento entre as pessoas e houve o fechamento da sala de chimarrão. “Tinha uma sala onde os motoristas se encontravam para conversar e esta aglomeração acabou”, recorda.

Além dos cuidados tomados para que a logística da coleta do leite não fosse interrompida, Vianna acrescenta que foram impressos folhetos orientativos para distribuição; afastadas do laticínio as pessoas com sintomas; suspensas obras na unidade para evitar o trânsito de terceiros; e adotadas novas medidas para transportar os funcionários no ônibus. Dentro da indústria foi implantado distanciamento em todos os ambientes e adotado uso de máscaras. Já as reuniões entre os executivos e setor administrativo da CCGL passaram para o modo virtual. “Os protocolos foram seguidos à risca”, afirma o presidente da cooperativa.

Os mesmos cuidados foram adotados nos terminais Termasa e Tergrasa, unidades de logística da CCGL no Porto de Rio Grande, onde atuam mais de 600 funcionários especializados e com experiência em operar os equipamentos. “São pessoas que teríamos dificuldade de substituir caso ficassem doentes”, ressalta Vianna. “Tivemos lá cuidados rigorosos porque se tivesse um surto no porto interromperíamos o carregamento dos grãos.”

Além de assegurar que a pandemia não trouxesse prejuízos às pessoas envolvidas diretamente com a CCGL, Vianna diz que a cooperativa preocupou-se em manter o fornecimento de alimentos para a população. “O setor da alimentação não pode parar”, reitera. Vianna acrescenta ainda que a CCGL precisou respeitar o calendário da natureza. “Tem o tempo do plantio, tem a hora de ordenhar o leite e não pode simplesmente haver uma ruptura nisso”, ressalta. Com base nisso, o presidente diz que a cooperativa precisou priorizar todos os ajustes necessários para manter tudo funcionando. “Seis meses depois, podemos dizer que houve comprometimento dos trabalhadores e a gente conseguiu conviver bem”, avalia. “A pandemia nos ensinou muita coisa e, como resultado, apesar das limitações, não tivemos nenhuma perda ou ruptura nas nossas atividades do agro.”

 

Dália manteve ritmo de produção

Controle rigoroso evitou qualquer surto entre os 2,5 mil funcionários. | Foto: Carina Marques

Dois dias depois de a Organização Mundial da Saúde ter declarado que o mundo estava vivendo uma pandemia, a Dália Alimentos criou grupos para agir no combate à doença, em 13 de março. Acostumada a obedecer protocolos sanitários rigorosos com o intuito de vender seus produtos no Brasil e fora dele, a cooperativa decidiu ir além do que já conhecia e criar estratégias próprias de atuação. “Estávamos preparados para aquilo que era o normal do mundo em termos de gestão e de controles, mas a Covid-19, que era um fato novo, nos obrigou a agir rápido e de forma eficiente”, lembra o presidente executivo da Dália Alimentos, Carlos Alberto de Figueiredo Freitas.

Foi criado então o Grupo Estratégico Covid-19, que se responsabilizou pela busca de informações sobre a doença e pela criação de regras para serem implantadas nas propriedades rurais, nas indústrias e nos escritórios da cooperativa. Já o Grupo Operacional Covid-19, formado por cerca de 80 pessoas entre gerentes, supervisores, encarregados e auxiliares, teve a incumbência de monitorar, entre 2,5 mil funcionários, o cumprimento de exigências como o uso de máscaras e de álcool gel, controle de temperatura e distanciamento social. As ações adotadas resultaram de um investimento de cerca de R$ 3 milhões.

Grupos tiveram de ser criados para que a comunicação fosse efetiva e chegasse a todos os funcionários. | Foto: Carina Marques

O presidente executivo se envolveu diretamente neste trabalho. Ele conta que havia dois grandes objetivos iniciais dos grupos: impedir que o coronavírus ingressasse nos ambientes da cooperativa e, caso a doença batesse à porta, minimizar a disseminação. Freitas admite que a meta de ficar sem qualquer ocorrência se tornou inviável. “Tivemos o primeiro caso 30 dias depois de a pandemia ter sido decretada.” Já o segundo objetivo foi alcançado. As normas adotadas contribuíram para que nenhum surto de Covid-19 ocorresse, a produção nas propriedades rurais seguisse sem transtornos, o calendário de abates dos animais fosse mantido e as atividades industriais envolvendo o processamento de leite e os frigoríficos de carne suína e de aves não sofressem contratempos. Em plena pandemia, a Dália também obteve habilitação para abate Halal e exportação de frango a países muçulmanos.

Um dos desafios deste período, segundo Freitas, foi estabelecer a comunicação com cerca de 4 mil famílias associadas. A cooperativa usou telefone, um aplicativo e até mesmo os transportadores de leite para transmitir recados quando ocorriam falhas no sinal de Internet e telefonia celular dos produtores. Segundo o presidente executivo, a Dália identificou que 5% dos associados não têm nenhum acesso à Internet e 15% têm acesso, mas precário. “O Estado precisa resolver este problema de Internet e telefonia celular”, reivindica. “Até porque, daqui para frente, a comunicação digital será cada vez mais fundamental”, pontua.

Além da preservação da saúde dos funcionários e da manutenção das operações a pleno da cooperativa, Freitas entende que um dos pontos positivos desta fase foi o fato de a Dália Alimentos ter estabelecido um contato permanente com diversas autoridades de saúde, prefeitos, Ministério da Agricultura, Ministério Público do Trabalho, sindicatos dos trabalhadores, Assembleia Legislativa, Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) e outras entidades para troca de experiências e para tornar mais robustos os protocolos. “Eles aprenderam com o nosso modelo, mas também aprendemos muito com eles”, destaca. “Para mim, uma das coisas boas que fica deste período é ter visto várias instituições tentando se ajudar e realmente querendo superar esta doença, com o mínimo de perda possível.”

Freitas diz ainda que outro ensinamento que fica deste momento delicado para o mundo é a necessidade de adoção de estratégias para enfrentar um inimigo como o coronavírus. “Tínhamos planos de contingência para várias coisas, mas ninguém imaginava para uma pandemia”, comenta. “Fica para o futuro todo este aprendizado que poderá servir para combater outras doenças que eventualmente vierem a surgir”, complementa.

 

Cotripal acelerou uso da tecnologia para ficar próxima do associado

“Evoluímos cinco anos em um”, afirma Sartori. | Foto: Mileni Denardin Portella

“Evoluímos cinco anos em um, em termos de tecnologia.” A afirmação é usada em tom de brincadeira pelo vice-presidente do Conselho de Administração da Cotripal Agropecuária Cooperativa, Tiago Sartori. Mas a frase bem que pode ser levada a sério. Por força da pandemia, Sartori conta que a organização adiantou a utilização de recursos digitais para agilizar atendimentos e se aproximar dos associados e clientes do varejo, uma tendência que provavelmente seria incorporada na rotina da cooperativa só com o passar dos anos. “Acabamos ganhando este tempo”, afirma.

Como se constatou que o distanciamento social iria persistir por meses e não se podia deixar em segundo plano a capacitação dos associados para os cultivos agrícolas, a cooperativa decidiu migrar eventos tradicionais para o ambiente virtual. Em vez de se deslocarem até as dependências da cooperativa, com sede em Panambi, os associados puderam se abastecer de informações pelo computador ou celular. Em julho, ocorreu a primeira reunião técnica on-line. De lá para cá, houve outras cinco. “O link fica disponível no site da cooperativa e pode ser acessado pelo produtor quando ele quiser”, explica Sartori.

Estas inovações foram possíveis, segundo o vice-presidente, porque a Cotripal identificou que 80% dos 4,3 mil cooperados usam redes sociais, especialmente o WhatsApp. E foi por meio desta ferramenta que a cooperativa também passou a oferecer assistência técnica aos produtores. “O atendimento ficou muito mais rápido”, constata Sartori. O produtor manda uma foto ou vídeo da lavoura, o técnico avalia e repassa imediatamente alguma recomendação. Se for o caso, se desloca para ver o problema in loco. Segundo o gerente do Departamento Técnico Agronômico da Cotripal, Denio Oerlecke, desde o início se decidiu que, nesses casos, o técnico iria direto para a lavoura verificar a ocorrência e não passaria mais na casa da família, como era de costume, para evitar aproximações físicas.

Nos supermercados e farmácias da cooperativa, o WhatsApp também se tornou uma ferramenta importante para as vendas. Sartori conta ainda que foi criado um aplicativo para facilitar as compras no supermercado do centro de Panambi, o qual inspirará a criação da loja virtual da cooperativa, que deve ser lançada ainda neste ano. “Já tínhamos ideia de fazer o e-commerce e acabamos acelerando este projeto para colocar logo em prática”, revela.

Em 21 de setembro, dia em que completou 63 anos, a Cotripal também lançou a sacola plástica com tecnologia d2p, capaz de eliminar 99,8% dos vírus, inclusive o coronavírus, e 99,99% das bactérias e fungos nos plásticos. Este item passou a ser usado em todo o varejo da cooperativa.

As novidades engrenaram depois de a pandemia ter desafiado a cooperativa lá no início, recorda o vice-presidente. Como a imposição do distanciamento social coincidiu com a colheita de grãos, Sartori conta que foi preciso agir rápido para dar conta do recebimento da safra sem colocar ninguém em risco. “Foi uma corrida contra o tempo”, lembra. “Tivemos que nos reinventar e fazer as coisas terem andamento porque atuamos em atividades essenciais”, complementa.

A partir das decisões tomadas, o vice-presidente afirma que a cooperativa afastou apenas colaboradores pertencentes aos grupos de risco e pôde seguir trabalhando sem redução de turnos, sem demitir ninguém e mantendo todas as suas atividades em pleno funcionamento.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895