Após 8 anos, o julgamento da Kiss

Após 8 anos, o julgamento da Kiss

Começa no dia 1° de dezembro, em Porto Alegre, o julgamento dos quatro réus do caso do incêndio da Boate Kiss, que ocorreu em 27 de janeiro de 2013 e provocou a morte de 242 pessoas

Por
André Malinoski

O julgamento dos quatro réus acusados pela tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, começa dia 1° de dezembro, no plenário do 2º andar do Foro Central I, em Porto Alegre. Os sócios da casa noturna, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor musical Luciano Bonilha Leão responderão por homicídio simples (242 vezes consumado, pelo número de mortos, e 636 vezes tentado, número de feridos). Seis processos judiciais apuram as responsabilidades, e o principal deles, que tramitou na 1ª Vara Criminal da Comarca, foi dividido e originou outros dois – falso testemunho e fraude processual. Houve a concessão do desaforamento, que se trata da transferência de julgamento para outra comarca, a três dos réus acusados – Elissandro, Mauro e Marcelo – para serem julgados em uma Vara do Júri da Comarca da Capital. Luciano foi o único que não manifestou desejo nessa troca. Entretanto, por meio de um Pedido de Desaforamento do Ministério Público, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ/RS) determinou que o produtor musical se juntasse aos demais, para participar de um julgamento único, na capital gaúcha. Após passar a tramitar em Porto Alegre, o processo ganhou o número 001/2.20.0047171-0. O processo possuía 91 volumes e mais de 19,1 mil páginas até o último dia 23.

A tragédia daquele 27 de janeiro de 2013, que comoveu o Rio Grande do Sul e o Brasil, foi manchete nos principais jornais e sites de notícias do mundo. As cenas de desespero de quem escapou com vida da casa noturna e de pessoas tentando do lado exterior derrubar paredes a marretadas, para que houvesse um caminho alternativo para a fuga dos encurralados, invadiram os principais canais de noticiários. A triste madrugada começa agora a ser relembrada em julgamento. Um intenso aparato de segurança, com transporte, incomunicabilidade e isolamento de testemunhas e jurados, será colocado em prática. Tudo para que a Justiça seja feita e possa atenuar um pouco da dor de quem sobreviveu e dos parentes das vítimas. “O Poder Judiciário do Rio Grande do Sul vem se preparando há algum tempo para o júri do caso Kiss, do ponto de vista da organização de infraestrutura e logística. Esse julgamento representa a capacidade que temos de responder à sociedade de forma qualificada e eficaz, mesmo em um caso tão complexo como este e que demandou uma enormidade de incidentes recursais”, relatou o presidente do Conselho de Comunicação Social do TJ/RS, Antonio Vinicius Amaro da Silveira. “Por se tratar de algo muito grande e visado, será fundamental demonstrarmos a capacidade de propiciar o transcurso do julgamento dentro da maior normalidade possível”, completou o desembargador.

Incêndio

A madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, há mais de oito anos, dilacerou dezenas de famílias. A Boate Kiss pegou fogo durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que acendeu um sinalizador pirotécnico no palco em torno das 2h30min. Faíscas atingiram o teto, forrado de espuma e isopor. As chamas rapidamente se alastraram no teto em função do material inflamável usado como isolamento acústico, o que produziu uma fumaça preta e tóxica. Na época, testemunhas relataram que alguns extintores não funcionaram quando os seguranças do local tentaram apagar as chamas. A boate, que comportava cerca de 750 pessoas, estava superlotada. Segundo investigadores, estavam no local aproximadamente 1,3 mil visitantes. O Corpo de Bombeiros estimou o número de frequentadores em torno de 1,5 mil. A casa noturna possuía apenas um acesso, usado tanto para entrada quanto para saída de pessoas, com porta de tamanho reduzido. Não havia saídas de emergência para o público. A perícia constatou a falta de itens de segurança, como chuveiros automáticos de teto para o caso de incêndio e de mais luzes de emergência indicativas do local de saída. O público acabou se dirigindo para os banheiros, onde a maioria das vítimas foi encontrada. A perícia concluiu que 100% das mortes foram causadas por asfixia. Os aparelhos condicionadores de ar e de exaustão contribuíram para tantas mortes, ao propagarem a fumaça tóxica em vez de fazerem sua dispersão. A Kiss estava aberta mesmo com o alvará fornecido pelo Corpo de Bombeiros vencido desde 10 de agosto de 2012. Também houve relatos de quem estava na festa e escapou de que os seguranças barravam pessoas que queriam sair sem pagar a comanda. Os feridos com gravidade foram direcionados para hospitais de Santa Maria e da região metropolitana de Porto Alegre, além da própria Capital, para onde foram levados com apoio de helicópteros da Força Aérea Brasileira.

O velório coletivo das vítimas aconteceu em um dos ginásios do Centro Desportivo Municipal de Santa Maria. Um total de 235 pessoas morreu no dia da tragédia, e outras sete faleceram posteriormente. Para assegurar os direitos e interesses dos familiares, além de garantir auxílio e amparo aos sobreviventes, foi criada a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) no dia 23 de fevereiro de 2013.

MP/RS quer prisão e condenação dos quatro réus

Os promotores do julgamento dos quatro acusados pela tragédia na Boate Kiss afirmaram durante entrevista coletiva à imprensa na sede do MP/RS, no dia 17, que pedirão a prisão e a condenação dos quatro réus. “Estamos falando de um processo que se arrasta no tempo e esperamos que o julgamento termine com o resultado que a sociedade espera: a condenação. O MP vai pedir a prisão dos quatro e sustentar a condenação”, salientou a promotora Lúcia Helena Callegari. “Estão no banco dos réus quatro pessoas que cometeram crimes”, completou. O colega de acusação, o promotor David Medina da Silva, segue a mesma linha. “Aqui começa a prestação de contas que precisamos fazer à sociedade gaúcha e ao mundo. A responsabilidade criminal é o que se faz com certeza, não com especulação”, observou. “O MP tem certeza neste processo de se tratar de homicídio doloso, o que sustentamos desde o início”, lembrou. Os promotores de Justiça mencionaram que estão atentos a manobras da defesa para atrasar ou interromper o julgamento e garantiram que não permitirão tais ações.

Sala em que os jurados se reunirão privadamente e onde decidirão de maneira individual, depositando o voto em uma urna. Foto: Ricardo Giusti

Reprodução digital será utilizada pela acusação

Uma recriação virtual de como era a Boate Kiss será utilizada pelos promotores de Justiça durante o julgamento. A antropóloga argentina Virginia Vecchioli, que é professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e responsável pela recriação digital da casa noturna, compartilhou com os jornalistas detalhes desse trabalho. “Constatamos, por exemplo, que muitos extintores de incêndio não estavam no lugar em que deveriam estar naquele labirinto que era a Boate Kiss”, apontou. O projeto é semelhante à reconstituição disponibilizada de um campo de detenção do período da ditadura argentina. O “El Campito” serviu como evidência este ano no megaprocesso Campo de Mayo, realizado no Tribunal Oral Criminal Federal nº 1, na Argentina. Percebe-se, a partir da animação, como havia barreiras impeditivas para uma fuga em caso de emergência, como sofás, degraus e divisórias de metal na parte interna da casa noturna. “O interior da boate, ou seja, o espaço do crime pode ingressar na sala de audiências. As testemunhas podem acompanhar a sua fala fazendo o próprio percurso, desde o ingresso até a saída da Kiss, por esse formato interativo”, detalhou a docente. Conforme a antropóloga, esse tipo de recurso digital tem sido utilizado em tribunais penais internacionais.

Advogados sustentam inocência dos acusados

Os advogados responsáveis pelas defesas dos réus tecem comentários e expectativas acerca do julgamento. “Estamos prontos para esse julgamento desde 16 de março de 2020, quando ocorreria o júri e o MP recorreu, pedindo o desaforamento para Porto Alegre. Agora é entrar em plenário com tranquilidade e demonstrar a total inocência do Luciano, que é inocente. O Luciano não tem nada a ver com isso. Ele é uma vítima da Boate Kiss também. O Luciano salvou pessoas no local e poderia ter morrido lá dentro. Então estamos preparados para o julgamento. Que venha logo o plenário”, salientou Jean de Menezes Severo, um dos advogados responsáveis pela defesa de Luciano Augusto Bonilha Leão, produtor musical da banda Gurizada Fandangueira.

O advogado Jader Marques, que defende Elissandro Callegaro Spohr, sócio da Kiss, também comentou o tema. “No dia 1° de dezembro, meu cliente, mais uma vez, estará à disposição da Justiça e da sociedade para falar sobre a sua responsabilidade, como é feito há quase nove anos. Lamentavelmente, faltarão 24 pessoas sentadas ao lado do Elissandro”, observou. “Agentes públicos foram apontados no inquérito da Polícia Civil como pessoas diretamente envolvidas no incêndio. A sociedade está prestes a assistir um dos capítulos mais tristes da Justiça brasileira, orquestrado por quem deveria zelar por ela. Como advogado e cidadão, vou falar aquilo que muitos não querem ouvir, mas que precisa ser dito”, ponderou o advogado.

A advogada Tatiana Vizzotto Borsa cuida da defesa de Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira. “Queremos Justiça e não vingança. Ou seja, um julgamento justo, leal e sem artimanhas do MP. Pois ele sim, e os demais órgãos públicos, são os responsáveis por essa tragédia”, criticou ela. Os advogados Mário Cipriani e Bruno Seligman de Menezes, que defendem o sócio da boate Mauro Hoffmann, também se posicionaram. “Ao longo desses nove anos, analisamos o processo minuciosamente e estamos convictos de que não há provas da participação de nosso cliente nesse evento trágico”, afirmaram. “Trabalhamos com seriedade, profissionalismo e profunda crença na Justiça. Por isso, esperamos que todo o trabalho técnico que desenvolvemos ao longo desse tempo seja reconhecido pelo Conselho de Sentença, depois de um debate fundado pelos princípios do Direito”, acrescentaram.

No último dia 12, o ex-prefeito de Santa Maria Cezar Schirmer, atualmente secretário Municipal de Planejamento e Assuntos Estratégicos da Prefeitura de Porto Alegre, e o promotor de Justiça Ricardo Lozza foram arrolados como testemunhas no júri do caso Kiss. O juiz Orlando Faccini Neto, que presidirá o julgamento, concedeu o pedido feito pela defesa do réu Elissandro Callegaro Spohr para substituir duas testemunhas pelos novos indicados. O magistrado levou em consideração que a troca de testemunhas não encontra regra específica na legislação processual penal de hoje em dia (depois de mudança do artigo 397 do Código de Processo Penal, que indicava razão para a substituição de testemunhas), existindo dúvida se é preciso ou não um motivo para alteração de depoentes. “Independente disso, e sabido seja que na jurisprudência há dúvida acerca do tema, na espécie, em homenagem à ampla defesa, afastando-se os argumentos elencados pelo Ministério Público, defiro o pedido de substituição das testemunhas apontadas”, salientou Faccini ao site do TJ/RS na ocasião. Schirmer e Lozza confirmaram que irão depor no júri. “Assim como todos, também quero justiça. Estarei à disposição do Poder Judiciário como sempre estive ao longo de minha vida”, respondeu Schirmer por meio de sua assessoria.

O juiz também permitiu, no último dia 18, a presença de mais um profissional para cada bancada de defesa e da Assistência de Acusação no plenário durante o julgamento. O magistrado ainda autorizou a presença de um técnico do MP no local para auxílio aos promotores de Justiça. A decisão observa as novas regras alusivas à pandemia de Covid-19 divulgadas recentemente pelo governo estadual.

"Todo problema que for passível de resolução para que o júri comece e termine, eu buscarei resolver com todas as minhas forças", afirmou o juiz Orlando Faccini Neto, que presidirá o júri. Foto: Ricardo Giusti

Familiares querem os responsáveis condenados

Os familiares das vítimas da Kiss esperam que o julgamento represente alívio para o sofrimento. Foram anos de angústias e incertezas em relação à responsabilização dos culpados. “Finalmente, depois de quase nove anos de muita espera, decepções e tentativas de adiamento, o julgamento vai acontecer”, diz o profissional da área de tecnologia da informação Paulo Carvalho, 71 anos, que perdeu o filho Rafael no incêndio. Paulista, Rafael, que havia completado 32 anos no dia 25 de janeiro de 2013, estava em Santa Maria visitando amigos e decidiu ir à casa noturna. “Não sei se a gente acostuma com a dor, mas há momentos que é como se estivéssemos naquela noite outra vez. Essa dor não tem como ser superada. Esses anos de espera conseguiram aumentar nossa dor”, reflete o pai. E a situação é muito parecida para outras famílias. “É o ponto final, isso precisa acabar. Estamos muito cansados e a situação se prolongou demais. Queremos viver um pouco”, desabafou a agropecuarista Jacqueline Malezan, 57 anos, de Santa Maria. Ela perdeu o filho Augusto, de 18 anos, que tinha encerrado o ensino médio. A mãe integra a AVTSM, onde ocupa o cargo de 2ª tesoureira. “É um anseio que vem conosco durante esses quase nove anos de espera e quem acompanhou a nossa trajetória e luta em busca de Justiça sabe dessa ansiedade”, revelou o presidente da AVTSM, Flávio Silva, que passou por um cateterismo no último dia 19. “Agora, na reta final para que o júri tenha início, estamos bastante apreensivos em relação a vídeos que estão sendo colocados nas redes sociais por defensores dos acusados em uma tentativa desesperadora de tentar vitimizar os réus de alguma forma, tentando mostrar uma versão totalmente contrária aos fatos, para sensibilizar a população e os jurados. Isso tem nos incomodado porque é muito ofensivo e desrespeitoso com as famílias”, explicou. O dirigente ressaltou ainda que a tragédia acabou unindo muito os familiares das vítimas. “Formamos uma grande família. Sabemos que os acontecimentos nos debates e no júri vão nos abalar e machucar. Nunca sabemos como a gente e os outros familiares poderão reagir nessas horas que serão muito dolorosas e tristes.”

Para muitos dos familiares das vítimas, não é uma tarefa simples se deslocar até a Capital. Além dos gastos com transporte, há custos para hospedagem e alimentação. Restaurantes associados ao Sindicato de Hospedagem e Alimentação de Porto Alegre e Região (Sindha) fornecerão alimentação gratuita e prestarão apoio às famílias inscritas para acompanharem o júri. Serão pelo menos 75 almoços fornecidos. O compromisso foi firmado pelo presidente do Sindha, Henry Chmelnitsky, e pelo prefeito de Santa Maria, Jorge Pozzobom. Para cada dia de júri, um restaurante associado será o responsável pela alimentação dos familiares. A AVTSM também promoveu uma “vaquinha” virtual para arrecadar dinheiro a fim de ajudar no transporte, na estada e alimentação dos familiares durante os dias do julgamento. A meta era angariar R$ 50 mil e, até o último dia 23, mais de R$ 28,1 mil haviam sido arrecadados. A chamada para a colaboração coletiva era “242 motivos para exigirmos Justiça”. Além disso, o Comando Militar do Sul (CMS) fornecerá alojamento para as famílias das vítimas nos quartéis da Capital. Por medidas de privacidade e segurança, os locais e o número de hóspedes não serão divulgados pelo Exército.

Coletivo de sobreviventes publica carta aberta

Um grupo de mais de 80 jovens sobreviventes da Boate Kiss criou o coletivo ExpreCidade. O nome do coletivo remete à cidade de Santa Maria e a sua tradição ferroviária. O criador do grupo é o psicólogo e sobrevivente Gabriel Rovadoschi Barros, 27 anos, que propõe reunir e promover o cuidado entre os sobreviventes que quiserem participar. Com a proximidade do julgamento, os participantes lançaram o manifesto “O 27 que vive em nós: uma carta expressa”. O relato é um desabafo. “Todo dia, precisamos lutar contra flashes da noite que mudou as nossas vidas. Ainda lembramos, como se fosse ontem, dos gritos, do cheiro insuportável da fumaça, do calor que sentimos enquanto a boate estava em chamas e daquele empurra-empurra em que todos buscávamos por uma só saída”, diz trecho da publicação. Outra parte aborda o trauma ainda presente na memória de quem escapou com vida. “Fomos emboscados pela ganância, pela irresponsabilidade e pela crueldade daqueles que deveriam prezar pela segurança e pela vida, que assumiram o risco de superlotar o local, além da utilização de sinalizadores que não eram indicados para aquele tipo de ambiente, que parecia já ser tradição naquela boate.”

Hoje, no interior do prédio da Boate Kiss, em Santa Maria, ainda se podem ver as marcas da noite de terror de janeiro de 2013. Foto: João Vilnei / Especial / CP

Como será o julgamento

As sessões do julgamento serão em três turnos diários, inclusive aos finais de semana, com início às 9h, exceto no primeiro dia, quando terá início às 13h. No dia 1º de dezembro, o juiz Orlando Faccini Neto, que presidirá o júri, abrirá as atividades com o sorteio dos sete jurados que constituirão o Conselho de Sentença, entre um total de 25, e executará as resoluções de questões pendentes. Os jurados representam a sociedade e decidem sobre o caso, tendo voto secreto e decisão soberana. O MP, por meio dos promotores de Justiça, responderá pela acusação, enquanto os advogados de cada um dos réus farão suas respectivas defesas. Os sobreviventes serão ouvidos no primeiro dia. A fase de instrução começará, etapa em que serão escutadas dez vítimas, cinco testemunhas de acusação e cinco testemunhas de defesa para cada réu, exceto Luciano que não fez indicação. Ao total, serão inquiridas 19 testemunhas. Na sequência, haverá o interrogatório dos réus. Depois acontecem os debates, momento em que acusação e defesas terão oportunidade de apresentarem suas teses e argumentos aos jurados. O tempo total para essa fase do julgamento será de 9 horas. A divisão ficou da seguinte forma: 2,5 horas (para Ministério Público e Assistente de Acusação), 2,5 horas (defesas) e mais 2 horas para MP/Acusação (réplica) e 2 horas (tréplica). Também houve aumento no número de lugares na plateia. O espaço passou de 86 para 124 pessoas. Serão 56 assentos para a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), 28 para os acusados e 10 para os demais familiares não representados pela AVTSM. Haverá mais 2 lugares para o serviço de apoio às famílias. A imprensa contará com 12 assentos. Além disso, haverá 2 lugares para o MP, 8 para autoridades e 6 assentos reservados, totalizando 124 lugares. Juiz, assessoria, 7 jurados, 12 integrantes da defesa (3 para cada equipe), 3 do MP (2 promotores mais 1 técnico) e os 4 réus ficarão no plenário do júri. Haverá à disposição quatro salas de transmissão, com 54 lugares cada, sendo prioritárias para as famílias. Se sobrarem assentos, esses serão disponibilizados ao público credenciado no site do TJ/RS. Encerrados os debates, os jurados serão questionados se estão aptos para decidir. Eles passarão a uma sala privada para responder ao questionário formulado pelo magistrado. Em seguida, os jurados decidem de maneira individual e depositam o voto em uma urna. A maioria prevalece. No retorno ao plenário, o juiz anuncia o resultado e profere a sentença. Nos dias das sessões, a previsão é de intervalo de uma hora para almoço, das 12h às 13h, e por volta das 18h30min/19h para lanche. O término dos trabalhos está previsto para às 23h, mas pode entrar madrugada a dentro. A estimativa é que o julgamento se estenda por até 15 dias. Todas as pessoas que estiverem credenciadas para acompanhar as sessões deverão apresentar passaporte vacinal ou exame PCR de Covid-19 feito 72 horas antes de comparecer ao Foro, além de documento de identidade. Apenas público credenciado poderá acessar o local. O júri será transmitido ao vivo pelo canal do órgão no YouTube. 

Os promotores de Justiça responsáveis pela acusação são Lúcia Helena Callegari e David Medina da Silva. Os advogados Jader da Silveira Marques e Leonardo Sagrillo Santiago cuidarão da defesa de Elissandro. Enquanto os advogados Jean de Menezes Severo, Gustavo da Costa Nagelstein, Tomás Antônio Gonzaga, Filipe Decio Trelles e Martin Mustschall Gross defenderão Luciano. Por sua vez, a advogada Tatiana Vizzotto Borsa cuidará dos interesses de Marcelo e os advogados Mario Luis Lirio Cipriani, Bruno Seligman de Menezes, Adriano Farias Puerari e Diego da Rosa Garcia ficarão responsáveis pela defesa de Mauro.

Ao longo desses mais de oito anos, a fachada da Kiss recebeu manifestações de indignação, homenagens às vítimas, pedidos de justiça. Hoje, está assim. Foto: Renato Oliveira / Especial / CP

Trauma da "sinfonia dos celulares"

Paulo Tavares

A madrugada de 27 de janeiro de 2013 não marcou apenas uma cidade, mas alguns países. O incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, causou a morte de 242 pessoas e ferimentos em outras 636. Algumas tiveram que aprender a conviver com as sequelas. Uma tragédia que fez a cidade da região central do Estado ficar traumatizada. No final da madrugada daquele dia, após as rádios locais divulgarem o que ocorrera na casa noturna, muitas pessoas foram ao local, mas o que mais impressionou a todos foi o que ficou conhecido como a “sinfonia dos celulares”. Preocupados com seus entes queridos, familiares que haviam escutado a notícia começaram a ligar para os parentes, formando uma mistura de toques, dentro da boate e também quando os corpos eram retirados do local. As pessoas que ficaram na frente do estabelecimento não se manifestavam, alguns apenas baixavam a cabeça e choravam silenciosamente.

Na parede da peça onde ficava o banheiro masculino, foi aberto um buraco, já dia claro, para retirar os corpos que ficaram no local, amontoados. Muitos foram para aquele lugar, segundo apurou a Polícia Civil, por ser o único ambiente iluminado. Pensaram que seria a saída do prédio. Não era. A luz era da iluminação pública, que passava por uma grade de madeira que ficava na janela. As vítimas acabaram encurraladas no local e, no desespero, tentaram alcançar a abertura. Como o veneno expelido pelo material usado como revestimento acústico exala cianeto, o mesmo elemento químico que foi usado no campo de concentração nazista de Auschwitz, na 2ª Guerra Mundial, as pessoas foram morrendo. Assim, quem estava atrás na fila tentava escalar o monte de corpos que ia se formando, mas que não alcançou a abertura. O que deixou os bombeiros estarrecidos foi a forma como encontraram os cadáveres. O cianeto congela os movimentos na hora da morte, assim as expressões eram as mais chocantes. Entre os feridos também estavam integrantes do Corpo de Bombeiros que durante a operação de resgate acabaram respirando a fumaça. Muitos precisaram de tratamento posteriormente.

Incêndios em boates já tinham ocorrido outras vezes, porém, não com um número tão grande de mortos. Na Argentina, a boate República Cromañón, em Buenos Aires, também incendiou-se. A tragédia ocorreu na noite de 30 de dezembro de 2004, durante um show de uma banda de rock. Na tragédia morreram 194 pessoas e ao menos 1.432 ficaram feridas.

A população de Santa Maria, a esta altura, já tinha se dirigido ao Centro Desportivo Municipal. Ali, os corpos foram colocados lado a lado para serem reconhecidos pelos parentes. A fila que se formou era impressionante. Familiares aguentaram o calor extremo daquele verão sem reclamar, apenas esperando o momento de fazer o reconhecimento do corpo do ente querido, se estivesse ali. Um senhor, com 70 anos ou mais, amparado pela filha e uma neta, foi um dos que chegaram ao local demonstrando esperança de que o neto estivesse vivo. Não estava. O idoso saiu carregado pelas duas mulheres e, no meio do caminho, parou e perguntou para um jornalista: “Por quê, meu filho? Por quê?”.

Durante o resto do dia, a movimentação foi ao redor do ginásio, onde também ocorreria um velório coletivo. Um pai, que aceitou conversar com os repórteres que foram mantidos a uma determinada distância dos familiares, falou da saudade e da falta que a filha faria. No meio da entrevista, não conseguiu conter as lágrimas. Olhando para o jornalista, afirmou: “Se eu não tivesse levado ela para a Kiss de carro, isso não teria acontecido. Fui eu quem a levou até a boate”, lamentou, entre soluços. Outros pais se manifestaram da mesma maneira, muitas vezes culpando a si próprios por terem permitido que o filho fosse para a boate, onde ocorria naquela noite uma festa dos estudantes de Agronomia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Ao cair da noite, a cidade mergulhou em grande escuridão. Poucas luzes acesas nas casas. Nas ruas, ninguém era visto. Nada se movia. Poucas pessoas saíram para alguma atividade e, nesse caso, retornaram cedo. O dia seguinte seria mais triste, com o sepultamento de muitas vítimas. Na parte da tarde, um jovem de 18 anos, que servia no Exército, seria sepultado. O cortejo, com a mãe do rapaz à frente do caixão, deixou as pessoas que estavam no local sem palavras. Os atos de sepultamento transcorreram normais até que chegou a hora de baixar o esquife para a sepultura. A mãe se abraçou no caixão e, em seguida, ergueu a cabeça e pediu: “Senhor, por favor, cuida bem do meu filho”. Outras manifestações semelhantes ocorreram nos demais sepultamentos, no dia seguinte ao incêndio. Uma mãe revelou que o filho era o companheiro dela e do marido. Os três se reuniam para assistir televisão e comer pipoca, que o rapaz adorava. “Ele vai me fazer muita falta, não sei como será de agora em diante a nossa vida”, comentou durante uma passeata silenciosa, ocorrida um ano depois da tragédia. “É difícil, mas a memória dele sempre estará conosco.”

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895