Arroz é alimento e muito mais

Arroz é alimento e muito mais

Grão destinado ao consumo humano, o arroz deixa um grande volume de casca, que já tem diversos aproveitamentos, como na geração de energia e na fabricação de tijolos, borrachas e até chips, entre muitos outros

Por
Carolina Pastl*

Resíduo correspondente a 22% do grão do arroz, a casca (foto acima) vem deixando de ser um problema para a cadeia produtiva do alimento e se incorporando a outras atividades econômicas. A sobra tem vários usos e entre eles estão os de fonte para a geração de energia e componente de material da construção civil e de artefatos de borracha.

Embora não tenha classificação de “perigoso” no contato direto, o resíduo ocupa grandes espaços e causa impactos para o meio ambiente, mesmo quando depositado em aterros, porque emite gás metano, um dos responsáveis pelo aquecimento global.

Produtor de cerca de 70% do arroz nacional, o Rio Grande do Sul, por ter colhido 8,2 milhões de toneladas do grão, vai gerar 1,8 milhão de toneladas de casca neste ano. “É o coproduto mais volumoso da indústria arrozeira e não tem finalidades gastronômicas, como o farelo e o fragmento do grão, o que dificultava um possível reaproveitamento”, contextualiza o engenheiro químico Gilberto Amato, pesquisador da Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia e conselheiro técnico do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga).

Em décadas anteriores, a prefeitura de Pelotas chegou a ter como segundo maior gasto – atrás apenas do pagamento do funcionalismo público – a desobstrução de bueiros entupidos pela casca do arroz. Em Buenos Aires, o problema foi semelhante. “O descarte era a céu aberto, sem nenhum tratamento”, recorda o professor titular da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador do Laboratório de Pós-Colheita, Industrialização e Qualidade de Grãos, Moacir Cardoso Elias. Outro destino comum era o aterro de terrenos alagadiços. Segundo a Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler (Fepam), além de gerar gás metano, o depósito inadequado da casca pode resultar na contaminação do solo e da água.

DO CIMENTO AO CHIP

A partir de pressões de ambientalistas e de um déficit de espaço para armazenagem do resíduo, engenhos e universidades começaram a estudar formas de reaproveitamento do material.

Atualmente, estima-se que, no Estado, cerca de 30% da casca de arroz é utilizada para geração de energia, seja térmica, para secagem dos grãos durante o beneficiamento da produção, ou elétrica, para o abastecimento interno da própria planta industrial e até mesmo para venda a distribuidoras.

Especialistas consideram a geração de energia pela queima da casca de arroz como a alternativa mais viável, do ponto de vista tecnológico e econômico, para o aproveitamento do resíduo. “Antes até se pagava para tirar a casca do engenho e, hoje, tem usinas querendo comprar o material para usar como combustível”, constata Amato.

Além do poder calorífico, a casca de arroz é fonte de sílica. Cerca de 95% da massa das suas cinzas corresponde ao composto químico – concentração até seis vezes maior do que a encontrada em outros cereais. A descoberta foi mobilizada pelo fato de que as cinzas também exigem um descarte correto, já que seu volume corresponde a 4% do arroz em casca. A Fepam regulamentou o descarte e o reaproveitamento do resíduo em 2011, ao publicar a diretriz técnica nº 2. Hoje, os principais usos das cinzas podem ser vistos na fabricação de borrachas, cimento, vidros, fármacos e até chips eletrônicos. No caso da casca carbonizada, ainda não transformada em cinza, é muito utilizada na agricultura orgânica como substrato para plantação de mudas.

Mas há iniciativas ainda mais ousadas, que transformam a casca de arroz em carvão ativado, briquetes, móveis e até madeiras plásticas. A maior parte delas ainda não saiu do papel e está à espera da viabilização financeira dos projetos.

“Antes de qualquer investimento, é preciso avaliar sua viabilidade”, adverte o gerente industrial da Urbano Alimentos, Paulo Roberto Franzner, em nome da Associação Brasileira da Indústria do Arroz (Abiarroz). Ainda assim, tanto ele como Elias e Amato apostam no crescimento deste nicho de mercado como um todo. “Não é mais aceito pela sociedade o não aproveitamento da casca pelas indústrias”, avalia Amato.

O PROCESSO

Antes de ser embalado para ser comercializado nas gôndolas de supermercados, o arroz precisa ser beneficiado e passa por uma série de processos industriais. Depois de colhido, o grão em casca é hidratado, gelatinizado e secado, de modo a chegar à umidade, durabilidade e riqueza em vitaminas e minerais ideais. Em seguida, o arroz é despejado em roldanas de borrachas, que o descascam. Aqui que se produz o arroz integral parboilizado e, caso não tenha passado pelas operações anteriores, o arroz branco. Adiante, ocorre o polimento, com a remoção do farelo, se chega ao arroz parboilizado polido e é feita a separação de grãos quebrados e com defeitos.

 

Indústrias movidas a resíduos

Algumas das principais empresas e cooperativas da área de alimentos do Estado apostaram na geração a partir da queima da casca do arroz e conseguiram reduzir o consumo e até vender excedentes de energia elétrica

Usina Termoelétrica São Sepé recebe casca de indústrias da região e produz energia que vende para distribuidoras | Foto: Divulgação/CP

A casca de arroz deixou de ser um resíduo descartado no meio ambiente para se tornar fonte de energia na indústria de beneficiamento do grão no Rio Grande do Sul. Atualmente, o Estado concentra oito das 11 usinas brasileiras movidas pelo insumo, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Alguns desses empreendimentos atendem toda a demanda energética da própria indústria de beneficiamento do arroz e geram excedentes para venda ao mercado. Os que não chegam a esse ponto economizam recursos suprindo parte da demanda interna e, com isso, reduzem a compra das distribuidoras. As duas principais vantagens são a destinação sustentável à casca e a redução dos custos com energia.

O investimento é considerado alto, mas retornável, e o processo é relativamente simples. “A casca de arroz é queimada numa caldeira para aquecer água até virar vapor; esse vapor é direcionado a uma turbina que movimenta um gerador, que produz energia elétrica”, resume Paulo Roberto Franzner, gerente industrial da Urbano Alimentos, de São Gabriel, a primeira a investir na tecnologia na América Latina, em 1994. “Queríamos reduzir custos operacionais e melhorar a qualidade da nossa energia”, resume Franzner. 

Hoje, a usina mantém a potência outorgada inicial de 2,2 Megawatts (MW) e consome 1,4 tonelada de casca, produzida pela própria indústria, para cada Megawatt-hora (MWh) gerado. No ano passado, a produção anual foi de 12,6 mil toneladas de casca, convertidas em 9 mil MWh, totalmente direcionados ao abastecimento energético da planta industrial. O projeto deu tão certo que, atualmente, a Urbano tem mais duas usinas, uma em Jaraguá do Sul, em Santa Catarina, e outra em Sinop, no Mato Grosso.

A segunda empresa do Estado a apostar no uso da casca de arroz para gerar energia foi a Camil Alimentos, de Itaqui. Sua primeira usina tem potência instalada de 5,2 MW. Como o resultado foi positivo, a empresa partiu para a segunda, em Capão do Leão, com potência de 5,6 MW. Hoje, considerando as duas, gera 0,53 MWh por tonelada de casca e admite que há estudos para novos empreendimentos.

Em 2008, a usina do Grupo Pilecco Nobre Alimentos, de Alegrete, foi inaugurada. Desde então, colhe os resultados. Além de tornar a indústria autossuficiente, acumula um excedente mensal de 2,5 MWh médios, vendidos no mercado livre. A potência instalada é de 5 MW, que propicia a geração de 1 MWh de energia elétrica a cada 1,5 tonelada de casca. Esta é resultante dos processos de beneficiamento de arroz da própria empresa e completada por fornecedores da região.Em 2009 foi a vez da Cooperativa Agroindustrial de Alegrete (Caal) aderir ao modelo de negócio. A potência outorgada é de 3,8 MW, com geração de 1 MWh de energia a cada 1,5 tonelada de casca.

Em 2011, o Engenho Coradini, de Dom Pedrito, também apostou em sua usina, que converte 1,75 tonelada de casca em 1 MWh de energia. A potência outorgada é de 1,2 MW.

A usina movida a casca de arroz mais recente do Estado é a São Sepé, que iniciou suas atividades em 2018, no município de mesmo nome. O empreendimento é cooperativo. As indústrias arrozeiras da região doam o resíduo. A energia é vendida ao mercado. Para tanto, a usina se habilitou, em leilão, a fornecer energia para 28 distribuidoras de todo o país por 20 anos, em 2015.

Com potência instalada de 8 MW, a São Sepé tem capacidade para gerar 56 mil MWh por ano, o suficiente para abastecer uma cidade com 100 mil habitantes, a partir da queima de 73 mil toneladas de casca de arroz, segundo João Alderi do Prado, presidente de uma das cooperativas associadas ao projeto, a Creral. A energia gerada é entregue, por meio da subestação Formigueiro, ao Sistema Interligado Nacional. Já as cinzas são destinadas gratuitamente a uma empresa que fabrica cal mista.

“Ampliamos a oferta regional de energia de qualidade, vinda de fonte alternativa, limpa e sustentável, ao mesmo tempo que resolvemos a destinação de resíduos de indústrias”, orgulha-se Prado. Além da Creral, Ceriluz, Erechim Energia, BR Energia, Minozzo Participações e Energia 203 também participam da sociedade. 

Os investimentos feitos em cada usina termoelétrica do Estado ficaram entre R$ 5 milhões e R$ 7,5 milhões por MW, em valores aproximados e corrigidos para os dias atuais.

 

Possibilidades nos móveis e combustíveis

A casca do arroz tem sido estudada por diferentes instituições brasileiras para novos reaproveitamentos, além dos já conhecidos. Duas dessas possibilidades, ainda em fase de testes, são o uso do resíduo na gasolina e em móveis. Pesquisadores avaliam que os resultados são promissores.

No ano passado, cientistas das universidades federais de Campina Grande (UFCG), na Paraíba, e do Ceará (UFC), com sede em Fortaleza, desenvolveram um supercatalisador para produção de biocombustíveis a partir de cinzas da casca de arroz. Com isso, segundo o estudo de autoria dos professores Jocielys Rodrigues, Meiry Glaucia e Fabiano Fernandes, foi possível produzir gasolina e diesel. “Conseguimos uma produtividade de 88% em termos de rendimento, baseado no produto final, enquanto a meta era 70%”, relata Rodrigues. A pesquisa, financiada pelo CNPq, foi publicada na revista científica internacional Brazilian Journal of Petroleum and Gas.

Antes disso, em 2018, foi o setor moveleiro que agregou uma possibilidade de deixar seus produtos mais competitivos e ecologicamente corretos. Na época, a professora Eliana Paula Calegari, do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO), publicou o resultado do seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) apontando a criação de um compósito polimérico com 80% de casca de arroz, que pode ser utilizado em móveis. Os outros 20% são de resina poliéster. Segundo Ana, a combinação entre os dois materiais trouxe características como leveza e resistência a intempéries e cupins ao produto final.

 

Sobra da queima é usada em pneus

Sílica tem diversas aplicações, entre as quais está a de entrar na formulação de artefatos de borracha em indústrias como a automobilística e a calçadista | Foto: Ronny Borges / Divulgação / CP

Não é só a casca de arroz que pode ser reaproveitada dentro do setor industrial. A queima do resíduo gera cinzas, que, se não tiverem um destino correto, também podem ocasionar danos ao meio ambiente. Tendo isso em mente, o Grupo MPC, de Hamburgo, na Alemanha, criou a empresa Oryzasil Sílicas Naturais, no município de Itaqui, em 2017. O objetivo foi aproveitar as cinzas produzidas a partir da queima da casca de arroz para geração de energia na Usina Termoelétrica de São Borja, que pertenceu ao grupo entre 2011 e 2015, e na própria Oryzasil, para a fabricação da sílica precipitada. Atualmente, essa matéria-prima é destinada a empresas que fabricam pneus e artefatos leves de borracha, como autopeças e solados de calçados.

“A Oryzasil nasceu sob o conceito de indústria química moderna, com um processo de produção circular e ambientalmente correto, livre de efluentes e autossuficiente em energia”, afirma o diretor comercial da empresa, Paulo Garbelotto. Isso porque, enquanto a Oryzasil extrai a sílica do silício encontrado nas cinzas da casca de arroz, as indústrias químicas clássicas usam areia ou quartzo, que vêm da mineração, como matéria-prima para a fabricação do mesmo produto.

A sílica precipitada é inserida em etapas da industrialização de diversos produtos. No caso dos pneus, o material entra na composição da borracha das bandas de rodagem. E, além de ser mais sustentável, traz outras vantagens. “O pneu verde, ou pneu de alta eficiência energética, oferece menor atrito com o solo quando o veículo se movimenta. Assim, proporciona economia de combustível que pode chegar a 10% e, proporcionalmente, a redução das emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa liberados pelo veículo”, sustenta Garbelotto. “Além disso, na frenagem, esse mesmo pneu proporciona maior aderência ao solo, o que resulta em maior segurança, principalmente em pisos molhados”, complementa o executivo. 

Ainda que o produto tenha preço mais alto, Garbelotto calcula que um automóvel com quatro pneus verdes que rodem 50 mil quilômetros gere uma economia de R$ 2,5 mil ao motorista, considerando o preço do combustível em R$ 5 o litro – o que seria suficiente para comprar quatro pneus novos.

No momento, a fábrica produz cerca de 5 mil toneladas de sílica precipitada por ano, a partir de 25 mil toneladas de casca de arroz fornecidas por produtores da região. Em cada pneu verde de automóvel se usa cerca de um quilo de sílica. A partir de 2022, a empresa planeja expandir o volume da sua produção em cinco vezes. O investimento total ficará por volta de R$ 250 milhões. Ao todo, 50 empregos diretos são gerados.

Outras empresas, como a Goodyear e a Vipal Borrachas, também têm apostado na área. No caso da norte-americana, a sílica entrou oficialmente no portfólio de materiais no ano passado. Já a gaúcha está investindo por meio do financiamento de estudos, realizados no centro de pesquisa da empresa e em parceria com a Universidade de Caxias do Sul, no Brasil, e a Lodz University of Technology, na Polônia. A pesquisa se encontra na etapa de validação laboratorial interna e deve seguir para testes na fábrica. O pedido de patente do processo já foi solicitado pela Vipal e pelas universidades que participam dos estudos. 

 

No cimento e no concreto

As cinzas geradas pelo Grupo Pilecco Nobre Alimentos, de Alegrete, também ganharam uma destinação inovadora a partir de 2011, quando passaram a fazer parte dos ingredientes de fabricação de concreto e artefatos à base de cimento a partir da extração da sílica. O componente químico é fabricado pela Sílica Verde do Arroz, subsidiária criada pela empresa. Já o produto final é elaborado por outras indústrias, que compram a matéria-prima.

A iniciativa surgiu por precaução. Antigamente, a casca de arroz era colocada em um depósito licenciado pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). No entanto, antes que essa opção se esgotasse, a empresa resolveu adotar a geração de energia e de sílica com o subproduto da queima. 

 

Cinzas nas paredes da casa

Aproveitamento da sobra do arroz nos tijolos reduz extração de argila e acelera secagem do produto | Foto: Francine Ferreira/ Divulgação/CP

No Sul de Santa Catarina, uma iniciativa inédita uniu duas indústrias, uma de cerâmica e uma de beneficiamento de arroz. A parceria foi estabelecida a partir da necessidade que a Fumacense Alimentos, de Morro da Fumaça, tinha de destinar corretamente parte das cinzas originadas da queima da casca de arroz para geração da energia elétrica que abastece a própria fábrica desde 2008. A Cerâmica Guarezi, de Treze de Maio, se interessou pelo projeto e, há um ano, incorpora o resíduo aos tijolos que fabrica. Além da redução do impacto ambiental, o uso das cinzas possibilitou um retorno financeiro maior à cerâmica.

A maior parte das cinzas geradas pela incineração das cascas da Fumacense já era utilizada por indústrias siderúrgicas e cimenteiras de diferentes estados brasileiros. No entanto, ainda restava em torno de 20% do resíduo. “Até então, destinávamos essa parcela para produtores rurais que utilizavam as cinzas em suas lavouras como uma espécie de adubo para terra”, relata o coordenador da Central Termelétrica da empresa, Lucas Tezza. “O problema é que não tínhamos rastreabilidade desse montante.”

Para viabilizar um destino mais seguro para esses resíduos, a Fumacense passou a mobilizar estudos junto ao Sindicato da Indústria de Cerâmica Vermelha de Morro da Fumaça. Com o projeto consolidado, se escolheu a Cerâmica Guarezi para receber gratuitamente as cinzas.

A usina da Fumacense tem uma potência instalada de 1,5 Megawatt (MW) e gera 60 Megawatt-hora (Mwh) por mês a partir da queima de 80 toneladas de casca por dia. Das 16 toneladas de cinza que sobram por dia, cerca de 3 mil são direcionadas à Guarezi, que incorpora o volume como 15% da massa dos seus tijolos.

Além de contribuir com um destino sustentável para as cinzas recebidas da usina termoelétrica da Fumacense, a Guarezi também percebeu impactos que a beneficiaram diretamente. O primeiro foi que, com o uso do resíduo, deixou de extrair mensalmente uma média de 300 a 350 metros de argila virgem, equivalentes a cerca de 10% do total que retirava de uma jazida própria, localizada a 15 quilômetros da fábrica. “Também ganhamos velocidade no processo, porque a mistura com a cinza perde umidade mais facilmente, o que agiliza o processo de secagem”, acrescenta o sócio-proprietário da empresa, Gelson Guarezi. Verificou-se ainda um aumento de cerca de 10% no volume de produção, que chega a 3 mil toneladas por mês.

* Sob supervisão de Elder Ogliari

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895