ecnUm mercado que é desconhecido por muitos e cobiçado por tantos outros: o das criptomoedas. O tema chama a atenção pelas características curiosas e também pelas diversas notícias de fraudes e prejuízos financeiros. As criptomoedas nasceram a partir de um artigo assinado pelo pseudônimo Satoshi Nakamoto, em 2008. Segundo Vytautas Fabiano Silva Zumas, delegado e coordenador do Laboratório de Lavagem de Dinheiro da Polícia Civil do Estado de Goiás, ainda não há informações sobre o criador ou os criadores por trás da invenção.
A primeira moeda virtual lançada foi a Bitcoin, que seria o correspondente ao “dólar das criptomoedas”, conforme o professor de direito internacional e constitucional da Ulbra Demetrius Barreto Teixeira. Pesquisador na área de criptomoedas, ele é autor do livro “A soberania na ordem econômica versus a desestatização do dinheiro: O caso Bitcoin, o mercado financeiro na internet e sua (des)regulação, consequências e externalidades”.
No final de janeiro de 2009 começaram as transações com Bitcoin e, desde então, diversos outros tipos de moedas virtuais foram lançados. Entre elas, Ethereum, Tether, Ripple, Litecoin e outras. Uma criptomoeda, segundo Teixeira, tem esse nome porque se baseia em uma tecnologia de criptografia. “Elas trabalham dentro de um sistema ‘ponto a ponto’, como se fosse um aplicativo de mensagem P2P, ou seja, a transferência de criptomoeda é feita da carteira de uma pessoa para a outra, feita ‘ponto a ponto’, sem passar por um intermediário”, detalha.
Todas as criptomoedas, de acordo com Teixeira, são desenvolvidas sobre uma arquitetura de rede descentralizada. Isso significa que não há um controle central que vá certificar essas movimentações. “A certificação das operações na rede se dá no próprio ‘nó da rede’. É o que se chama de construção de consenso e ela trabalha com uma tecnologia interessante, que tem sido investigada hoje no mundo todo, principalmente o Bitcoin, que desenvolveu essa tecnologia, que é a chamada blockchain”, ressalta.
A blockchain é uma base de dados de registros contábeis que certifica e registra todas as operações que acontecem na rede do Bitcoin. Por exemplo, caso uma pessoa utilize Bitcoins para comprar uma garrafa de água mineral, ela usa um aplicativo de celular e gasta uma quantidade determinada de Bitcoins que possui. A partir daí, realiza o pagamento após escanear um QR Code e, quando essa operação é feita, imediatamente é criado um código que é registrado na blockchain. “A blockchain é um livro de registro das operações, certificado pela atuação dos miners (ou mineradores, na tradução literal) e, no momento em que há essa certificação, a operação está registrada. Segundos depois, outras operações seguem registradas em cima, o que caracteriza o sistema de blocos (ou blockchain)”, enfatiza.
O sistema, conforme Teixeira, é extremamente seguro para os registros contábeis e tem sido alvo de pesquisadores do mundo inteiro, não só de desenvolvedores de tecnologia da informação e sistemas informáticos, mas também das instituições financeiras. Um exemplo, segundo ele, foi o lançamento do Pix pelo Banco Central do Brasil.
“O Banco Central desenvolveu o Pix a partir da premissa básica do Bitcoin. Não posso dizer que a arquitetura é totalmente semelhante à das criptomoedas, mas se inspira nesse formato. Hoje conseguimos fazer transferência via Pix de uma instituição financeira para outra, é uma transferência de ponta a ponta registrada e certificada, mas é diferente porque passa pelo Banco Central”, indica.
Segundo Teixeira, as criptomoedas têm essa diferença. “Como a construção de consenso se dá em uma rede distribuída e descentralizada, ela não necessita de uma autoridade central certificadora. Isso significa que as criptomoedas foram criadas para serem moedas virtuais, mas sem o controle dessa figura de autoridade”, complementa.
Existe ainda um arcabouço ideológico, de acordo com o professor, que é subjacente à criação das criptomoedas. “Foi justamente um movimento de crítica e de contraponto ao sistema financeiro e monetário controlado por bancos centrais”, resume, reforçando que elas são chamadas de criptomoedas por se proporem a realizar tudo o que uma moeda realiza e ter todas as qualidades que as moedas têm (servir como reserva de valor, ser unidade de conta e ser meio geral de troca).
Por que elas estão "em alta"?
Os motivos para justificar a alta procura e as polêmicas envolvendo as criptomoedas são diversos. Conforme explica Vytautas Fabiano Silva Zumas, delegado e coordenador do Laboratório de Lavagem de Dinheiro da Polícia Civil do Estado de Goiás, um dos pontos a serem pensados a respeito é a queda constante nas taxas de juros em diversos países, incluindo Brasil e Estados Unidos, por exemplo. “Muita gente acaba migrando para um criptoativo, que é o caso das criptomoedas, pois há maior capitalização de mercado. Podemos entender que os investimentos normais não estão dando o retorno desejado, então as pessoas fogem de investimentos mais conservadores para procurar as criptomoedas”, diz.
Segundo Zumas, o retorno chega aos investidores, no caso do Bitcoin, única e exclusivamente por oferta e demanda. “A escassez do criptoativo faz com que o preço aumente. As pessoas compram o Bitcoin, a quantidade de Bitcoins diminui e o preço sobe, a escassez aumenta e o preço sobe. Mas por que diminui? Porque o protocolo do Bitcoin foi desenvolvido para ter uma deflação programada”, afirma. Ele ainda ressalta que as criptomoedas foram criadas não como forma de investimento, mas como meios de pagamento. “O negócio tomou proporção, de oferta e demanda, além da escassez programada e assim o preço começou a subir”, ressalta o delegado.
Além disso, Teixeira complementa que, até o final de 2009, o Bitcoin não era tão conhecido, porém, houve divulgação e as pessoas começaram a comprar cada vez mais. Na época, um Bitcoin era equivalente a menos de um dólar. “Como é uma moeda virtual, que não é controlada por bancos centrais, na própria rede em que foi desenvolvida já era estabelecido qual o máximo de Bitcoins que teria circulando. Ou seja, quando ele apareceu, já surgiu com um volume máximo que poderia atingir a partir da realização contínua de transações com ele”, destaca.
Caixa eletrônico para compra de Bitcoin, em Hong Kong, em 2017, ano em que a moeda quebrou vários recordes de aumento de valor. Foto: Anthony Wallace / AFP / CP Memória
O Bitcoin é uma moeda que a médio e longo prazo é deflacionária e não inflacionária. E por ser um bem escasso, ela funciona pela lógica de oferta e procura. “Assim, o preço no mercado vai subindo, que é o que temos visto, quanto mais pessoas demandam criptomoedas, mais o preço sobe e mais elas se tornam atraentes pelo valor e mais pessoas passam a adquirir essa moeda como um investimento e ela sobe cada vez mais”, comenta o professor da Ulbra. E é exatamente isso o que tem feito com que elas fiquem em alta.
Riscos para investir
No entendimento de Teixeira, esse é um ponto extremamente importante que foi tratado, inclusive, em sua dissertação de mestrado, que deu origem ao seu livro.
O maior risco, segundo ele, é a desregulamentação do mercado das criptomoedas. “Não existe norma ou lei regulando esse mercado e isso não é um problema do Brasil, é uma questão do mundo inteiro.” Alguns países, conforme o professor e pesquisador, iniciaram a regulamentação de criptomoedas com o objetivo de taxar, cobrar tributos sobre as operações financeiras realizadas. Esse tem sido o caso do Japão e do Canadá, por exemplo. Outros países, por sua vez, estão seguindo o caminho no sentido de criminalizar o mercado, como o Reino Unido e os Estados Unidos. “As discussões em torno da criminalização nesses países sugerem que elas (criptomoedas) são utilizadas para financiamento do terrorismo internacional, lavagem de dinheiro e financiamento de organizações criminosas. As alegações são de que as criptomoedas supostamente não seriam rastreáveis em função de não serem emitidas por uma autoridade central”, destaca. Na visão desses países, explica Teixeira, isso facilitaria a utilização das criptomoedas como um meio, um valor mobiliário usado para financiar esses ilícitos.
“A grande maioria dos países não têm qualquer regulação sobre criptomoedas até o momento”, diz. Entre os países que vêm buscando tributar as operações, há paraísos fiscais como as Maldivas, por exemplo, que justificam seu posicionamento pela atração de investimentos.
Esse é o grande problema, de acordo com Teixeira. Por ser um mercado não regulado, ele é considerado de alto risco. “Porque você não tem segurança jurídica para investir nesse mercado. Se você coloca o dinheiro e perde tudo, não tem como demandar porque não existe ordem jurídica que eventualmente vá protegê-lo”, declara. Atualmente, segundo ele, há algumas decisões judiciais no Brasil, inclusive em casos de pessoas que fizeram investimentos e foram prejudicadas.
“Tem começado a se abrir um espaço nesse sentido, mas é uma construção jurisprudencial, não é uma construção normativa, vinda da fonte legiferante, que no caso é do Congresso Nacional. Então, ainda não temos uma regulação específica a respeito disso”, assinala. O Banco Central do Brasil e a Receita Federal têm emitido regulamentações, principalmente em relação à tributação, mas não temos uma legislação específica.
Sobre fraudes
Atualmente, Teixeira afirma que estão surgindo de maneira “abrupta e absurda” diversas empresas de fachada que oferecem investimentos em criptomoedas com ganhos astronômicos, mas que, na verdade, é um discurso falso para realizar operações de pirâmide financeira. “Querem captar recursos das pessoas com base em um sistema de pirâmide financeira, sem qualquer tipo de investimento em cripto”, afirma. A falta de regulação, conforme o professor, também acaba produzindo a ausência de informação sobre o tema e termina facilitando o surgimento de empresas desse tipo.
De acordo com Zumas, tratam-se de plataformas maliciosas que estão se aproveitando “dessa alta” dos criptoativos. “As pessoas começam a injetar dinheiro, os criminosos pegam e somem”, afirma o delegado. Além disso, também podem acontecer crimes de extorsão e até mesmo sequestro de dados virtuais. “Podem ser crimes patrimoniais, mas nem sempre são ilícitos cibernéticos”, revela, reforçando que também é preciso que os órgãos da Segurança Pública estejam preparados para lidar com essas ocorrências.
Em maio de 2019, a Polícia Federal e a Receita Federal deflagraram, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e em São Paulo, a Operação Egypto, que investigava o envolvimento de uma instituição financeira que atuava sem autorização do Banco Central. Eles cumpriram dez mandados de prisão preventiva e 25 de busca e apreensão. Além dos mandados, foram expedidas ordens judiciais de bloqueio de ativos financeiros em nome de pessoas físicas e jurídicas, de dezenas de imóveis e a apreensão de veículos de luxo.
O inquérito policial foi instaurado em janeiro de 2019 para apurar a atuação de uma empresa com sede em Novo Hamburgo. Ela estaria captando recursos de terceiros, sem a autorização dos órgãos competentes, para investimento no mercado de criptomoedas. A empresa assumia o compromisso de retorno de 15%, ao menos, no primeiro mês de aplicação.
Conforme levantamentos da Receita Federal, uma das contas da empresa teria recebido créditos de mais de R$ 700 milhões entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019. Os sócios da instituição financeira clandestina apresentaram evolução patrimonial de grande vulto, que, em alguns casos, passou de menos de R$ 100 mil para dezenas de milhões de reais em cerca de um ano.
Também foram acusados dos crimes de operação de instituição financeira sem autorização legal, gestão fraudulenta, apropriação indébita financeira, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Como garantir transações confiáveis
O fato de o mercado não ser regulado no Brasil não impede que as pessoas comprem criptomoedas. “Por não ser regulado não significa que seja proibido, mas torna isso arriscado”, define Teixeira. Segundo ele, para investir com certa segurança é preciso procurar empresas idôneas. “Se a pessoa quer comprar e vender, deve procurar as chamadas exchanges, que são as casas de câmbio de criptomoedas”, afirma.
As exchanges são startups que operam virtualmente. Para encontrá-las, a pessoa deve fazer buscas em sites que tratam de criptomoedas, investimentos e é lá que vai achar as opções que oferecem soluções mais garantidas. “Antes de investir qualquer recurso, a pessoa também deve estudar sobre o assunto, buscar em plataformas confiáveis as informações mais completas sobre os riscos”, ressalta.
O investimento em criptomoedas funciona basicamente por meio de compra e venda nas casas de câmbio (exchanges) que operam 24 horas por dia, 7 dias por semana. “Mas é preciso lembrar sempre que um mercado como esse, que não é regulado, pode garantir ganhos muito grandes em pouquíssimo tempo, mas também pode provocar perdas muito grandes no mesmo intervalo e esse é o principal cuidado que as pessoas devem ter.”
O Coinmap é um site colaborativo em que é possível visualizar os estabelecimentos que aceitam pagamentos em Bitcoin. Nas reproduções acima se podem observar as zonas geográficas do mundo, da América Latina e do Rio Grande do Sul onde há maior número de negócios que trabalham com essa criptomoeda. Imagens: Reprodução / CP
Mercado regulado
Nas casas de compra e venda de criptomoedas, não existe horário de funcionamento como na bolsa de valores. Elas operam 24 horas. Foto: Shutterstock / CP
Um exemplo de mercado regulado é a bolsa de valores. Por exemplo, explica Teixeira, quando há uma queda muito grande nas operações de bolsa de valores e é possível perceber que os investidores vão perder muito, o que acontece? “É acionado o safety break da bolsa de valores, pois existe regulação específica para esses momentos, tanto da Comissão de Valores Mobiliários, quanto do Banco Central”, reforça.
Nesse sentido, quando acontece esse tipo de situação, para preservar e proteger as perdas dos investidores, as operações podem ser travadas e pode ser parado. “Param as operações para salvar os investimentos”, exemplifica. Além disso, segundo ele, o mercado regulado tem horário para abrir e para fechar. “A pessoa só consegue comprar e vender na bolsa de valores no horário comercial e quando falamos em compra e venda de criptomoedas em casas de câmbio, elas não têm horário para abrir nem para fechar, operam 24 horas”, afirma.
Ou seja, a pessoa pode comprar Bitcoin às 10h de hoje e ter um ganho astronômico, vai dormir achando que está milionário e no outro dia pode acordar com uma surpresa desagradável caso o Bitcoin tenha caído durante a noite inteira. “A pessoa acorda e vê que perdeu tudo. Então esse é o risco do mercado não regulado e a regulação funciona justamente para isso, para maximizar os ganhos e para tornar o mercado eficiente, efetivo, além de garantir ou proteger os investimentos, os investidores, dando segurança jurídica nas operações e mercados não regulados não têm isso”, frisa.
Principais desafios
A regulação deve acontecer no parlamento. Conforme Teixeira, o Brasil precisa decidir qual o tipo de regulação que vai adotar com relação às criptomoedas. Uma opção é cobrar tributos sobre a operações financeiras realizadas em criptomoedas, e isso implicaria reconhecê-las como um valor mobiliário e internalizá-las no sistema financeiro e monetário. A outra alternativa é regular no sentido de criminalizar e, dessa forma, as operações realizadas em criptomoedas não seriam mais consideradas lícitas e as pessoas que operam podem responder por isso.
“As linhas gerais têm que se dar pelo parlamento, que é onde o debate pode ser construído de maneira clara e produtiva. A regulamentação deve acontecer por meio de leis em que vão se estabelecer os órgãos responsáveis por realizar a regulação mais específica, no caso a Comissão de Valores Mobiliários e o Banco Central, por exemplo. O importante é que essa regulação precisa acontecer. Esse é o principal desafio”, afirma o professor.
Há diferentes propostas legislativas tramitando sobre o assunto, entre elas o Projeto de Lei (PL) 2303, de 2015, além dos PLs 3825 e 3949, de 2019. Os dois últimos estão tramitando em conjunto desde abril de 2020, por tratarem do mesmo tema. Apesar das mobilizações internas, até o momento nenhuma das propostas foi aprovada. “Espero que comece a andar para que possamos ter um marco legal e regulatório mais claro, porque é um cenário que temos e precisamos disso. A tecnologia veio para ficar. Não é porque não aceitamos ou achamos que é perigoso que ela simplesmente vai deixar de existir”, frisa Teixeira.
Para ele, estamos vivendo em um momento no qual a regulação do mercado de criptomoedas é muito importante. “Penso que isso pode inserir o Brasil em um novo patamar, em um novo marco de desenvolvimento. Se o Congresso Nacional der um passo em certa medida mais ousado, no sentido de internalizar esse mercado das criptomoedas, isso poderá colocar o Brasil em uma posição de protagonismo dentro do mercado internacional”, pontua. O caminho da regulação, conforme Teixeira, poderá atrair investimentos. “Se o Brasil regula o mercado de criptoativos e garante para investidores e agentes econômicos uma certa segurança, isso pode atrair investimentos do exterior para cá”, diz.