Boate Kiss: as marcas 7 anos depois

Boate Kiss: as marcas 7 anos depois

Finalmente foi marcado o primeiro julgamento do caso. Durante todo esse tempo, sobreviventes, familiares e amigos têm buscado lidar com as dores da tragédia que matou 242 jovens em 27 de janeiro de 2013

Por
Correio do Povo/Rádio Guaíba

Por Paulo Roberto Tavares (Foto: Tarsila Pereira/CP Memória)

Recém tinha chegado em casa, vindo de uma confraternização com amigos no bairro Bom Fim, em Porto Alegre. Com dor de cabeça, tomei uma aspirina e deitei no sofá da sala para ver se melhorava. Eram 4h45min de 27 de janeiro de 2013 quando o celular tocou. O som pareceu distante e, alguns minutos depois, parou. Achei que poderia ser engano e tentei dormir. O telefone voltou a chamar. Levantei e o atendi. Do outro lado, a coordenadora de produção do Correio do Povo, Luciamem Winck, se identificou e já foi dizendo: “Arruma uma mala com bastante roupa e vem para a redação. Morreram mais de 20 em uma boate em Santa Maria”. Falei que precisava tomar um banho. “Tens cinco minutos para isso. Corre”, foi a resposta.

Tomei o banho e peguei a primeira coisa que vi no guarda-roupa, uma mochila, e coloquei alguma roupa (não sabia quanto tempo iria ficar) e fui para a redação. Felizmente havia um táxi no ponto, na rua Fernandes Vieira. Apenas disse ao motorista: “Vamos para o Correio do Povo”. Chegando à redação, já encontrei Danton Júnior, o outro repórter que foi acionado para a cobertura, e a repórter fotográfica Tarsila Pereira. Por volta de 6h, partimos para Santa Maria. A cabeça continuava doendo, ainda resultado da madrugada com os amigos. Fui no banco de trás do carro do jornal, com o vento batendo no rosto. Um alento. No meio do caminho paramos para um café e, para mim, mais uma aspirina.

No momento em que saíamos do restaurante à beira da estrada, a Rádio Guaíba anunciava que o número de vítimas aumentara. Agora eram 60. Algum tempo depois já eram 120. Por algum motivo a dor na cabeça sumiu ao ouvir isso. Seguimos em frente, calados, apenas Tarsila telefonava insistentemente para uma amiga que morava na cidade da região Central do RS. Chegando a Santa Maria, fomos direto à boate Kiss. Uma multidão no entorno acompanhava o trabalho dos bombeiros. Chegamos bem no momento em que retiravam os corpos do banheiro do clube noturno. Estavam dentro de sacos brancos e eram colocados em um caminhão. Naquele instante, alguns bombeiros afirmavam que o número de mortos já passava de 200. Outras pessoas, que tinham ido para a frente da boate, já com o dia clareando, relembravam o momento em que os celulares das vítimas que estavam na Kiss começaram a tocar. Mais tarde, este fato ficou conhecido como “sinfonia dos celulares”.

Da frente da Kiss, já perto das 10h, e após fazermos algumas entrevistas, fomos para um complexo esportivo existente na cidade, a cerca de dois quilômetros da boate. Neste local, em um pavilhão, os corpos foram deitados lado a lado para serem reconhecidos. A cena era parecida com a dos filmes de guerra que assistimos. Chegando ao local, já com o sol a pleno, em um dia muito quente, fiquei quase sem ação. A retirada dos corpos não me deixou em choque, na minha carreira como repórter policial vi muitos cadáveres, de todo jeito, esquartejados, degolados, etc. Mas a fila de parentes que se formou no entorno do complexo esportivo me deu um nó na garganta. As pessoas, algumas cabisbaixas, outras olhando para o céu, formavam um quadro de muita tristeza. Após dar uma volta na quadra, consegui entrar na área do complexo e comecei a falar com as pessoas. Uma delas foi um dos delegados responsável pela investigação, Marcelo Arigony. Ele tinha perdido uma prima no incêndio.

Depois da entrevista com o delegado, percebi um senhor, de 80 anos, que recém entrara na área do complexo e se dirigia para o local onde ocorria o atendimento feito por psicólogos e assistentes sociais aos familiares, que depois passavam para o ginásio onde estavam os corpos. Este idoso caminhava no meio de duas mulheres, uma, sua neta e a outra, sua filha. Eles tinham ido à procura de um neto. Ele parecia ser o alicerce das duas. Seu caminhar era marcial. Passaram por mim e seguiram firmes. Quase uma hora depois, vejo o trio de volta. Aquele senhor seguro, cujo nome não lembro mais, estava diferente. Arrasado, era amparado pelas duas familiares. As lágrimas escorriam em seu rosto. Fui na direção deles, mas antes que eu pudesse abrir a boca para falar alguma coisa, ele me encarou e perguntou: “Por que, meu filho? Por quê?”. Fiquei sem saber o que dizer. Apenas me afastei. Até hoje não sei a resposta para aquela indagação. Entre tantos outros casos, este acabou não entrando na edição do dia do Correio do Povo, se perdendo no meio de tantas outras histórias tristes que presenciamos.

A tarde passou rápido. Já quase 18h fomos ao hotel que tinham nos indicado para ver se conseguíamos dois quartos. Conseguimos. Logo depois, começamos a enviar as matérias para a redação. Já de noite, após jantarmos, fomos ao velório coletivo em outro local da cidade. Lá, jovens da Universal ajudavam os familiares das vítimas, dando água, oferecendo uma palavra amiga. De volta para o hotel, dava para perceber que a rotina da cidade tinha mudado radicalmente. Parecia que Santa Maria não tinha moradores, tampouco energia elétrica. Toda a cidade estava às escuras e nenhum bar estava aberto, nada se movia. O silêncio, às 21h daquele 27 de janeiro, era absoluto. Nem carros passavam nas ruas, como se todos tivessem de luto e se recolhido às suas casas.

Encontramos um pub perto do nosso hotel, que também foi adotado por outros jornalistas que vinham de São Paulo, Rio de Janeiro e do exterior, para cobrir a tragédia. Nos reunimos ali, no único lugar aberto. Uma das partes mais difíceis foi cobrir os sepultamentos. Em um deles, uma mulher, muito distinta, caminhava ao lado do esquife do filho, um soldado do Exército. Ela mantinha a calma e ia na frente, parecendo não ver quem estava à sua frente ou ao lado. Após os atos fúnebres o caixão foi preparado para descer à sepultura. Neste momento, a mãe não conseguiu mais se conter. Abraçada ao caixão, falou, olhando para o céu: “Pai, por favor, cuida bem do meu filho”. Cenas comoventes, carregadas de emoção, foram muitas, apesar de grande parte dos sepultamentos terem sido cobertos pelo Danton.

Após esses atos, foi a vez de correr atrás da Polícia Civil para ver como andava o inquérito. Não demorou muito, no segundo dia após a tragédia os acusados já tinham sido detidos. Foram várias tardes de plantão em uma delegacia situada perto da Rua do Acampamento. Sempre no final da tarde, Arigony falava com os repórteres, informando o que havia ocorrido. Na frente da Kiss, peritos do IGP averiguavam as versões dos suspeitos, quatro pessoas. O sócios da boate Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Hoffmann, o músico Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor da banda Gurizada Fandangueira, Luciano Bonilha. Um dos momentos mais esperados foi a divulgação, pela Polícia Civil, do que realmente teria ocorrido dentro da boate. Coube a Arigony, que na época era delegado regional, falar. Segurando com a mão esquerda, que estava com uma luva de borracha, um pedaço de espuma, Arigony mostrou o que causou a morte de mais de 200 pessoas.

O material era tóxico e com o fogo liberou cianeto, mesmo veneno usado nos campos de concentração. “Tanto que a maioria das pessoas não apresentavam queimaduras. Elas morreram asfixiadas”, disse o delegado na época. “Quando a fumaça começou a ser liberada, foi um caos dentro da boate, ninguém via nada. O pior é que o cianeto congela os movimentos pouco antes da morte”. Daí, uma das vítimas estar ainda segurando os cabelos de uma outra mulher na esperança de escalar a parede e sair do local. Ambas estavam no banheiro. Elas foram para lá com outros, pois era a única luz que podiam ver e pensaram que seria a saída. O fogo foi causado por um artefato chamado sputink, usado em shows pirotécnicos ao ar livre e não em ambientes fechados.

Primeiro júri será em março

O Ministério Público Estadual (MP) entrou com recurso especial no Supremo Tribunal de Justiça para que Elissandro Callegaro Spohr (Kiko), sócio da boate Kiss, seja julgado em Santa Maria. O anúncio ocorreu na cidade da região Central na terça-feira, durante entrevista coletiva sobre o caso Kiss. No início de dezembro, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça determinou que ele fosse julgado na Comarca de Porto Alegre. “Nós sempre tivemos o entendimento de que o julgamento tem que acontecer aqui em Santa Maria com todos os réus ao mesmo tempo”, disse o subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais, Marcelo Dornelles.

Para o MP, a decisão da Primeira Câmara Criminal do TJRS vai contra a regra de unicidade de julgamento imposta pelos artigos 77, inciso I, e 80, ambos do Código de Processo Penal. Os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão e o outro sócio da boate, Mauro Hoffman, estão com julgamentos marcados para dia 16 de março, no Centro de Convenções da UFSM. A ideia, segundo Dornelles, é que o recurso seja atendido em espécie de liminar para que não haja atraso no julgamento. Enquanto o MP recorre do desaforamento de Spohr, outros dois réus entraram com o mesmo pedido de Spohr no Tribunal de Justiça. Marcelo de Jesus dos Santos espera o resultado do seu pedido.

A advogada do músico, Tatiana Vizzotto Borsa, disse esperar que o TJRS julgue o mais breve possível o mérito do pedido de desaforamento, que foi enviado no dia 9. Ela disse que o objetivo é que o seu cliente também seja julgado fora de Santa Maria, como o que está previsto para o empresário Elissandro Spohr. A advogada informou que espera que ainda neste mês ou no início de fevereiro o tribunal julgue o pedido. O outro pedido foi do advogado de Mauro Hoffmann, Bruno Menezes, que também requereu, na quinta-feira, o desaforamento no Tribunal de Justiça do RS. Menezes também está recorrendo da última decisão do Supremo Tribunal Federal que manteve júri popular para todos os acusados.

O defensor disse aguardar que o STF julgue o pedido para que Hoffmann seja julgado por crime culposo (quando não há a intenção de matar), pois o caso está sendo tratado como doloso (quando existe intenção). “Caso este pedido seja negado, pretendo usar todas as instâncias possíveis para que meu cliente não vá a julgamento em Santa Maria, no dia 16 de março”, afirmou. “Seguimos acreditando que o crime foi culposo.” O advogado de Elissandro Spohr, Jader Marques, disse que tanto a defesa quanto Kiko querem que o julgamento ocorra ainda neste ano. O desaforamento, salientou o defensor, é a aplicação de um dispositivo jurídico.

Ele disse esperar que as famílias entendam o desdobramento técnico-jurídico e permitam que o júri seja na Capital. “Tanto que pedimos às famílias para não recorrerem da decisão”, disse. “Os outros réus, como os da banda gurizada Fandangueira, protocolaram os pedidos para que o júri fosse em Santa Maria, já o Kiko, desde que saiu da prisão, 90 dias após o ocorrido, não retornou mais a Santa Maria.” O pedido, salientou Jader, leva em conta a segurança de acusado e defensor, algo facultado pela lei. “Quando existe o risco de perturbação da ordem e de perigo a réu e defensor, como é o caso, pois seria necessário um esquema de segurança enorme. E em Santa Maria, uma pesquisa mostrou que 70,9% das pessoas da cidade têm alguma vinculação com o fato. Nesses casos, a lei permite o desaforamento.”

Gustavo Nagelstein, defensor do produtor da Gurizada Fandangueira, Luciano Augusto Bonilha Leão, disse que após assumir o caso, há cerca de um ano, buscou resolver a situação o mais rápido possível. Segundo ele, Bonilha também não “suporta mais a situação e que ir a júri”. Nagelstein disse ter entrado em contado com o juiz de Santa Maria e deixado claro que o produtor iria contribuir para que o júri fosse realizado o mais rápido possível. “Uma decisão tirou o julgamento de um dos réus de Santa Maria, mas a vontade de Bonilha é diferente. Ele quer ser julgado em Santa Maria”, garantiu o advogado. “Nós acreditamos que a comarca dessa cidade é o local mais justo para Bonilha ser julgado. Apesar de ser uma tragédia internacional, sempre quisemos que a sociedade de Santa Maria resolvesse o caso.”

Sobreviver e seguir vivendo

 

Por Laura Gross (Foto: Renato Oliveira/Especial CP)

Pouco menos de 200 quilômetros é a distância que separa as cidades de Santa Maria e Manoel Viana. Na noite de 26 de janeiro, Delvani Rosso, 27 anos, saiu da sua cidade natal e viajou 174 quilômetros para chegar à boate Kiss e encontrar o irmão, Jovani, e outros cinco amigos. A noite era de festa, dança e reunião de amigos que moravam longe. Mas na madrugada de 27 de janeiro, Delvani quase perdeu a vida. Ele é um dos 680 sobreviventes da tragédia que matou 242 pessoas.

O local em que Delvani marcou de encontrar e matar a saudade dos amigos, não tinha saídas de emergência e os extintores de incêndio estavam todos vencidos. O labirinto que era a boate Kiss dificultou a saída das mais de mil pessoas que estavam no local naquela noite. “Estávamos em três, mais ou menos, no camarote da Kiss. Não conseguimos ver quando o fogo começou, mas era possível que algo estivesse acontecendo, principalmente porque as pessoas caminhavam em direção à saída. Nesse momento, as luzes ainda estavam acesas. Nos demos as mãos e começamos juntos, para não nos separarmos, a fazer o mesmo, ir até a porta.”

Fração de segundos. Foi assim que Delvani resumiu a tentativa de sair da boate, a percepção do que estava acontecendo, a escolha por seguir um caminho até a porta e o desmaio. A boate Kiss estava com as janelas dos banheiros lacradas, tinha apenas uma porta de saída, que era isolada por barras de ferro, e não contava com nenhuma rota de fuga em caso de incêndio. A desorientação das pessoas sobre a saída do local, o pânico generalizado por conta da escuridão e do fogo e a tontura causada pela fumaça tóxica fizeram com que o ambiente fosse comparado a uma câmara de gás na época do ocorrido. “Eu demorei pra entender o tamanho da gravidade do que estava acontecendo. Vi muitas pessoas andando para um determinado lugar, tentei segui-las, tudo isso de cabeça baixa pois a fumaça era muito forte e o calor que vinha do teto fazia com que ficasse muito quente lá dentro. Foi quando me dei conta que aquele trajeto me levaria até os banheiros e de lá eu não teria como sair. Senti que estava aos poucos desmaiando. Quando caí a primeira vez, minha sensação era de que meu corpo estava queimando, mas meu pensamento estava exclusivamente em sair lá de dentro”.

Delvani saiu, não lembra exatamente como, mas sabe que por um momento abriu os olhos quando estava deitado na calçada em frente à Kiss. Foi nessa hora que escutou algum voluntário da área médica gritar: “Essa morreu. Vamos ver se esse aqui está vivo e vamos levá-lo”. Essa fala referia-se às vagas disponíveis nas ambulâncias para que as vítimas pudessem ser levadas a hospitais do município. Uma menina, que hoje ninguém sabe quem era, faleceu antes de os médicos conseguirem ajudá-la e foi assim que o jovem de Manoel Viana conseguiu chegar até o hospital. “A cena era de guerra. Lembro dos gritos, das pessoas gritando de dor, das famílias gritando de desespero. Mas não consegui lembrar mais de nada depois que as enfermeiras começaram a tirar a minha roupa. Minha pele saía junto com cada pedaço de camisa.” Delvani dormiu. Ficou um mês em coma. Demorou um mês até acordar e descobrir que dos seis amigos, três morreram. Os três amigos e mais 239 jovens. A ficha demorou a cair, o garoto que na época tinha 20 anos, havia tido a chance de recomeçar a vida.

“Tenho um propósito maior, uma missão para cumprir. Sinto que se estou aqui é porque ainda tenho algo que preciso fazer. Talvez tenha vindo para ajudar apessoas, por isso estou tentando cursar medicina. A tragédia mudou minha vida e a forma como eu a vejo.”

Sonhos

Falar com os sobreviventes, familiares e pessoas que têm qualquer ligação com a tragédia da Boate Kiss, é fazer o tempo voltar àquele dia 27 de janeiro de 2013. O relato de cada um faz com que as lembranças nos levem até aquela madrugada. E as lembranças, que são tantas, principalmente para os sobreviventes, estiveram presentes, inclusive, durante os sonhos de Delvani enquanto esteve em coma por 30 dias. Conforme o jovem, as histórias que passavam por sua mente durante o período em que esteve dormindo no hospital eram contados sob o viés de quem estava diariamente precisando se salvar, de alguma briga, de uma guerra ou até da própria boate em chamas.

Mas os sonhos, como relatou Delvani, não eram sempre ruins, principalmente porque em todas as lembranças ele conseguia sair vivo. As histórias tinham personagens e, assim como na vida real, os amigos, a família e Deus eram os protagonistas. Delvani é categórico ao dizer que se não fossem estes três pilares, jamais teria conseguido vencer qualquer batalha. “O auxílio, o apoio e o carinho deles foi fundamental. Lembro quando meu irmão me contou o que aconteceu, enquanto eu ainda estava no hospital… só lembro as lágrimas escorrendo pelo meu rosto e eu ali, parado, sem conseguir fazer nada. A dor foi muito grande.” A rotina de cuidados com quem ficou é intensa desde 2013. Para os feridos, foram necessários muitos curativos e remédios, que até hoje são tomados. Para os pais, o cuidado maior é mental. Rosane Pendeza Callegaro usou a rede social para desabafar: “Desde 27 de janeiro de 2013 vamos sobrevivendo, dia após dia, às vezes mais fácil, às vezes muito difícil. Nós não temos mais aquela perspectiva de futuro: o Ruan era nosso futuro. E tem horas que a gente acha que vai pirar, e o poder que a gente tem que ter na nossa mente tem que ser muito grande. Às vezes tu tem que parar, respirar e pensar ‘vai que tu consegue’, mesmo sabendo que tu não vai conseguir. Então eu tenho respirado muito, parado muito, pra que eu consiga controlar a minha mente, porque é muito difícil”. Rosane é mãe de Ruan, morto no incêndio da Boate Kiss.

A necessidade de parar, respirar e pensar também começou a fazer parte da vida de Flávio Silva, pai de Andrieli Righi da Silva, vítima da tragédia. Ele e a esposa Ligiane Righi da Silva, junto com a filha mais nova do casal, Gabrielle Righi da Silva, tentam deixar a dor de lado e fazer com que apenas as lembranças boas permaneçam. Mas, por vezes, a busca incansável para que a rotina volte ao normal faz o pai “cair”, principalmente no aniversário da tragédia, quando parte do Brasil revive a dor daquele fim de semana. Flávio é presidente da Associação de Vítimas e Familiares da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e as ações realizadas anualmente em 27 de janeiro são de responsabilidade dele.

Assim, as imagens dos jovens desesperados tentando quebrar as paredes da boate para salvar quem estava preso nas chamas, a dor dos pais a procura dos filhos dentro do estacionamento do supermercado localizado em frente à danceteria, as listas dos nomes das vítimas divulgadas nos hospitais e a chegada dos corpos ao Centro Desportivo Municipal para velório voltam frequentemente à lembrança de todos que, de alguma forma, viveram o 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria. D

e lá pra cá, a vida andou, mas o pesadelo continua. De outra forma, mas doendo pela perda de um filho, de um irmão, de um amigo, de um namorado. “A gente sabe que o tempo passou. Já se passaram praticamente sete anos, mas nosso relógio biológico está parado no dia 27 de janeiro de 2013. Não é fácil pra gente, é uma batalha diária. Como dizem, temos que matar uma gazela por dia e ainda cuidar para não ser devorado pelo leão que está atrás da mesma presa. Nossa luta é diária e uma batalha muito dura, a gente tem lutado para sobreviver, essa é a verdade. A tragédia está sempre nos marcando, de todas as formas, nos acontecimentos, nas lembranças e nas decisões do Judiciário e isso faz com que a gente sinta que estamos parados naquele dia.”

Conforme Flávio, a rotina desgastante de quem está à frente de uma associação que luta constantemente por justiça faz com que somente na hora de dormir a cabeça fique descansada. Mas o pai de Andrieli tem uma grande preocupação: “Eu não sei qual vai ser o momento em que vou descobrir o botão que liga e desliga da tragédia. Principalmente que desliga a minha cabeça de pai”.

Janeiro branco

Na rede social “Kiss: Que Não Se Repita”, foi lançada a campanha Janeiro Branco, em alusão aos sete anos da tragédia. Dois tipos de ações estão sendo programadas pelos organizadores Kelen Ferreira, André Polga, Bel Bonotto e Natalia Venturini. A primeira campanha tem seu viés no Janeiro Branco, mês de cuidado com a saúde mental, focando nos sobreviventes do incêndio e em como eles encontraram ajuda para se reerguerem depois do trauma que deixou marcas emocionais e físicas.

No dia 2 de janeiro começaram a ser publicadas na rede social vídeos com depoimentos dos sobreviventes sobre suas marcas e onde buscaram forças para seguirem seu caminho, cuidando da saúde mental, com ou sem a ajuda de um profissional. Eles relatam, à sua maneira, como encontraram apoio e forças, que muitas vezes vêm de familiares, amigos e da fé. A intenção da campanha, na primeira etapa, é fazer com que as pessoas não deixem de “buscar por acolhimento” e saibam que há opções de ajuda para que a “saúde mental se mantenha firme”, por mais que traga dores e marcas que não vão sumir.

Durante os outros meses, os organizadores vão focar na fala de pais e amigos de vítimas, que trarão seus depoimentos sobre como é lidar diariamente com a perda e como é o fortalecimento mental para superar a tragédia. “Nesta parte da campanha, já deixando em voga a #Kiss7Anos, mostraremos que quem passa pela dor da Boate Kiss não tem só marcas externas, como os sobreviventes, mas também marcas internas, que doem profundamente e é quase sufocante conseguir sobreviver com elas”. Além disso, estarão atuantes durante o julgamento.

A organização enfatiza que a ideia é fazer de 2020 um ano marcante, principalmente por conta do julgamento, que assinala um momento em que uma parte de um ciclo da tragédia será fechado. “Acreditamos que nossa dor tem nos fortalecido em busca não só de justiça, mas em fazer com que a gente se torne mais resiliente e queira, através da nossa mensagem nesses sete anos do incêndio na Boate Kiss, mostrar para as pessoas que cuidar da saúde mental é necessário para uma melhor qualidade de vida e para nos dar forças pra lutar. Cada um tem a sua luta e queremos mostrar que todas são válidas.”

Temor pelo desfecho

Por Renato Oliveira

Pai de uma das vítimas do incêndio na boate Kiss, Ogier Rosado diz temer que os réus sejam condenados e, em seguida, recorram e ganhem a liberdade. “Os réus recebem a pena máxima e recorrem logo ali", comentou Ogier, pai de Vinícius Rosado, que morreu aos 27 anos. Ogier destacou que as irregularidades em eventos continuam sendo cometidas. “As autoridades notificam, multam, lacram, mas os proprietários pagam a multa e seguem trabalhando”, comentou. “Os culpados até podem ser condenados, mas a lição não foi apreendida”, afirmou. Rosado fundou a Associação AH Moleque, que homenageia o filho e seus amigos Danilo Jaques Brauner, Luana Vianna e Vagner Marostega, todos mortos no incêndio da casa noturna.

 
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