Caos logístico

Caos logístico

Desarranjo ocasionado pela pandemia provocou escassez de contêineres, prejudicando exportações e encarecendo os custos do agronegócio

Por
Patrícia Feiten

Falta de contêineres de carga. Navios empacados em filas por vários dias, à espera de espaço para atracar nos portos. Embarques cancelados ou adiados. Depósitos abarrotados de mercadorias que deveriam estar em algum lugar do mundo. De Xangai a Rio Grande, esse pesadelo logístico passou a ser o “novo normal” de quem opera no comércio internacional, e os segmentos exportadores do agronegócio gaúcho não escaparam dos seus impactos. Subproduto da pandemia de Covid-19, a crise no transporte marítimo não apenas inflou os custos dos fretes, como também dificulta o planejamento dos negócios nas cadeias de suprimento.

Um dos setores atingidos é a indústria de carnes. O diretor de mercados da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), Luis Rua, diz que, antes da pandemia, em torno de 85% dos navios atracavam nos portos brasileiros dentro da janela de tempo esperada. Hoje, esse percentual está entre 30% e 35%. “Isso faz com que a carga fique parada mais tempo nos portos”, afirma. Segundo o executivo, os mais prejudicados são os pequenos frigoríficos, que não têm contratos de longo prazo com as companhias de navegação para os embarques. “No mercado spot, os custos aumentaram dez vezes em algumas rotas”, destaca Rua.

Ainda que em ritmo lento, o setor continuou exportando. No caso da carne suína, o Rio Grande do Sul enviou ao exterior 277,51 mil toneladas de janeiro a novembro deste ano, um aumento de 16,02% na comparação com o mesmo período de 2020. A recente habilitação de três plantas localizadas no Estado para vendas à Rússia traz expectativas de resultados melhores em 2022, avalia a ABPA. “Há bons números em relação às exportações, mas com um custo relacionado à logística bastante alto”, observa Rua.

A avicultura também deve encerrar o ano com um balanço positivo das vendas externas. De janeiro a novembro, o setor exportou 645,84 mil toneladas de carne de frango (processada e in natura), um avanço de 4,5% ante o mesmo período de 2020, de acordo com a Associação Gaúcha de Avicultura (Asgav). Esse desempenho, no entanto, seria melhor se as empresas não tivessem enfrentado a falta de contêineres e navios para enviar as cargas, afirma o presidente da entidade, José Eduardo dos Santos. “A nossa média de exportações até 2018-2019 era em torno de 730 mil toneladas (por ano)”, explica. “O Rio Grande do Sul exporta 40% da produção; se tivermos um entrave considerável, o mercado interno não absorve tudo da noite para o dia.”

Segundo Santos, as indústrias gaúchas exportam em média 60 mil toneladas por mês, e os atrasos nas remessas reduziram as margens de lucro. “O produtor é obrigado a estocar e, quando não tem uma estrutura grande, têm de deixar no armazém no porto, triplicando o custo dessa operação”, diz o presidente da Asgav. Ele lembra que, no primeiro semestre, o setor sofreu também embargos da União Europeia e da Arábia Saudita, que suspenderam as compras de alguns frigoríficos brasileiros. “Muitas empresas conseguiram redirecionar (a produção) para outros mercados, agora a Rússia está comprando de novo frango brasileiro”, afirma Santos.

O estresse logístico também afetou a indústria de tabaco. Até outubro, o setor exportou 375.440 toneladas, um volume 6,3% inferior ao do mesmo período de 2020, de acordo com o presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (Sinditabaco), Iro Schünke. “Nos primeiros meses deste ano, foram embarcados estoques que não conseguimos embarcar em 2020 já em função da logística”, afirma. Schünke explica que tradicionalmente a produção é enviada ao exterior a partir de junho e, com o atraso nas remessas, as empresas acabaram lançando, na contabilidade da safra atual, as vendas do ciclo passado.

O tabaco brasileiro tem como principais destinos os países europeus, China, Estados Unidos, Emirados Árabes, Rússia e Indonésia. Em julho, agosto, setembro e outubro, os volumes exportados caíram 28%, 48%, 47% e 14%, respectivamente, na comparação com os mesmos meses do ano passado. Segundo Schünke, 86% dos embarques são feitos pelo Porto de Rio Grande, e a longa espera por navios obriga os exportadores a gastos extras com o aluguel de depósitos para armazenar cargas. “A partir de janeiro, começa a ser comprada a safra de 2022 e ainda vai ter muito tabaco em estoque que é desta safra”, destaca.

Na expectativa de medidas de alívio, entidades do agronegócio, através da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), vêm buscando diálogo com o governo e com as companhias de transporte. Mas, como se trata de um problema global, a percepção dos exportadores é que há pouco a fazer em curto prazo. “A gente vem buscando otimizar as cargas, buscando aproximação com os armadores, para continuar exportando”, afirma Rua, da ABPA.

Como o mundo ficou a ver navios

Escassez de contêineres em nível global está relacionada à retomada econômica após paralisação causada pela pandemia

Grande exportador de alimentos, Brasil é um dos países mais prejudicados pelo desarranjo nas cadeias de suprimento. Foto: Jorgito Santos / Divulgação / CP

Tudo começou por volta do terceiro trimestre de 2020. Apelidado de “containergeddon”, em uma referência aos filmes-catástrofe norte-americanos, o caos que tomou conta dos portos é resultado da retomada do comércio mundial após meses de paralisação causada pela pandemia de Covid-19. A escassez de contêineres para exportação se deve à demanda por transporte marítimo e à concentração das companhias de navegação em grandes portos da Ásia, da Europa e dos Estados Unidos, o que deslocou mais navios e equipamentos para essas rotas, de acordo com especialistas em logística. Uma melhora é esperada apenas a partir do segundo semestre do próximo ano.

Como um efeito cascata, o choque de demanda iniciado em 2020 gerou reflexos que perduram até hoje, explica Thiago Guilherme Pêra, coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão em Logística Agroindustrial da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-LOG), unidade da Universidade de São Paulo (USP). “A injeção elevada de liquidez nas economias globais, os auxílios diversos da Europa, dos Estados Unidos, acabaram fomentando esse crescimento em V, as pessoas começaram a consumir mais”, afirma Pêra.

Uma mostra recente da dimensão do caos logístico veio da costa oeste americana. No dia 12 de novembro, 83 navios-contêineres aguardavam em fila para descarregar mercadorias nos portos de Los Angeles e Long Beach. Na ocasião, o tempo médio de espera havia atingido o recorde de 17 dias, de acordo com a agência de notícias Bloomberg. “O que está acontecendo é que vários países estão demandando mais contêineres, e a gente observa um tempo de fila maior nos terminais em função desse congestionamento de navios em algumas regiões importantes do globo”, diz Pêra.

Outros gargalos tornam o cenário ainda pior. Em março deste ano, por exemplo, um navio graneleiro ficou encalhado por seis dias no Canal de Suez, no Egito, bloqueando o tráfego em uma das principais travessias marítimas do mundo. Em agosto, a detecção de um caso de Covid-19 acarretou o fechamento de um terminal do porto chinês de Ningbo-Zhoushan, um dos maiores do mundo.

Do lado ocidental, o impacto do Brexit, que levou parte da mão de obra no setor de transportes do Reino Unido a regressar a seus países de origem, gerou uma crise dentro de outra. “Estão faltando em torno de 100 mil motoristas (de veículos pesados) para retirar as cargas nos portos”, diz o diretor comercial do Tecon Rio Grande, Rene Wlach. Ele destaca ainda que os principais portos dos Estados Unidos, os de Los Angeles e Long Beach, não operam no período da meia-noite às 6h e nem aos domingos. “Grandes redes americanas, como Walmart e Amazon, estão com os armazéns lotados e não dão conta de retirar as cargas no porto. Consequentemente, o navio que está parado na barra não consegue descarregar e aí começa toda essa confusão”, explica.

Os protocolos de segurança adotados para conter a pandemia também reduziram a produtividade nos portos, armazéns e terminais interiores, segundo o Centro de Navegação Transatlântica (Centronave), associação que reúne 20 armadores atuantes no Brasil. “Um contêiner que usualmente fazia quatro ciclos completos no Transpacífico (Ásia-Costa Leste dos EUA) hoje só consegue completar cerca de 2,5 ciclos, dada a retenção desses equipamentos ao longo de toda a cadeia”, diz a entidade, em comunicado. Para enfrentar o problema, o Centronave afirma que os armadores vêm operando no limite da capacidade, “adiando a desativação de embarcações mais antigas e até mesmo executando reparos antieconômicos em contêineres danificados com o objetivo de mitigar a atual crise”.

Para o economista-chefe da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Antônio da Luz, o Brasil é um dos mais prejudicados pelo desarranjo nas cadeias de suprimento. Como importa pouco, o país acaba sendo uma rota menos atrativa para as companhias marítimas e, por isso, não encontra navios e contêineres para exportar suas mercadorias. “(O armador) tem de ir pingando, um pouco no Brasil, um pouco na Argentina, um pouco no porto do Uruguai, até desembarcar todos os contêineres e embarcar o navio de novo com outros contêineres”, observa Da Luz.

No caso do Rio Grande do Sul, outra dificuldade deve-se ao fato de algumas companhias marítimas arrendarem terminais em outros portos brasileiros, avalia o coordenador da Comissão de Infraestrutura e Logística da Farsul, Fábio Avancini Rodrigues. “A empresa prioriza terminais onde opera como proprietária. Por esse fato, os contêineres, em vez de ficar em Rio Grande, muitas vezes estão indo para Santa Catarina”, afirma.

Demora nos portos e cargas acumuladas

Com capacidade de abate de 200 mil frangos por dia, a Agrosul Foods produz 3,5 mil toneladas de carne de frango por mês. Metade desse volume é enviada ao mercado externo, sendo a maior parte para a China, o Reino Unido e países da União Europeia. A empresa de São Sebastião do Caí não escapou do caos logístico que engolfou de maneira generalizada cadeias produtivas em todas as partes do mundo. 

Em meio à disputa global por navios e contêineres, o tempo para embarcar suas cargas e fazê-las chegar aos destinos aumentou e os custos das operações de transporte subiram de 70% a 100%, dependendo do país importador, segundo o gerente de logística da empresa, Patrick Kinast. 

“Antes da pandemia, tu tinhas navios que saíam semanalmente para diferentes destinos, se organizava para retirar um contêiner em um ou dois dias, carregar, entregar no porto. Em três ou quatro dias, ele estava saindo da unidade rumo ao destino”, explica Kinast. “(Agora), tem de carregar o contêiner antes, às vezes fica uma semana a mais parado no Porto de Rio Grande”, observa. 

Efeito da crise: no pátio da Agrosul Foods, no Vale do Caí, caminhões aguardam pelo carregamento. Foto: Patrick Kinast / Divulgação / CP

Com a crise logística, o fluxo de exportações da empresa foi impactado. Uma carga que partia rumo à China e antes levava de 35 a 40 dias para chegar ao porto de destino agora demora até 50 dias, exemplifica o gerente. No caso da Europa, a operação era de 20 a 25 dias e hoje leva um mês. “Há relatos de navios parados há mais de 10 meses nos portos chineses para descarregar mercadorias. Isso acabou retardando o retorno desses navios para carregarem aqui, gerou uma bola de neve”, afirma Kinast.

A demora nos embarques se traduz em custos maiores. Segundo Kinast, o preço de um contêiner refrigerado de 40 pés (reefer) para exportação do Brasil à China saltou de 4 mil dólares para até 9 mil dólares. As dificuldades no escoamento das mercadorias resultaram em um acúmulo de cargas em instalações da empresa e armazéns, elevando também as despesas com armazenagem e energia elétrica para a conservação dos produtos. Kinast observa que, tradicionalmente, as indústrias do setor mantinham em estoque 30% da produção. “Hoje, já estamos com praticamente 70% da produção mensal parada, estocada (na planta)”, diz.

Esse cenário de dificuldades, afirma o executivo, levou frigoríficos como a Agrosul a reduzir de 20% a 30% a produção de frango na metade do ano e a direcionar parte dos volumes ao mercado interno, como forma de gerar fluxo de caixa. “A gente teve de adequar os processos, porque os preços do milho e da soja (usados na composição das rações animais) aumentaram muito, onerando o nosso custo produtivo”, resume.

Terminal de Rio Grande reduz movimentação

Maior terminal de contêineres no Estado, o Tecon Rio Grande, operado pelo Grupo Wilson Sons no Porto de Rio Grande, movimentou de janeiro a novembro deste ano 569 mil TEUs (unidade equivalente a um contêiner padrão de 20 pés, ou seis metros de comprimento), o que corresponde a um total de 338.434 equipamentos. No ano passado, já em plena pandemia, a estrutura trabalhou com 675.227 TEUs (404.721 contêineres), uma redução de 2,5% na comparação com a movimentação em 2019. Com capacidade anual de 1,4 milhão de TEUs, o terminal atende às principais linhas marítimas que conectam o Brasil aos mercados internacionais.

Segundo o diretor comercial do Tecon Rio Grande, Rene Wlach, a desaceleração das operações de importação acabou acarretando dificuldades para as exportações de tabaco, móveis, couro e madeira pelo terminal gaúcho. “Chegando menos contêineres (com mercadorias importadas), você não tem contêineres vazios, esses setores não tinham como escoar as cargas, porque os navios começaram a cancelar as escalas em Rio Grande”, explica o executivo. No caso das exportações de cargas refrigeradas – como carnes de frango e suína e sucos de laranja produzidos no Estado –, o Tecon registrou queda de 10% de movimentação desde o ano passado.

Wlach (acima), do terminal Tecon Rio Grande, afirma que exportações de tabaco, móveis, couro e madeira foram prejudicadas. Foto: Jorgito Santos / Divulgação / CP

Para contornar o problema da falta de equipamentos, Wlach relata que alguns exportadores vêm recorrendo a medidas inusitadas, como o embarque em navios de carga geral, conhecidos como break bulk. Um exemplo, relata o executivo, foi a solução encontrada por exportadores de arroz da região de Pelotas, que neste ano se uniram a indústrias de painéis de madeira para construção (plywood) para ratear o custo do frete em porões dessas embarcações e enviar mercadorias ao Peru. Essas alternativas de transporte, porém, acabam sendo limitadas pela capacidade financeira das empresas. “Uma indústria pequena tem de procurar o armador, fazer um relacionamento, embarcar dois, três contêineres, uma semana sim, uma não, para não perder seus clientes lá fora”, observa Wlach.

Concentração no mercado

De acordo com dados da consultoria de navegação francesa Alphaliner, existem hoje 6.309 navios porta-contêineres em operação no mundo, com capacidade de movimentação de 25,293 milhões de TEUs (unidade equivalente a um contêiner de 20 pés).

A maior parte da produção dos equipamentos é concentrada na China. Conforme a consultoria britânica Drewry, os três maiores fabricantes, China International Marine Containers (CIMC), Dongfang International Container e CXIC – detêm mais de 80% do mercado.

Foto: Porto de Rio Grande / Divulgação / CP

Contêiner nas alturas onera transporte

Preço médio do frete em estrutura de 40 pés no mercado spot quadruplicou desde o início da pandemia de Covid-19

Símbolo do comércio globalizado – e agora da desordem logística que o estremece –, o contêiner está no centro da disparada de custos do transporte internacional. O preço médio do frete em contêiner de 40 pés no mercado spot, que antes da pandemia era de 2 mil dólares, estava em 9,292 mil dólares no dia 16 de dezembro, segundo a consultoria inglesa Drewry, especializada na indústria marítima. O valor representa um aumento de 169% em relação à mesma época no ano passado.

De acordo com a consultoria, que monitora semanalmente preços de frete de oito rotas marítimas entre o Leste e o Oeste para calcular seu World Container Index (Índice Global de Contêineres), o translado de um equipamento do porto de Xangai, na China, até o de Roterdã, na Holanda, custa hoje 13.609 dólares, valor 197% superior ao de um ano atrás. O transporte de Xangai a Los Angeles, nos Estados Unidos, subiu 148% no mesmo período, para 10.180 dólares.

Gastos com sobre-estadia e devolução fora do prazo foram registrados nos últimos meses, aponta relatório. Foto: Porto de Rio Grande / Divulgação / CP

Outro estudo, publicado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad, na sigla em inglês) em novembro passado, mostra a escalada dos fretes para a América do Sul. De acordo com o relatório Análise Transporte Marítimo 2021, o custo do transporte de Xangai ao Porto de Santos, por exemplo, passou de 959 dólares por contêiner em julho de 2020 para 9.720 dólares no mesmo mês deste ano.

Com a escassez de equipamentos e o congestionamento nos portos, o relatório da Unctad destaca que quem operou no comércio exterior durante a pandemia também gastou mais com cobranças por sobre-estadia (demurrage) de contêineres nos terminais e devolução fora do prazo (detention). Nos 20 maiores portos do mundo, esse custo dobrou no período analisado, chegando à média de 666 dólares por contêiner. A análise afirma que as taxas de transporte devem continuar altas nos próximos meses, “alimentadas pela forte demanda sustentada contra um panorama de crescente incerteza quanto ao abastecimento e preocupações sobre a eficiência dos sistemas de transporte e operações portuárias”.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895