Clima afeta produtividade do pinhão

Clima afeta produtividade do pinhão

As florestas de araucárias do Rio Grande do Sul, nos Campos de Cima da Serra, sofreram com os efeitos da estiagem e tiveram reduzida a produção do alimento tão apreciado pelos gaúchos

Semente amadurecida dentro da pinha, o pinhão só pode ser comercializado pelos extrativistas a partir do dia 15 de abril de cada ano no Rio Grande do Sul, sendo que seu consumo ocorre mais tradicionalmente durante o outono e o início do inverno

Por
Camila Pessoa*

Os habitantes da Região Sul, onde o inverno é mais acentuado, têm grande interesse pelo pinhão, a semente das araucárias (guardadas dentro da pinha, já que a árvore é do grupo das gimnospermas). Bastante resistente e remanescente da era glacial, a araucária pode ter sua produção de pinhas influenciada pela falta ou pelo excesso de chuvas, o que de tempos em tempos faz com que a safra do alimento, para ser consumido puro ou em preparações culinárias, diminua.

Quase encerrada no Rio Grande do Sul, a colheita do pinhão no Estado iniciou no dia 15 de abril (uma portaria do Ibama, de 1976, determina que as sementes não podem ser comercializadas antes desta data) e mostrou diferenças entre os municípios dos Campos de Cima da Serra, principal região produtora. A engenheira florestal da Emater/RS-Ascar Adelaide Ramos afirma que apenas as variedades mais tardias de pinhão, como a cajubá, ainda não foram colhidas. Ela relata que, enquanto as estimativas se concretizaram em alguns municípios da Serra, maior região produtora, em outros houve quebra de safra. É o caso de São Francisco de Paula, maior produtor do Estado. Com expectativa de colheita de 120 toneladas, volume alcançado no ano passado, o município teve quebra de 30% e seus 160 extrativistas colheram 80 toneladas este ano. Em compensação, as 70 famílias extrativistas do município de Muitos Capões colheram 120 toneladas, confirmando as expectativas e levando a um acréscimo de 20% em relação à produção do ano passado, que foi de 90 toneladas. 

De acordo com a engenheira da Emater, isso se dá por conta da variabilidade de produção característica das araucárias, que também pode ser afetada por seca ou muita chuva na primavera, período de fecundação da planta. O pinhão leva em torno de dois anos e meio para estar pronto para a colheita e, segundo a engenheira, safras próximas à capacidade total das árvores costumam ocorrer a cada três ou quatro anos. Ramos também observou um aumento no número de extrativistas envolvidos na atividade. “A gente viu um incremento relacionado à questão do pós-pandemia, tem mais pessoas sem renda este ano”, explica. “Nas regiões produtoras o pinhão é importante para a renda das famílias e para o turismo”, ressalta.

Com relação à qualidade da colheita, a engenheira diz que o tamanho está bom, comparável à safra de 2021, com ressalva para a produção de alguns municípios, em que se observou uma diminuição de tamanho. Os preços variam entre R$ 5,00 e R$ 8,00 por quilo na venda direta do extrativista ao consumidor e entre R$ 7,00 e R$ 12,00 por quilo nos supermercados. Na venda dos extrativistas para atravessadores, como os feirantes da Ceasa, o preço pago variou de R$ 3,50 a R$ 4,00 por quilo. Ramos também ressalta que os extrativistas que conseguiram beneficiar o pinhão, vendendo-o moído ou em paçoca, por exemplo, comercializaram o produto por entre R$ 20,00 e R$ 28,00 o quilo. Os preços deste anos foram um pouco maiores que os do ano passado, mas não houve grande diferença. Em São Francisco de Paula, por exemplo, em 2021 os preços variaram entre R$ 4,00 e R$ 5,00 na venda direta ao consumidor. 

Adelaide Ramos conta ainda que a colheita de pinhão no Estado é totalmente manual. A semente é coletada do solo quando os pinhões debulham ou são derrubados com auxílio de utensílios como varas de bambu ou escalada nas árvores. As araucárias de onde são extraídos no Estado são de matas nativas ou plantadas como fonte de madeira. Não há plantações de araucárias no Rio Grande do Sul com finalidade exclusiva de produzir pinhões. Como a colheita está praticamente encerrada, o pinhão que ainda está disponível para a comercialização é aquele que ficou armazenado em câmaras frias. 

Vendas, agora, só entre os comerciantes com estoque

Segundo o feirante da Ceasa/RS Juliano Lauxen, o preço do pinhão na feira varia entre R$ 7,00 e R$ 7,50 o quilo. Lauxen afirma que a qualidade da semente está normal e que agora não há mais pinhão disponível para compra, por isso, apenas os feirantes que têm a semente em estoque estão vendendo e há menos disponibilidade. O feirante recebe uma parte do que é vendido em casa, dos extrativistas, e outra parte é colhida por sua própria família. Ele relata que os preços aumentaram este ano, porque a colheita do ano passado foi maior em volume, e que a banca vende mais no período das festas juninas e em dias chuvosos. 

Laureano Souza, que mantém banca na Ceasa, em Porto Alegre, diz que o movimento dos consumidores em busca do pinhão foi maior durante o isolamento social da pandemia. Foto: Laureano Souza / Arquivo Pessoal

Laureano Souza, também feirante da Ceasa, chega a afirmar que o consumo nos dias chuvosos é 50% a 60% maior. “Eu acho que é porque nesses dias o consumidor tem mais vontade, é quando o pessoal cozinha no fogão a lenha e se esquenta”, comenta. Vendedor na central há 37 anos, Souza também compra de produtores que levam a semente até sua casa e vende o produto na faixa de R$ 7,00 o quilo, organizando seu estoque de acordo com a demanda dos clientes, já conhecidos. 

De acordo com o comerciante, ainda é possível comprar pinhão de extrativistas, mesmo que pouco, mas o consumo está menor que no ano passado. “Ano passado estávamos na pandemia e acredito que por causa disso o consumo de pinhão foi maior, talvez por as pessoas estarem em casa”, relata o feirante. “Este ano tem menos pinhão, mas ano passado eu vendi mais fácil”, observa. 

Agroindústria beneficia a semente para panificação

Os efeitos do clima na safra de pinhão foram sentidos pela extrativista Marlei Zambelli, de São Francisco de Paula. Enquanto no ano passado a colheita foi excepcional, entre 6 e 7 toneladas - e não foi possível colher todo o pinhão - este ano ela foi apenas boa. “Colhemos 5 toneladas e tudo foi vendido”, relata. 

Além de coletar o pinhão, a extrativista e seu marido, José Eloir Paim, têm uma agroindústria onde a semente é colocada em conserva ou transformada em farinha para fazer bolachas, massas, bolos, croquetes e pastéis que são vendidos por encomenda ou nas feiras do agricultor e da Festa do Pinhão do município. Zambelli não reclama dos preços e diz que a rentabilidade foi semelhante. 

Marlei Zambelli processa o pinhão para fazer farinha, utilizada em pães e biscoitos, o que aumenta a renda da família. Foto: Marlei Zambelli / Arquivo Pessoal

A família trabalha na atividade há 13 anos, desde quando se mudou para uma propriedade com araucárias plantadas. “Aí a gente achou um lucro a mais colhendo pinhão”, relata a extrativista. O casal, que na época de colheita contrata um ajudante para subir nas árvores e derrubar as pinhas, já encerrou o processo, mas ainda tem árvores da variedade cajubá produzindo em seu terreno.

Compromisso pela preservação

Projeto da Universidade de Passo Fundo, iniciado há 30 anos, buscar proteger o papagaio-charão, ave que tem papel importante na dispersão das sementes das araucárias

Os papagaios-charão são uma espécie migratória considerada atualmente como em extinção, uma vez que se restrigem apenas aos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina e somam uma população que não ultrapassa mais do que 21 mil exemplares. Foto: Nêmora Prestes / Divulgação / CP

Há 30 anos, um grupo de pesquisadores vem estudando a relevância do papagaio-charão para a disseminação das araucárias, no sentido de preservar a espécie e conscientizar os brasileiros sobre a importância do pinhão. O Projeto Charão, da Universidade de Passo Fundo (UPF), desenvolve ações para preservar não só o papagaio-charão, mas também toda a fauna nativa do Rio Grande do Sul e as araucárias. Segundo o professor, pesquisador e fundador do projeto, Jaime Martinez, no início, o objetivo principal era descobrir para onde haviam ido, no fim da década de 1980 e início de 1990, os papagaios-charão que costumavam ocupar a Estação Ecológica de Aracuri-Esmeralda, no município de Muitos Capões, durante a safra do pinhão. “Na época estávamos terminando a graduação e nos interessamos nessa pergunta”, conta o pesquisador. O grupo, então, procurou pelos papagaios em florestas do Rio Grande do Sul. Ao não encontrar, foi a Santa Catarina e, entre os municípios de Painel, Urupema e Lajes, localizaram as aves nas florestas.

“E assim entendemos o que aconteceu: num raio de 20 a 30 quilômetros ao redor da Estação Ecológica de Aracuri, as araucárias deixaram de existir e os papagaios encontraram uma nova área de alimentação”, conta Martinez. “Desde os anos 90 eles saem do Rio Grande do Sul e vão até o planalto em Santa Catarina, onde ficam durante a safra de pinhões”, completa. 

“Isso para os gaúchos foi uma perda muito grande", lamenta o pesquisador e extensionista. Ele conta que os papagaios, que no inverno têm 90% de sua alimentação à base do pinhão, ajudam no processo de regeneração e dispersão das araucárias, ao derrubar as sementes no chão. “A relação é tão íntima que a nossa preocupação hoje em dia é que, se não houver esses pinheirais, eles não tenham um refúgio”, destaca o professor. 

O papagaio-charão também é a única migratória entre as 12 espécies de papagaio encontradas no Brasil: ela vai a Santa Catarina para encontrar alimento no outono e inverno e retorna ao território gaúcho todos os anos para reprodução. “Então é um duplo compromisso: precisamos cuidar que tenham pinhões em Santa Catarina e das áreas de reprodução aqui no Rio Grande do Sul” ressalta Martinez.

O professor lembra que hoje existem 80 espécies da fauna nativa que se alimentam direta ou indiretamente dos pinhões. Ele destaca a importância das araucárias no período entre março e agosto, quando não são encontrados frutos nas florestas, já que as frutíferas nativas produzem no final da primavera e no começo do verão. “A araucária preenche uma lacuna importante”, comenta. Com população de entre 20 e 21 mil aves, o papagaio-charão é considerado uma espécie ameaçada de extinção por ocupar uma área restrita, sendo encontrada apenas no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. 

É por isso que a prefeitura de Muitos Capões construiu uma estátua em homenagem à espécie na Estação Ecológica de Aracuri e que o Projeto Charão trabalha para preservar o papagaio e a flora nativa com ações como o Curso Resgate do Pinheiro Brasileiro, que busca ensinar sobre a importância econômica, cultural e gastronômica da araucária para o Rio Grande do Sul por meio de atividades multidisciplinares em escolas. Martinez conta que, além do Rio Grande do Sul, o curso já foi ministrado no Paraná, Santa Catarina, São Paulo e Minas Gerais. 

O Projeto também comprou uma área de floresta em Urupema por meio de uma campanha em escala mundial para arrecadação de recursos. A área foi transformada em uma floresta preservada em caráter perpétuo, garantindo 50 toneladas de pinhões por ano para a alimentação do papagaio-charão, papagaio de peito roxo e outras espécies da fauna. 

O Projeto Charão também faz um apelo para que sejam estabelecidas áreas plantadas de araucárias com produção voltada ao consumo humano. Isso já é realidade em pequenas propriedades em Santa Catarina e no Paraná, como relata Martinez. Algumas delas, inclusive, aproveitam a copa das araucárias para o plantio da erva-mate sombreada, de melhor qualidade e valor agregado que a comum. Porém, enquanto esse cultivo de araucárias não é melhor difundido, o professor faz um apelo para que os extrativistas deixem ao menos 30% das sementes para a alimentação da fauna.

*Sob supervisão de Nereida Vergara

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895