Clima extremo de norte a sul do Brasil

Clima extremo de norte a sul do Brasil

Chuvas torrenciais, enxurradas, temperaturas alcançando marcas históricas e estiagem são fenômenos deste começo de 2022 que, por causa das mudanças climáticas, devem ser cada vez mais intensos e frequentes

As tempestades concentradas normalmente não ajudam a aplacar o déficit hídrico que atinge grande parte do Rio Grande do Sul. Na foto, o Guaíba, um dos tantos mananciais da Região Metropolitana que está abaixo do nível normal.

Por
Taís Teixeira

O verão é a estação preferida de muitas pessoas. Porém, o calor escaldante vivido nas últimas semanas no Rio Grande do Sul tem causado mais preocupação do que satisfação. O Estado vem sofrendo com estiagem acompanhada de perdas em muitas áreas, como a agricultura, e fazendo com que mais de 300 municípios gaúchos decretassem estado de emergência. No entanto, essas intercorrências no cenário climático não são isoladas no RS. Enquanto vivemos o verão mais quente dos últimos sete anos, seguido de um déficit hídrico acentuado, acompanhamos o sul da Bahia padecer debaixo de fortes temporais convertidos em alagamentos, prejuízos materiais e na perda de vidas. Todos esses fenômenos têm explicação no clima, que está mudando e impactando não só o Brasil, mas o mundo.

O professor de Climatologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e diretor substituto do Centro Polar e Climático da mesma instituição, Francisco Aquino, explica que as mudanças climáticas são uma realidade. Dessa forma, fenômenos do tempo e do clima já estão alterados, chegando, em alguns momentos, a extremos que, em algumas regiões, ganham efeitos maiores. “Esse é o contexto do planeta e por isso há queimadas, estiagens, ondas de calor e ondas de frio pelo mundo”, mencionou. Aquino enfatizou que vivemos a década mais quente deste século, sendo os últimos sete anos os mais quentes. “Melhor dizendo, são os últimos 2021 anos mais quentes, já há dados para afirmar isso”, destacou

O climatologista relatou que há mais ou menos 24 meses, a América do Sul, sobretudo o Brasil, sofre influência do La Niña, fenômeno natural que provoca diminuição das chuvas no centro do Brasil em direção ao Uruguai, o que se reflete em menor volume de chuvas no sul do Brasil e aumento de precipitação no Norte, em especial no período de verão. “Por isso que observamos chuvas muito concentradas, acima da média, em setores da Amazônia, no estado de Manaus, Tocantins, entre outros, e no sul da Bahia”.

Na interpretação do professor, também a associação da formação da chamada Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), corredor de umidade entre Amazônia, São Paulo e Minas Gerais, que no mês de dezembro e início de janeiro esteve localizado em direção à Bahia, mais três eventos de ZCAS extremamente intensos e robustos, foram responsáveis pelas chuvas muito acima da média nesses estados e, por consequência, pela falta de chuva no centro-sul do Brasil. “A ZCAS é um fenômeno que ocorre no Brasil no verão e é responsável por precipitações mais robustas no período da monção da América do Sul ou da monção do Brasil, que é a fase de chuvas de verão”, descreveu.

Aquino reforça que os eventos extremos associados a esses fenômenos estão aumentando a cada ano e a cada década. “Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e de outros institutos no Brasil indicam que a mudança climática é o cenário, o palco de fundo dos eventos extremos.”

A meteorologista da MetSul, Estael Sias, esclarece que as frentes frias estacionárias na Zona de Convergência do Atlântico Sul, que têm provocado os excessos de precipitação no começo do ano no Sudeste e também no sul da Bahia, são fenômenos típicos desta época do ano. “É normal chover bastante, de forma persistente, com grandes volumes nos estados do sudeste do Centro-Oeste e no extremo sul do Nordeste, pegando a Bahia, especialmente.” Sias disse que presenciamos em 2022 o efeito do fenômeno climático La Niña. Assim, o Oceano Atlântico está mais quente que o normal, condição que pode ajudar as frentes a pararem naquela região, se conectar com a umidade da Amazônia e despejar aquele volume excessivo de precipitação. “O que não está normal é chover de 500 a 700 milímetros em poucos dias, o que aconteceu no centro-sul de Minas Gerais, afetando a capital Belo Horizonte, e 500 a 700 milímetros em três pulsos de chuva no sul da Bahia”, disse. Sias reitera que há uma condição inicial de normalidade em termos de fenômeno, só que depois ele atuou muito mais intenso em razão das condições dos oceanos.

Foto: Manu Dias/GOVBA/CP

Chuvas concentradas não permitem estoque de água no RS

O sul do Brasil está com chuva abaixo da média, vivendo mais uma estiagem severa nesse segundo ano consecutivo de La Niña. “A chuva cortou mais cedo a partir de outubro, começou a ficar irregular, falhada”, comentou a meteorologista Estael Sias. Ela ressalta que o clima seco interfere no baixo nível dos rios, na vegetação ressecada, nas perdas agrícolas consolidadas no centro-norte da Argentina, no Uruguai, no Rio Grande do Sul e no Paraguai.

A formação dessa cúpula de calor ocorre porque o ar muito seco vai favorecendo vários dias com temperatura acima da média. “Um fenômeno acaba alimentando o outro até que vem uma chuva realmente forte para dar fim a esse processo”, explica a meteorologista. Essa situação se manifesta de forma heterogênea, sendo que enquanto no Rio Grande do Sul diversos municípios estão em situação de emergência pela escassez de chuva, no centro do país há muitos municípios em situações de emergência em razão do excesso de precipitação.

Sobre a estiagem, o diretor substituto do Centro Polar e Climático da Ufrgs, Francisco Aquino, reitera que, ao longo dos anos, ela tem sido mais frequente e mais intensa, destacando que chove mais no Rio Grande do Sul quando se compara com os últimos 30 anos, 60 ou 90 anos. “Então, podem perguntar, mas se chove mais, por que tem mais estiagem?”, provoca. A resposta está na distribuição das precipitações. “A chuva está migrando para as estações quentes que, na nossa região, são características de tempestades, chovendo mais concentradamente, o que nos faz perder oportunidade de estocar o recurso hídrico, já que a chuva é tão rápida, tão intensa, que lava o solo, escoa rápido, inunda, causa prejuízo e assim por diante”, descreveu.

A chuva do inverno gaúcho diminuiu em torno de 10%, mas aumentou em direção às estações quentes, períodos em que a evaporação, a evapotranspiração (transpiração das plantas) e a água para agricultura e consumo da população tem elevada demanda. “A gente vem entrando em verões com déficit hídrico do inverno, pois perdemos uma característica importante, que era de chuva regular em boa quantidade, em bom volume, no inverno”, realçou, salientando que é um contraste o Brasil Central, já que a região de Brasília, Goiás, Minas Gerais e São Paulo tem um inverno seco.

Aquino diz que o Rio Grande do Sul, em média, tem mais de R$ 1 bilhão de prejuízo anualmente associado aos prejuízos decorrentes de chuvas intensas, vendaval, granizo, inundação, alagamento e enxurrada. “O que nós observamos é que essas tempestades severas na Bacia do Prata, incluindo o Rio Grande do Sul, estão ficando mais robustas, mais intensas e geram fenômenos como o que aconteceu recentemente em Guaíba”, exemplificou, relacionando aos temporais que provocaram alagamento e prejuízos no município na terceira semana de janeiro. O climatologista explica que, com o ambiente atmosférico mais quente, quando o corredor de umidade da Amazônia consegue deslocar a umidade até a região sul do Brasil, a tempestade se forma muito rápido e mais intensa.

O professor acrescenta que estudos feitos com pesquisadores de outros países indicam que eventos extremos sempre ocorreram na região Sul do Brasil, amplificando este cenário de mudanças do clima. “Nas próximas décadas, vamos conviver com esses eventos extremos, que devem se intensificar: estiagem, precipitação, ondas de calor e de frio, todos eles aumentaram em frequência e intensidade no Rio Grande do Sul”, afirmou.

A expectativa é que fevereiro seja mais chuvoso em relação a janeiro e março. “Mesmo assim, o primeiro trimestre será de déficit hídrico no Rio Grande do Sul”, estima Aquino. Ele explica que, em um ambiente extremamente seco, com ondas de calor, a associação das condições meteorológicas à umidade favorece tempestades mais intensas, como as verificadas nos últimos dias, em específico ao que aconteceu em Guaíba. “O caso de Guaíba é idêntico ao que ocorreu em Porto Alegre, no dia 29 de janeiro de 2016, quando houve a mesma tempestade severa, mesma explicação, que, no meu entendimento, foi uma microexplosão”, comparou.

O especialista ainda lembrou que situação igual já tinha ocorrido em Gravataí e em Viamão em fevereiro de 2021, quando foram acometidas por uma microexplosão localizada. “A explicação para todos esses casos, ao meu ver, está no ambiente atmosférico de extremo calor, que, quando vai romper a onda de calor com a aproximação de uma frente fria pelo oceano, sugere ao ambiente fortalecer as tempestades, e aí ocorre, dentro dessas tempestades, fenômenos mais intensos”, avaliou.

Foto: Douglas Magno/AFP/CP

Região Metropolitana mais quente e com mais temporais

O climatologista Francisco Aquino avalia que, ao olhar de norte a sul do Brasil, percebe-se que aumentou o desmatamento, diminuíram as áreas de proteção de mananciais, com prejuízos à biodiversidade e, como consequência direta, com a perda de água no solo, da umidade de modo geral. “Um planeta mais quente favorece a atmosfera carregar mais umidade em alguns momentos e ter fenômenos intensos”, comentou o professor da Ufrgs.

Também se tornam mais frequentes fenômenos de dias mais quentes ou de madrugadas mais quentes. “Quando nós olhamos Porto Alegre, o Rio Grande do Sul, e têm dados desde 1910, nós verificamos que as ondas de calor no Estado ocorriam preferencialmente em dezembro, janeiro e fevereiro, com duração de três a cinco dias”, recordou o diretor substituto do Centro Polar e Climático da Ufrgs. Já entre os anos 1950 a 1970, as ondas de calor aumentaram o número de dias e também passaram a acontecer até março. De 2010 em diante, as ondas de calor passaram de sete e oito para 15, 20 dias, com as temperaturas mais altas, inclusive durante as noites, período em que estão acima de 24 a 28 graus. “Por isso que nós alertamos que as ondas de calor são mais duradouras, são mais intensas e mais frequentes no Rio Grande do Sul, o que corrobora com os relatórios internacionais”, enfatizou.

Aquino explica que, em um ambiente extremamente seco, com ondas de calor, a associação das condições meteorológicas à umidade favorece tempestades mais intensas. Em Guaíba, por exemplo, um forte temporal causou destruição em vários pontos da cidade no dia 17 de janeiro. Árvores e postes caíram sobre o acostamento na BR 116, dezenas de casas foram destelhadas e muitos moradores ficaram sem energia elétrica. A prefeitura decretou situação de emergência. Segundo o professor, a mesma condição meteorológica que atingiu Guaíba ocorreu em Gravataí e Viamão em fevereiro de 2021. Todas foram acometidas por microexplosões localizadas.

Foto: Mauro Schaefer/CP

R$ 55 bi de prejuízos aos municípios brasileiros em cinco anos

As chuvas nos últimos meses geraram uma série de prejuízos aos municípios brasileiros, sendo o segundo período sazonal chuvoso com maiores impactos desde 2017. A informação é de estudo realizado pela Confederação Nacional de Municípios (CNM), que contabilizou que entre 1<SC120,176> outubro de 2017 até 17 de janeiro de 2022 os prejuízos econômicos de cerca de R$ 55,5 bilhões. 

De acordo com o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sinpdec), o período sazonal das chuvas se inicia a partir de outubro e termina no final de março do ano seguinte. Do total dos R$ 55,5 bilhões, o período chuvoso de 2020/2021 foi o que contabilizou mais prejuízos, com R$ 18,9 bilhões, seguido do período 2021/2022, com mais de R$ 17,2 bilhões e, em terceiro, o período 2018/2019, com R$ 8,2 bilhões.

O levantamento realizado pela entidade municipalista contabilizou ainda, entre 2017 a 2022, que os desastres decorrentes do excesso de chuvas levaram os municípios a 5.622 decretações de Situação de Emergência em todo o Brasil. Diante do exposto, a entidade chama atenção que, mesmo antes do fim deste período chuvoso, de outubro de 2021 a 17 de janeiro de 2022, o número de declarações foi de 1.302, ultrapassando o recorde do período de 2017/2018, de 1.155 decretos. De acordo a CNM, a época de chuvas de 2019/2020 foi a que mais apresentou casas danificadas e ou destruídas, somando 143.602, seguido pelo período 2020/2021, com 130.884 moradias danificadas e ou destruídas. As chuvas dos últimos seis anos afetaram mais de 28,8 milhões de pessoas.

Nesses seis anos, 637 pessoas perderam suas vidas por causa dos desastres decorrentes das chuvas. O período de 2018/2019 registrou 327 óbitos, 171,7 mil pessoas ficaram desabrigadas e 819,8 mil desalojadas. O período foi o mais problemático da história e afetou 14,8 milhões de pessoas. A CNM ressalta que foi neste período que ocorreu o desastre de Brumadinho (MG), quando o rompimento de uma barragem ocasionou a morte de 264 pessoas, sendo que, até hoje, ainda há seis desaparecidas.

O presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, destaca que, além das mortes, os impactos são imensuráveis quando se leva em consideração os recursos necessários para a reconstrução dos municípios. “As prefeituras sentem os prejuízos após o período das chuvas, quando precisam reconstruir o que perderam. Esses danos não têm como se mensurar. Há municípios que, passada uma década, ainda não conseguiram se reestruturar.” As chuvas neste início de ano já contabilizam, de acordo com dados divulgados pelos estados de Minas Gerais e Bahia, os mais afetados até o momento, um prejuízo de R$ 10,3 bilhões aos municípios mineiros e de R$ 2,1 bilhões aos baianos.

André Braz, economista da Fundação Getúlio Vargas, afirma que o impacto mais relevante das mudanças climáticas é exatamente na inflação, porque a quebra de safra de commodities importantes acabam diminuindo a oferta, promovendo choque de oferta, que é o aumento de preço pela falta do produto. “Como o Real segue muito desvalorizado, importar aqueles grãos que não serão suficientes para atender a demanda brasileira também pode implicar mais inflação porque a gente tem que desembolsar mais reais para comprar esses produtos”, comentou.

Braz reforça que a falta de soja, milho e trigo afeta a grande indústria que usa esses grãos. “Os preços das carnes, principalmente as de aves, que são sustentadas pelo milho, podem subir”, ressaltou. A produção de ovos também pode ficar comprometida e ter elevação de preço. “A mesma coisa na soja, no farelo de soja, que é um importante item para produzir ração animal para aves, bovinos e suínos”, acrescentou. Com o aumento na soja, isso também pode ser repassado para o preço das carnes.

O trigo no Brasil não é suficiente. O principal plantador é o Sul, que está prejudicado pelas secas, o que pode elevar o preço do pão, macarrão e biscoito. “Isso sem contar os danos que a seca traz à pecuária, já que, com a falta de chuvas e a piora das condições de pastagem, o gado vai perder peso, diminuindo a oferta de carne.” A pecuária leiteira também sente os reflexos, pois se o volume de captação de leite cai, o preço do leite sobe e, consequentemente, sobem os preços de todos os derivados. “Isso pode, de fato, comprometer a oferta de alimentos provocando aumento de preços”, disse.

O economista reforça que se trata de uma pressão inflacionária que não estava, com grande intensidade, no radar de 2022. “A gente esperava uma inflação de alimentos em torno de 4%, metade da inflação que tivemos ano passado, mas se os prejuízos da seca se acumularem e ela durar mais tempo isso pode trazer um novo impacto na inflação, por meio do aumentos de preços de itens que a gente não tinha na conta de 2022”, adiantou.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895